1Desde que o motor elétrico foi introduzido alterando a vida cotidiana, tornou-se fundamental para o desenvolvimento das forças produtivas e das formas de viver. As várias máquinas que decorrem do motor elétrico alteraram a vida nas cidades e no campo. A iluminação pública e domiciliar, os edifícios em altura, a geração de energia elétrica por várias fontes propiciaram novas dinâmicas econômicas e sociais. Trata-se, portanto, de uma fonte indispensável para a vida moderna (RYBCZYNSKI, 1996; VIRILIO, 1996).
2As formas de captação das fontes de energia têm sido ampliadas assim como as máquinas e motores que dela dependem. As energias fósseis estão presentes desde a origem do motor a vapor e seguem sendo utilizadas também para alimentar o motor elétrico. Contudo, desde meados do século XX são apontados problemas em relação ao esgotamento das reservas e da possibilidade comercial de sua exploração, as crises financeiras relacionadas ao petróleo, os debates ambientais considerando, em especial, a poluição do ar e as mudanças climáticas, levam à procura por fontes alternativas de energia, que resultam em um amplo processo de desenvolvimento tecnológico. Neste contexto, as energias ditas renováveis surgem como uma das novas possibilidades para a descarbonização.
3O rápido crescimento do uso de fontes renováveis de energia, como eólica, fotovoltaica e biomassa, tem despertado o interesse de pesquisadores no mundo todo. A literatura acerca do tema inicialmente se restringiu a discutir os aspectos tecnológicos, o custo-benefício do gerenciamento de suas cadeias globais de suprimentos e os impactos ambientais. Somente mais recentemente surgem estudos preocupados em discutir, prioritariamente, os impactos sociais, econômicos e territoriais das fontes renováveis de energia. Ressalta-se que estes últimos são especialmente importantes no que diz respeito a apropriação de territórios pelas energias renováveis, pois tratam de aspectos fundamentais para a compreensão da dinâmica do uso dos territórios e das formas socioespaciais que adquirem. Não levar em conta tais dimensões é incorrer em uma visão parcial da realidade. Trabalhos que tratam estas questões a partir de uma Economia Política do território são ainda bastante raros, especialmente no Brasil. Essa é a contribuição que se pretende neste estudo.
4Para tanto analisamos o processo de implantação de parques eólicos no semiárido brasileiro tendo como foco as formas de acesso e controle dos territórios pelas empresas de geração eólica, dando especial atenção a análise dos contratos de arrendamento eólico. Nossa hipótese é de que a implantação e operação de parques eólicos no semiárido brasileiro se trata de um processo de acumulação por despossessão (TRALDI, 2019), que ocorre simultaneamente de duas formas: a partir da despossessão do vento e da terra. A despossessão de vento, um bem comum, se dá pela sua exploração privada, assegurada pela própria legislação. Já a da terra pode se dar de duas formas diferentes, através de expedientes ilegais de expropriação, roubo e esbulho da terra, já bastante conhecidos e utilizados no Brasil, e/ou por meio dos contratos de arrendamento rural que aqui estamos chamando de arrendamento eólico.
5O artigo foi estruturado da seguinte forma: I) iniciaremos nossa discussão apresentando e discutindo o conceito de acumulação por despossessão; II) em seguida, verificaremos a pertinência do debate no que diz respeito à despossessão do vento, utilizando como fonte de análise a legislação brasileira; III) debate análogo ao que faremos em relação à despossessão da terra e suas formas, ocasião em que daremos destaque aos mecanismos ilegais, como a grilagem de terras, e aos mecanismos legais, como os contratos de arrendamento; IV) Por fim, serão apresentadas as conclusões do trabalho.
6O conceito de acumulação por despossessão cunhado por David Harvey (2010; 2020) guarda estreita relação com o processo de acumulação primitiva descrito por Marx (2013), que se caracteriza pela apropriação e o cercamento de terras, antes de uso comum, por um grupo restrito de pessoas, primeiro na Inglaterra, e posteriormente em outras regiões da Europa. Esse processo foi responsável por dar origem ao mesmo tempo à propriedade privada capitalista e ao proletariado. Isso porque, ao desapossar camponeses que trabalhavam livremente para garantir a sua subsistência em terras de uso comum e/ou coletivo, liberou força de trabalho para o trabalho na forma assalariada. De acordo com Marx (2013) esse processo foi a fonte primeira de acumulação capitalista.
7Ressalte-se que sob a rubrica da acumulação primitiva Marx inclui uma ampla gama de processos. Entre eles Harvey (2010) destaca: a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de camponeses; a conversão de várias formas de direito de propriedade, como direitos comuns, coletivos e do Estado, em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras partilhadas; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos, inclusive de recursos naturais, entre outros.
8Entendendo que tais processos descritos por Marx têm em verdade caráter de estratégias permanentes, sendo estruturalmente necessários ao funcionamento do sistema capitalista, Harvey (2010) cunha o conceito acumulação por despossessão.
9Assim, a acumulação por despossessão além de abarcar os mecanismos de acumulação primitiva descritos por Marx (2013) inclui também novas formas de coerção e apropriação e novas relações sociais que liberam ativos, inclusive força de trabalho, a um custo muito baixo, para que o capital sobreacumulado possa apossar-se destes e dar-lhes um uso lucrativo. Dentre os novos mecanismos de acumulação por despossessão destacamos a escalada de destruição de recursos ambientais globais (terra, água e ar), a mercadificação por atacado da natureza em todas as suas formas e a privatização de bens comuns como a água.
10De acordo com Perreault (2021), diferentemente de Marx, que estava interessado em desvendar as origens do capitalismo e por isso buscava compreender o processo de proletarização, Harvey está interessado em desvendar como o processo de despossessão, que envolve entre outras coisas a perda de direitos, entre eles o direito sobre a terra, a água e recursos naturais, contribui para a superação de crises recorrentes de superacumulação recorrentes no neoliberalismo.
11Sneddon (2007) vai lembrar ainda que o Estado cumpre importante papel na realização dos processos de acumulação por despossessão frequentemente dirigindo-o ou executando-o em favor dos interesses capitalistas. O Estado, detentor do monopólio da violência e produtor de normas, atua como promotor ou ao menos como facilitador deste processo, ainda que contrariando a vontade popular (HARVEY, 2010).
12Assim o processo de acumulação por despossessão que envolve recursos naturais sob o neoliberalismo, nos termos propostos por Harvey (2010; 2020), pode se dar através de sua privatização e mercantilização, mas não apenas, podendo também se dar através da perda de direitos de acesso e de uso deles, o que tem por consequência direta a impossibilidade de realização das diversas formas de reprodução social daqueles que deles dependem.
13A produção de energia eólica é entendida aqui como um processo de acumulação por despossessão de duplo caráter, pois impõe a despossessão do vento, uma riqueza natural, essencial a vida e que por isso deveria ser considerada um bem comum, ao mesmo tempo que promove a despossessão da terra na qualidade de um meio de reprodução social, que limita e restringe o uso e o acesso à terra aqueles que nela se reproduziam antes da chegada desta indústria.
- 1 Sobre as diferentes caracterizações de bem comum ver entre outros Dardot e Laval (2017).
14Os ventos são produto da distribuição desigual de luz e calor no planeta. O que explica que o potencial eólico esteja também distribuído de forma desigual no espaço e no tempo, impondo, por isso, desafios ao capital para a sua apropriação. Para a vida humana o ar é um bem essencial, sem o qual a nossa espécie e outras tantas não subsistiriam. Ou seja, o vento é em princípio, um bem comum1, que se encontrava fora da esfera de apropriação capitalista em sua forma mercantil, mas que ao assumir a forma de potencial eólico para a produção de eletricidade, se torna um recurso natural, um objeto de trabalho preexistente ou ainda uma dádiva da natureza (MARX, 2013), passível de apropriação pelo capital.
15Ressalte-se que, dádivas da natureza, como o vento, são apropriadas gratuitamente pelos capitalistas para a produção da mercadoria eletricidade e isso lhes garante um menor custo de produção, quando comparado aos capitalistas que se utilizam de matérias-primas produzidas pela indústria da mineração, como carvão mineral ou o gás natural. Alguns autores vão chamar esse trabalho realizado por forças da natureza de trabalho não pago da natureza (MOORE, 2011).
16No Brasil, no ano de 2017, estavam em operação 505 parques eólicos, que juntos somam uma potência instalada total de 13.145,6 MW. A produção vem se concentrando nas regiões Sul e Nordeste, sendo que esta lidera a produção com 404 parques em operação, com uma potência instalada de 10.288,2 MW, e 197 parques eólicos em construção e outorgados, que somam uma potência instalada futura de 4.423,4 MW. Embora a implantação de parques eólicos no Nordeste tenha se iniciado pelo litoral, é no sertão que esse processo vai se intensificar na última década, somando uma potência instalada em operação equivalente a 7.252 MW e em construção e outorgada igual a 3.512,5 MW (ANEEL, 2018). Apesar da consolidação da indústria de geração eólica, no Brasil, a apropriação do vento não foi, até o presente momento, regulamentada. Contudo, a ausência de legislação especial não impõe restrição a sua captação para a produção de eletricidade.
- 2 Em seu artigo 23, a CF/88 institui as competências comuns à União, Estados, Distrito Federal e Muni (...)
- 3 Inciso V, do artigo 48, da CF/88 consta entre as matérias que competem ao Congresso Nacional legisl (...)
17O vento ou o ar não são tratados pela legislação brasileira como recurso ou bem econômico, como ocorre com a água. A Constituição Federal de 1988 faz apenas duas menções ao ar/vento de forma indireta. Na primeira ele está subentendido na noção de “combate à poluição do ar2”, sem que, contudo, haja qualquer definição do ar/vento na qualidade de bem público (ou bem comum da natureza). Na segunda, aparece incorporado a noção de “espaço aéreo”3.
18A noção de espaço é tratada no Direito Internacional relacionada ao exercício da soberania de Estados Nacionais. De acordo com a Convenção de Chicago4, assinada e ratificada pelo Brasil, o espaço aéreo de um Estado-Nação é definido em altura por toda a extensão da atmosfera e em área pelos limites territoriais terrestres deste Estado. Entretanto, a definição do espaço aéreo não diz respeito a exploração comercial do vento, que é atividade produtiva intranacional, mas apenas ao poder de jurisdição do Estado. Não implica, portanto, que o Estado brasileiro detenha a propriedade mobiliária de toda a área em que exerce soberania, pois se assim fosse não haveria propriedade privada não estatal no país.
- 5 A expansão dessa atividade a mescla comercial tem início nos anos de 1990 na Europa e no Brasil ess (...)
19A ausência de regulamentação da apropriação do vento para geração de eletricidade pode ter decorrido da “novidade” do uso do ar em movimento para gerar energia5 ou mesmo de sua impossibilidade de captação e de armazenamento, ou de seu uso não ser viável economicamente até então. De acordo com McCarthy (2004) os esforços modernos de apropriação da natureza em processos de acumulação por despossessão são novos exatamente porque buscam mercantilizar e cercar o que previamente era tido como impossível de ser transformado em commodities.
20Diante da ausência de legislação específica, a atividade é regulamentada pela legislação mais geral vigente. O Código Civil 2002 (CC/02) ao definir a propriedade da terra, no Artigo 1.229, afirma que ela é exercida inclusive em altura, atribuindo assim o direito de exploração do potencial eólico ao proprietário do terreno. Dessa forma, a lei brasileira transforma um bem comum, uma riqueza natural, em um bem privado.
- 6 Para saber mais sobre arrecadação de impostos, royalties e geração de empregos na produção de energ (...)
21Ressalte-se que não há norma que determine em qual altura terminaria a propriedade do terreno e em qual se iniciaria o espaço aéreo. Os dois sistemas jurídicos operam concomitantemente, o Direito Civil e o Direito Internacional, não havendo em princípio conflito entre eles. Logo, a menos que o parque eólico seja construído em área de propriedade estatal, a apropriação econômica dos ventos se dará, privadamente, pelo proprietário do terreno6.
22A apropriação do vento pelas empresas de geração eólica vem se dando por meio da compra de terrenos ou através de contratos de arrendamento eólico, firmados por elas com os seus proprietários. Ou seja, se trata de atividade que se estabelece entre privados, atuando o Estado apenas como poder concedente.
- 7 A geração eólica de energia elétrica depende da existência de ventos constantes e regulares com vel (...)
23Portanto, os ventos adequados à geração eólica, riqueza natural escassa7, ao serem apropriados para a produção eólica são uma extensão da propriedade privada. O que faz, teoricamente, da propriedade mobiliária a garantidora do acesso desigual ao potencial eólico, pois apenas aqueles que detêm a propriedade, em áreas de elevado potencial eólico, poderão se apropriar do vento e da renda proveniente de sua exploração para a produção de eletricidade (SMITH, 1988). É nestes termos que entendemos o processo de apropriação do vento na forma de potencial eólico para a geração de eletricidade no Brasil, como um processo de acumulação por despossessão (HARVEY, 2010) que resulta do cercamento e da privatização do vento.
24Simultaneamente a despossessão do vento se dá a despossessão da terra. Diante do atual estágio tecnológico, o capitalista que investe na produção de energia eólica, para se apropriar do vento terá que fixar as torres no terreno e ao se apropriar da terra promoverá também a sua despossessão.
25Ressalte-se que, embora ao produzir energia eólica, o capitalista que exerce a atividade produtiva não esteja se apropriando das características físicas do solo, como na atividade agrícola; ou de seus atributos, como na exploração mineral ou na geração hidráulica, mas do ar em movimento, a ele caberá, o pagamento da renda da terra (KAUTSKY, 1968; MARX, 2017), já que o seu direito de propriedade se dá também em altura. A questão da renda obtida por uso e abuso da renda de uma dádiva da natureza, será apresentada adiante.
26Conforme dito anteriormente, existem no Brasil duas formas principais de acesso e controle das propriedades na produção eólica, a compra de terras, o que exige a imobilização de capital e a mudança de titularidade da propriedade, ou o estabelecimento de contratos de arrendamento eólico, que além de garantir as empresas a posse da propriedade, evitando a imobilização de capital, não altera a sua titularidade.
27Não por acaso, a forma predominante de acesso e controle as propriedades pelas empresas de geração eólica tem sido os contratos de arrendamento. Advogamos que, seja por ilegalidade jurídica, cometida no processo de aquisição de terras, ou através dos contratos de arrendamento a despossessão da terra poderá ocorrer. Ocasionando a perda do acesso e controle a terra, restringindo ou impedindo o seu uso, ainda que por seus proprietários formais.
28A chegada da indústria eólica ao sertão nordestino nos anos 2000 desencadeou uma corrida pela compra e principalmente pelo arrendamento de terrenos com elevado potencial eólico, aquecendo o mercado de terras principalmente na área rural de municípios do sertão (CPT-BAHIA, 2014; TRALDI, 2014). Essa corrida veio associada a uma série de denúncias de desrespeito por parte de empresas do setor eólico e imobiliário ao modo de vida de populações tradicionais e camponeses.
- 8 Atualmente CEA (Centrais Eólicas Assuruá SPE S/A), empresa de investimento brasileira, sediada em C (...)
- 9 Polimix Energia é a divisão da Organização Polimix, que tradicionalmente atua na produção de concre (...)
- 10 Empresa que atua na geração de energias renováveis no Brasil sediada em Curitiba (PR).
29Dentre as muitas denúncias destacamos duas feitas pela CPT-Bahia, uma em 2012 e outra em 2014. Na primeira, comunidades quilombolas do município de Caetité (BA) acusam empresas proprietárias de parques eólicos, dentre elas a EPP Energia (Empresa Paranaense de Participações SA)8, a Polimix Energia9 e a Atlantic Renováveis10, por desrespeitarem seu modo de vida, adquirindo terras de uso coletivo, realizando contratos de arrendamento que não resguardam os direitos fundamentais dos trabalhadores, assediando moradores e lideranças com protocolo de intenção, dividindo assim as comunidades (CPT-BAHIA 2012).
30Ressalte-se que a Atlantic Renováveis, integra o portfólio do fundo de investimento britânico Actis LLP, sediado em Londres, que oferece ativos de private equity, energia e imobiliário e tem atuação global. Entre seus clientes que investem em parques eólicos no Brasil estão: o sistema de aposentadoria dos funcionários do Texas, o sistema da aposentadoria dos professores do estado de Califórnia, o fundo de pensão nacional da Coréia do Sul, a Instituição Financeira de Desenvolvimento do Reino Unido, o fundo de pensão dos funcionários das Nações Unidas, entre outros11. Ou seja, a financeirização da produção de energia eólica no Brasil beneficia investidores pelo mundo e conecta o sertão nordestino a lugares como o estado do Texas, nos EUA, e a Coréia do Sul, mas os impactos socioespaciais ficam nos lugares.
31As denúncias da CPT-Bahia revelam também, como segundo caso, a ocorrência de grilagem de terras nos municípios de Mirangaba e Pindobaçu-BA, onde vivem aproximadamente 1.200 famílias de 12 comunidades em áreas de uso comum (CPT-BAHIA, 2014). A falsificação da propriedade das terras foi realizada pela empresa Casa dos Ventos com cercamento de mais de 90% da área de fundo de pasto, impedindo seu uso por comunidades tradicionais, que dependem dessas terras para sobreviver e manter seu modo de vida. Mais um exemplo de despossessão por cercamento ao qual podemos também denominar de despossessão por ilegalidade jurídica, quando há alteração da titularidade da propriedade e da posse através do uso de grilagem de terras, fraude cartorial ou qualquer expediente ou recurso ilegal de apropriação de terras.
- 12 As matrículas dos Imóveis aos quais fazemos referência podem ser consultadas em: Consulta Processua (...)
32Na região de João Câmara (RN), que está entre os municípios que concentram a maior capacidade eólica instalada do Brasil, há também denúncias de violação de direitos (Santos 2021). Nas proximidades do município de João Câmara (RN), no município de Parazinho (RN), encontramos situação de regularização de titularidade de propriedade rural destinada a geração eólica que consideramos questionável (TRALDI, 2019). Na matrícula do imóvel, que foi desmembrado de outro imóvel maior, verificamos um salto temporal na sua titularidade de 1988 para 200912. Embora o imóvel tenha sido desmembrado e alienado em 1988, esse registro na matrícula do imóvel somente ocorreu em 2001. Este imóvel foi vendido novamente para integrante da elite local em 30/07/2009. Contudo, o contrato de arrendamento já havia sido assinado por este mesmo integrante da elite local em 28/03/2008. Ou seja, um ano e sete meses antes da aquisição do terreno. Situações como esta reforçam que irregularidades estão sendo cometidas por empresas e por representantes do poder público e econômico na busca pelo acesso e controle de propriedades de elevado potencial eólico (TRALDI, 2019).
33As denúncias de grilagem de terras e irregularidades que desencadeiam processos de despossessão se avolumam nas áreas de implantação e operação de parques eólicos, especialmente no sertão nordestino, a título de ilustração citamos ainda: AATR (2017); CPT (2013); CPT-Bahia (2015); Fernandes (2020); Gouvêa e Silva (2018); e Racismo Ambiental (2022). Em alguns casos como revelado por Fernandes (2020) o Estado exerce papel central produzindo normativas que tem como objetivo facilitar a implantação de parques eólicos em terras públicas e devolutas por grandes empresas do setor eólico, mas que em se tratando estas de terras historicamente ocupadas por populações tradicionais de fundo e fecho de pasto, o que de fato se está facilitando é a despossessão destas populações. Em outros como revelado pela AATR (2017, p. 28 a 32) a participação de agentes públicos na qualidade de representantes do Estado, ainda que estejam agindo em benefício próprio e a margem da lei, serve de artimanha para ludibriar proprietários e posseiros.
34A despossessão de terras por ilegalidade jurídica costuma envolver roubo, esbulho, fraude, violência e expulsão de populações locais, camponeses, posseiros, assentados rurais, comunidades tradicionais roubando-lhes os meios de reprodução social. Em última instância e em larga escala estes processos podem reforçar e/ou promover novas ondas de reconcentração fundiária.
- 13 Pré-requisito legal para que o contrato seja válido e exigência do poder concedente, que condiciona (...)
35Conforme dito anteriormente, as empresas podem optar pelo arrendamento das propriedades junto aos seus proprietários em detrimento da sua compra. A opção pelos contratos de arrendamento rural permite a elas não imobilizar capital com a aquisição dos terrenos e são, muito provavelmente por isso, a forma majoritária. Os contratos de arrendamento devem ser firmados tendo como objeto propriedades já tituladas e regularizadas junto ao cartório de registro de imóveis13.
- 14 Essa discussão foi realizada em maior profundidade no Capítulo 7, pp. 158 a 180, da tese de Doutora (...)
36O arrendamento das propriedades se dá em duas fases: fase de medição dos ventos, que antecede o leilão de geração de energia, e a fase de operação, após a concessão de geração quando ocorre efetivamente a produção de energia. As empresas de geração eólica têm firmado um único contrato de arrendamento que contempla as duas fases, contendo cláusulas que regulam a fase de estudos (medição) e a fase de operação. Assim elas garantem o acesso e controle à propriedade antecipadamente, caso venham a vencer um leilão de geração promovido pela ANEEL. O que revela que estas empresas já possuem conhecimento prévio do comportamento do vento no território e em escala que lhes permite certo grau de certeza da localização do potencial eólico antes mesmo de serem iniciadas as medições de vento exigidas pela ANEEL. Uma das fontes de informação prévia são os atlas eólicos nacional, produzido pelo CEPEL, bem como os estaduais, realizados em parceria com instituições públicas e privadas14.
- 15 Seção II, do Capítulo IV, do Título III, intitulada “Do arrendamento rural” da Lei nº 4.504, de 30 (...)
- 16 Que regulamenta as Seções I, II e III do Capítulo IV do Título III, do Estatuto da Terra e o Capítu (...)
37Os contratos de arrendamento eólico são bilaterais, regidos pelas normas de direito privado, ou seja, deles participam apenas as partes envolvidas, não havendo qualquer interferência da ANEEL ou de qualquer ente federativo do Estado brasileiro (TRALDI, 2018). Os contratos de arrendamento, na sua forma e conteúdo, são regidos pelo Direito Brasileiro, especialmente pelo Estatuto da Terra15, e pelo Decreto nº. 59.566 de 14 de novembro de 196616.
38Os contratos de arrendamento rural se assemelham aos contratos de aluguel. De acordo com o artigo 3º do Decreto n. 59.566, de 1966, o arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra o uso de imóvel rural no todo ou em parte com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel.
39Segundo Hironaka (2019) o constituinte brasileiro fez uma opção por criar um sistema protetor em favor do produtor não proprietário (arrendatário) e da função social da propriedade agrária. Nestes termos o produtor não proprietário (trabalhador rural) é entendido como parte mais frágil ou hipossuficiente da relação contratual, pois querendo trabalhar e não possuindo terra, precisa se submeter a um contrato de arrendamento rural.
40Contudo, contrariando a caracterização feita por Hironaka (2019), nos contratos de arrendamento eólico verificamos uma inversão de papeis, sendo os proprietários de terra parte hipossuficiente frente ao poder econômico das empresas de geração eólica. Ocorre que, não havendo legislação especial que trate dos arrendamentos eólicos, vale a legislação do arrendamento rural, o que resulta na proteção das empresas de geração eólica em detrimento dos pequenos proprietários rurais.
41Desse modo, os arrendatários (empresas de geração eólica), vêm se beneficiando da legislação que lhes garante proteção especial, sob o pressuposto de ser o arrendatário a parte frágil da relação. O que impõe aos arrendadores (proprietários dos terrenos) uma condição de fragilidade e suscetibilidade ao processo de despossessão ainda maior.
42Com o objetivo de demonstrar a condição de fragilidade dos proprietários e o processo de despossessão da terra por meio dos contratos de arrendamento eólico foram analisados 22 contratos de arrendamento eólico (Tabela 01). Os contratos revelam como ocorre a despossessão calcada numa legislação que pretendia priorizar a produção rural, mas que acaba, contraditoriamente, possibilitando a expulsão dos produtores de suas terras. Ou seja, as normas jurídicas elaboradas num determinado período da história precisam ser redefinidas quando emergem novas situações geográficas, que colocam a norma em contradição com a realidade.
- 17 Os contratos da Renova Energia, da Voltalia Energia e da Gestamp Eólica e um contrato da CPFL Renov (...)
43Tabela 01: Contratos de Arrendamento Eólico analisados17
|
Empresa proprietária do parque eólico no Brasil
|
Grupo Empresarial (origem)
|
N. de contratos analisados
|
Município
|
Capacidade eólica instalada em operação no interior semiárido até 2017
|
|
MW
|
%
|
|
Renova Energia*
|
Cemig (Brasileira)
|
1
|
Caetité (BA)
|
524,8
|
7,9
|
|
Voltalia Energia
|
Voltalia AS (Francesa)
|
1
|
Serra do Mel (RN)
|
213
|
3,1
|
|
Gestamp Eólica
|
Gestamp Group (Espanhola)
|
1
|
João Câmara (RN)
|
115,4
|
1,7
|
|
CPFL Renováveis**
|
State Grid (Chinesa)
|
19
|
João Câmara (RN)
Parazinho (RN)
|
521,36
|
7,84
|
|
Total
|
|
22
|
|
1.374,56
|
20,5
|
44* Capacidade eólica instalada até 2016 era de 652,1 MW que corresponderia, atualmente, há 8,6% da capacidade eólica instalada interior semiárido.
45** Valença Industrial firmou os contratos de arrendamento com os proprietários dos terrenos e posteriormente subarrendou as propriedades para a CPFL Renováveis. A Valença Industrial é de propriedade da mesma família que era proprietária da Casa dos Ventos, hoje Salus Fundo de Investimento em Participações Multiestratégia, pioneira na implantação de parques eólicos no Brasil e detentora, atualmente, de uma capacidade instalada eólica de 202 MW, o que representa 3% de toda a capacidade eólica instalada no semiárido. Ressalte-se que a Casa dos Ventos foi também proprietária de muitos outros parques eólicos, que foram vendidos a outras empresas, como é o caso de oito parques eólicos, Ventos de São Clemente 1 a 8 (capacidade instalada de 232,47 MW), localizados nos municípios de Caetés (PE), Venturosa (PE) e Pedras (PE), atualmente de propriedade da empresa Echoenergia (pertencente ao do fundo de investimento britânico Actis LLP. De onde podemos concluir que, possivelmente, mais parques eólicos tiveram seus contratos firmados nos mesmos termos dos contratos firmados pela Valença Industrial e subarrendados a CPFL Renováveis.
46Organização própria. Fonte: Consulta Processual ANEEL.
- 18 Essa cláusula foi encontrada em todos os contratos por nós acessados, elas variam apenas quanto à t (...)
47Importante destacar que o acesso aos contratos de arrendamento eólico é muito difícil. Os contratos trazem cláusula de sigilo (confidencialidade), que proíbe a divulgação do contrato, a sua transmissão a terceiros, ou a publicização das condições financeiras ou pagamentos previstos, devendo o conteúdo do contrato ser mantido apenas entre as partes18. É recorrente nos contratos a existência de multa contratual para o descumprimento de qualquer de suas cláusulas, incluso a de confidencialidade. Isso explica por que acessamos um número reduzido de contratos de uma mesma empresa, com exceção da CPFL Renováveis.
48Os contratos de arrendamento eólico no interior do semiárido brasileiro vêm sendo firmados por longos períodos, que variam entre 27 e 50 anos. No Quadro 01 está o tempo de vigência de cada um dos contratos analisados.
49Quadro 01: Tempo de vigência contratual e prorrogação automática, em anos
|
Empresa contratante
|
Data de assinatura
|
Tempo de vigência
|
Tempo de prorrogação
|
|
Original
|
Atual
|
|
CPFL Renováveis
|
2008 e 2009
|
27
|
37
|
22
|
|
Gestamp Eólica
|
2008
|
35
|
35
|
A depender
|
|
Renova Energia
|
2011
|
35
|
35
|
35
|
|
Voltalia Energia
|
2016
|
50
|
50
|
Não diz
|
50Organização própria.
- 19 Artigo 28-A da Resolução normativa nº 391, de 15 de dezembro de 2009, da ANEEL.
51O que todos os contratos têm em comum são os longos prazos de vigência contratual, além da possibilidade de prorrogação automática a depender exclusivamente da vontade e da necessidade da empresa. É comum que existam longos prazos em contratos de arrendamento e penalidades expressivas para rescisões unilaterais nesta modalidade contratual, trata-se de mecanismo que tem como objetivo reduzir os riscos do negócio para ambas as partes. Porém, é importante frisar ainda que, na geração de energia os longos prazos de vigência contratual guardam relação direta com o prazo de concessão para geração de energia outorgado pelo Estado às empresas, que é de 35 anos19, ou seja, as empresas de energia estabelecem o prazo de acordo com os seus interesses.
52Contudo, a longa duração dos contratos e a existência de uma cláusula automática de renovação contratual, sem que haja necessidade de anuência dos proprietários, bastando a vontade da empresa, indica que, apesar de seguirem proprietários formais da terra os arrendadores perdem o controle sobre seus terrenos por longos períodos, que podem inclusive ultrapassar 50 anos, se considerada a possibilidade de prorrogação contratual. Nestes termos os contratos poderiam inclusive ser caracterizados como alienação completa dos imóveis, dada a perda do controle sobre a propriedade por mais de uma geração e apontam para a despossessão baseada em contratos, propiciando a “expulsão” dos pequenos proprietários de terras utilizadas para a reprodução da vida.
- 20 Ainda assim, o legislador reservou ao arrendatário o direito à renovação contratual relativamente à (...)
53A perda de controle da propriedade é agravada quando imposta também aos herdeiros ou sucessores, no caso de morte do proprietário. Os contratos têm cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade e por isso se impõem inclusive a parceiros, sócios, compradores, herdeiros ou sucessores. Embora, o artigo 15 do Decreto n. 59.566/66, afirme que a alienação do imóvel rural, não interrompe os contratos agrários, ficando o adquirente (comprador) obrigado a cumprir as obrigações do antigo proprietário, em seu artigo 23 estabelece que no caso de morte do proprietário qualquer de seus herdeiros poderá exercer o direito de retomada de sua parte20 (DINIZ, 2006).
54Isso quer dizer que, embora o contrato de arrendamento se imponha aos possíveis compradores, o que aponta para um processo de expulsão permanente dos pequenos proprietários, o mesmo não vale para os herdeiros. O que reforça nossa interpretação do disposto no inciso II, do artigo 26, que instituiu como uma das formas de extinção do arrendamento a retomada. Ou seja, a cláusula contratual que tenta impor os contratos também aos herdeiros dos terrenos é claramente ilegal e ainda assim foi encontrada em todos os contratos analisados. Não por acaso o contrato da empresa Gestamp traz também dispositivo que afirma que sendo qualquer das cláusulas considerada inválida, seja por erro manifesto ou impraticabilidade, as demais não serão afetadas. Trata-se de cláusula que tem como objetivo impedir que uma cláusula inválida possa invalidar todo o contrato, garantindo as empresas total proteção, enquanto os pequenos proprietários continuam, em qualquer hipótese, despossuídos de suas terras.
55O caráter de irretratabilidade e irrevogabilidade dos contratos impede ainda que os proprietários desistam do negócio antes do término da vigência contratual sem que para isso sejam onerados de forma desproporcional. A rescisão contratual somente é permitida em quatro situações: i) findo o período de vigência do contrato; ii) de comum acordo entre as partes; iii) inviabilidade técnica ou econômica do projeto; ou iv) se houver o descumprimento do contrato pela empresa.
56Não sendo a rescisão de comum acordo, a parte que lhe der causa terá que arcar com perdas e danos e lucros cessantes. Além disso, alguns contratos apresentam cláusula que impõe exclusivamente aos proprietários fundiários multa por descumprimento contratual, que variam entre 5 (TRALDI, 2014; 2018) e 20 milhões de reais (BAUER, 2013). Assim, o proprietário da terra que por qualquer razão desistir do negócio terá que procurar a justiça para a rescisão litigiosa do contrato e terá que arcar com perdas e danos, lucros cessantes e pagamento de multa por descumprimento contratual, quando houver.
57O que se observa, portanto, é uma enorme desproporcionalidade entre as partes quanto às obrigações e ônus contratuais. Às empresas se garante o acesso e o controle integral sobre as propriedades, mesmo antes de sagrarem-se vencedoras de um leilão de geração de energia; e a proteção frente a todo e qualquer risco do negócio, reservando-lhes o direito de desistir do negócio a qualquer tempo, caso este não se mostre mais viável financeira e/ou economicamente.
58Todavia, aos proprietários não se garante os mesmos direitos, que somente poderão desistir do negócio, sem que sejam onerados no transcurso do contrato, se tiverem a anuência da empresa, caso contrário, terão que arcar com os custos da rescisão de forma desproporcional.
59Ressalte-se que existem propriedades arrendadas para a geração de energia eólica cuja dimensão do imóvel é de aproximadamente 5 hectares e cujos proprietários são pequenos produtores rurais familiares. Ainda que eles queiram desistir do arrendamento rural após assinatura do contrato não terão condições financeiras para fazê-lo, pois teriam que arcar com a multa contratual e/ou perdas e danos e lucros cessantes. Mas, caso a implantação do parque não ocorra, seja por inviabilidade técnica ou econômica e a expectativa dos proprietários em relação ao contrato for frustrada, os mesmos direitos não lhes são garantidos. Não importando se o proprietário diante da expectativa da continuidade do contrato de arrendamento eólico deixou de: arrendar sua propriedade à outra empresa de geração de energia que poderia ter viabilizado o projeto ou para outra empresa ou indivíduo que poderia ter iniciado atividade produtiva agropecuária que poderia lhe gerar renda, ou ainda que ele mesmo tenha deixado de plantar ou criar animais na área designada para o projeto. Estas são as dimensões que mostram o processo de despossessão daqueles que arrendam suas pequenas propriedades às empresas de geração de energia.
60Importante ressaltar que, embora o pagamento pelo arrendamento das propriedades se refira ao número ou a potência ou, em casos mais raros, a produção por torre, as propriedades vêm sendo arrendadas na sua integralidade, garantindo as empresas o controle completo e irrestrito das propriedades na sua integralidade. Podemos aqui aventar algumas hipóteses que explicam o arrendamento das propriedades em sua integralidade: a empresa precisa controlar a propriedade toda, pois terá que instalar cabeamentos e outras infraestruturas elétricas, mas não deseja pagar o arrendamento pela área total, o que resultaria na elevação de seus custos totais de produção; ou a perspectiva futura de instalação de outras infraestruturas geradoras de eletricidade em associação, como já estamos assistindo usinas solares sendo instalas em associação com parques eólicos, o que abriria a possibilidade de ocupar a área da propriedade sem que para isso tenha que pactuar nova avença, nesse sentido o contrato inicial garantiria reserva futura de potencial de geração elétrica na forma de reserva de terras.
61Ainda que as empresas geradoras de energia eólica argumentem que os arrendadores podem seguir usando os terrenos para outras atividades, desde que não afete negativamente a usina, o que se verifica na prática é diferente. Muitas propriedades veem sendo cercadas pelas empresas geradoras e nenhuma outra atividade se realiza nelas além da geração de energia eólica (HOFSTAETTER, 2016; TRALDI, 2014; 2019).
- 21 Associação de produtores rurais do município de João Câmara (RN).
62De acordo com Hofstaetter (2016) a empresa arrendatária de propriedade da Associação Oiticica21, por exemplo, impede que os agricultores adentrem a área destinada ao parque eólico, dificultando inclusive a circulação de pessoas na estrada que serve o parque, sob o argumento de que ela não pode se responsabilizar por acidentes envolvendo a população local. Esse impedimento não considera a cláusula contratual que afirma que atividades como pecuária e agricultura poderão seguir sendo executadas, pois se os proprietários não podem acessar a área do parque não poderão seguir criando animais ou plantando na área. Ainda de acordo com autora, as áreas destinadas à instalação dos parques eólicos passam a ser de uso privado da empresa. A despossessão não se dá nestes casos mediante a alteração da titularidade da propriedade, mas pela despossessão das atividades de sobrevivência e do modo de vida destas populações.
63Em contratos como os da empresa Voltalia Energia o dispositivo que trata das restrições de uso da propriedade pelo proprietário exige que seja realizada notificação prévia informando sobre quaisquer atividades que o proprietário deseje executar, podendo a empresa se opor quando entender que se trata de atividade prejudicial à usina, ainda que minimamente. O contrato da Renova Energia proibi qualquer atividade que possa obstruir o vento em um raio de 5.000 metros ao redor de cada torre, além de qualquer construção de edificações para fins residenciais a um raio de 300 metros de cada torre.
64Entre as espécies vegetais proibidas de serem cultivadas pelos agricultores no estado do Rio Grande do Norte, sob a justificativa que poderiam formar uma barreira em altura e causar danos à captação do vento, estão: coqueiros, cajueiros e mangueiras (HOFSTAETTER, 2016). Importante lembrar que a região Nordeste é a maior produtora de castanha de caju no país e o estado do Rio Grande do Norte está entre os maiores produtores nacionais. O que significa que os cajueiros são fonte de emprego e renda para populações desta região, assim, a sua proibição pode representar a redução de renda nestas áreas. Nesse sentido, entendemos que a despossessão não ocorre apenas quanto a terra, mas também nas atividades realizadas e ao modo de vida.
65Ressalte-se que as restrições de uso se impõem também para o subsolo na área dos parques e adjacências. Os parques eólicos têm instalações subterrâneas que estão a uma profundidade mínima aproximada de 0,8 metros, o que inviabiliza que atividades agrícolas sejam realizadas em toda a extensão por onde passam os cabeamentos. Para além dos cabeamentos do parque, nas áreas por onde passam as linhas de transmissão, em uma extensão que mede 60 metros, é proibida também a prática de atividade agrícola (HOFSTAETTER, 2016). Ou seja, a proibição para uso não se dá apenas ao redor das torres dentro da área dos parques, mas também pelo terreno nas áreas arrendadas e ainda nas áreas por onde passam as linhas de transmissão, que permanecem como propriedade individual, mas que não podem ser utilizadas.
66O conjunto de dispositivos contratuais apresentados, que têm como objetivo garantir o acesso e o controle irrestrito das empresas de geração eólica sobre as propriedades arrendadas por longos períodos, revelam a importância da propriedade e/ou posse da terra para esta atividade econômica e como a empresa capitalista passa a exercer domínio irrestrito sobre ela, sem que para isso tenha que imobilizar capital na aquisição dos terrenos.
67Diante do acima exposto, entendemos que a chegada da indústria eólica ao sertão vem se revelando como um amplo processo de apropriação e despossessão de terras e das formas de reprodução social das populações afetadas. É nestes termos que afirmamos que os contratos de arrendamento eólico são instrumentos que viabilizam, a partir de uma aparência de legalidade, o processo de acumulação por despossessão (HARVEY, 2010). Enquanto em períodos anteriores a despossessão ocorria com a expulsão direta agora se faz também dentro das normas capitalistas, com os contratos de arrendamento.
- 22 Para maior compreensão de como chegou-se a essa conclusão consultar Traldi, 2019.
68Por fim, os proprietários de terras arrendadas para a produção de energia eólica, embora arrendadores, não recebem pagamento da renda da terra nos termos analisados por Marx (2017) e Kautsky (1968). Afirmamos isso pois, ao realizar a análise e aplicação dos 22 contratos verificamos que, embora os proprietários de terra sejam os possuidores do maior ativo necessário ao desenvolvimento da geração eólica, o vento, eles receberam, na melhor hipóteses, a título de arrendamento 1,85% dos ganhos brutos totais anuais das empresas de geração eólica e na pior das hipóteses, caso mais recorrente, receberam entre 0,73 e 0,91% dos ganhos brutos totais anuais das empresas de geração eólica22.
69As empresas estão se apropriando de parte importante da renda da terra, senão de sua integralidade, com vias a acelerar seu processo de acumulação, compensando as limitações impostas pelo longo tempo de rotação do capital característico de setores produtivos em que há grande investimento em capital fixo. Ao mesmo tempo em que realizam uma apropriação “informal” da própria propriedade e de suas formas tradicionais de sobrevivência. Um real processo de despossessão. O que resta é um título, mas não a possibilidade de ter a terra como meio de produção e reprodução da vida.
70Diante de todo o exposto, concluímos que a produção de energia eólica no semiárido brasileiro se configura como um processo de acumulação por despossessão, em que há ao mesmo tempo, a apropriação privada de um bem comum, o vento, e o desapossamento de populações rurais, que sendo expulsas de suas terras ou constrangidas, seja por meio da legalidade institucional ou não, são alijadas de seu meio de reprodução social, o direito a terra.
71Falamos em duplo caráter da despossessão na produção de energia eólica, pois para se apropriar do vento, a indústria eólica, precisa acessar e controlar os territórios que dispõem de elevado potencial eólico. Isso ocorre por duas razões, primeiro porque o atual estágio tecnológico exige a fixação das torres eólicas no solo, e segundo porque a legislação brasileira confere o direito de exploração do vento ao proprietário da terra.
72Assim, a despossessão do vento se dá com a sua privatização. Já a despossessão da terra e das formas de reprodução social poderá se dar através de uma variedade de expedientes, entre eles: compra de propriedades rurais a baixos preços (áreas desvalorizadas) e sobre as quais os direitos formais de propriedade são mais frágeis (predomínio da posse); expulsão violenta de posseiros (processos de grilagem de terras, fraudes cartoriais e ações judiciais, como reintegrações de posse), muitas vezes fazendo uso de intermediários; e/ou por meio dos contratos de arrendamento eólico (nesse caso embora o título de propriedade siga em nome dos proprietários o uso e o controle sobre as propriedades passa a ser exercido pelas empresas). Confirmando as hipóteses de McCarthy (2015), de que o processo de descarbonização promove a apropriação privada e a mercantilização de riquezas naturais, como o vento, e abre caminho para apropriação e expropriação de vastas áreas especialmente no Sul global, áreas estas em que os preços da terra são mais baixos e sobre as quais os direitos formais de propriedade são mais frágeis se confirmam. Logo, a descarbonização abre caminho para a acumulação por despossessão e a implantação e operação de parques eólico no semiárido brasileiro confirmam esta tese.
73A apropriação de terras por meio de expedientes que se caracterizam pela violência direta, roubo, esbulho e expulsão de populações rurais, já são bastante conhecidas da realidade brasileira e agora emergem também com força na geração eólica. Já os contratos de arrendamento eólico promovem a despossessão e expulsão das populações de forma sutil e sob uma aparência de legalidade, fazendo uso de dispositivos que lhes garantem acesso e controle irrestrito sobre as propriedades. Dentre estes dispositivos destacamos: longos períodos de vigência contratual; restrições de acesso e uso dos territórios; multas contratuais e clausulas de irretratabilidade e irrevogabilidade, aplicadas unilateralmente aos proprietários; imposição dos contratos a herdeiros, o que é ilegal; e de clausulas que permitem as empresas transferir os contratos a terceiros como se fossem elas suas reais proprietárias, o que também é ilegal. Confirmando a tese de Kramarz et al (2021) de que o deslocamento de populações locais que decorre das energias renováveis ocorre em um contexto de expulsão legalizada, expropriação ilegal (land grabbing), especulação fundiária e deslocamento econômico.
74Nesse sentido, proposições como as de Turkovska et al (2021), de empurrar a implantação de parques eólicos no Brasil para áreas já antropogenicamente já ocupadas afastando-os das áreas de cobertura vegetal nativa reduzindo assim o desmatamento, por exemplo, do bioma da caatinga, podem, a despeito de reduzir o desflorestamento e proteger o bioma da caatinga, intensificar o processo de despossessão sofrido pelas populações do semiárido e acirrar os conflitos pela terra.
75A produção de energia eólica, apesar de sua importância para a geração de energia não poluente e no combate as mudanças climáticas, provoca contraditoriamente problemas estruturais e conjunturais aos que detêm a posse da terra para produção agrícola de subsistência.
76As desigualdades sociais, econômicas e territoriais, especialmente a enorme concentração fundiária, que precedem a chegada da indústria eólica, parecem reforçar as assimetrias de poder e produzir novas formas de injustiça socioespacial na produção eólica.
77Para além da questão contratual é importante ressaltar que os posseiros, que não detêm a titularidade das terras, estão mais vulneráveis à ação de grileiros, estando por isso, mais sujeitos a perderem a posse de suas terras por meio de processos de expulsão violenta, muitas vezes fazendo uso do aparato da justiça, através de ações de reintegração de posse.
78Já os proprietários titulados, sejam eles assentados ou não, apesar de estarem mais seguros do ponto de vista do direito formal sobre a propriedade, estão sujeitos ao poder econômico e político das empresas de geração eólica que representam o capital nacional ou internacional. Ressalte-se que o título de propriedade não garante que estes proprietários não sofrerão com processos de despossessão de suas terras. Ao contrário, o processo de despossessão sofrido pelos proprietários titulados se dá por meio dos contratos de arrendamento, quando estes renunciam aos direitos sobre a propriedade de forma “voluntária” ainda que inconscientemente. O que demonstra que Sovacool et al (2021) estavam corretos ao afirmarem que em processos de descarbonização, grupos antes tidos como não vulneráveis também são afetados, ainda que em menor grau, sendo introduzidas também novas vulnerabilidades por meio de padrões de co-dependência. É o caso, por exemplo, de grandes e médios proprietários de terras, que apesar dos ganhos auferidos com os contratos de arrendamento eólico, também sofrem com a despossessão de suas terras, imposta pelos contratos de arrendamento, que lhes impedem de seguir produzindo autonomamente e se reproduzindo socialmente, torna-os totalmente dependentes da indústria eólica em termos financeiros.
79Por fim, discordamos de Kramarz et al (2021) que, ao tratarem do deslocamento por despossessão na geração eólica, afirmam que esta forma de energia renovável é menos dependente dos processos de desapossamento de populações locais que as demais energias renováveis. No semiárido brasileiro o processo de despossessão da terra vem se realizando de forma ampla e tem se tornado elemento central na atividade, seja por meio de processo de grilagem, fraudes cartoriais e outras ilegalidades, seja através dos contratos de arrendamento eólico que retiram das populações rurais a terra como meio de produção e reprodução social.
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