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Virada espacial e urbanização planetária: repensando a visualidade dos estudos urbanos

Virada Espacial y Urbanización Planetaria: Repensando la Visualidad de los Estudios Urbanos
Spatial Turn and Planetary Urbanization: Rethinking the Visuality of Urban Studies
Virage Spatial et Urbanisation Planétaire: Repenser la Visualité des Études Urbaines
Thiago Rodrigues

Resumos

Este artigo explora as transformações contemporâneas do processo de urbanização, destacando tanto uma "virada espacial" quanto uma "virada visual". Com a urbanização se expandindo globalmente, os estudos urbanos focados na cidade perderam relevância, dando lugar a abordagens com características regionais. A urbanização fordista, centrada na cidade, deixa de ser o enfoque principal das análises. Em paralelo, a visualidade urbana tradicional, representada por círculos concêntricos, é substituída por representações fragmentadas e diferenciais. Sendo possível examinar essa mudança através de obras de arte, mapas e capas de livros, que evidenciam a necessidade de novas abordagens visuais e teóricas desse novo momento da urbanização.

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Texto integral

Introdução

1As reflexões contemporâneas sobre o processo de urbanização revelam uma heterogeneidade de representações do capitalismo moderno. Essas novas maneiras de representar o fenômeno urbano se distanciam cada vez mais dos estudos urbanos centrado na cidade e influenciado pela indústria, que marcou a década passada.

  • 1 Influenciado pelas perspectivas de Henri Lefebvre e Michel Foucault, o termo virada espacial ganhou (...)

2Isso revela uma nova natureza da urbanização, entendida como uma nova virada espacial1 do processo de urbanização. Essa mudança radical, pode ser representada como uma metamorfose do urbano, como Sandra Lencioni (2015a) apresenta, em que a problemática do urbano ganha nova escala e característica diferente da urbanização fordista.

3Esse ensaio busca entender as transformações do momento atual do processo de urbanização para além de uma virada espacial, mas também como um indicativo de uma virada visual. Onde representações da vida urbana em escala global reverberam em imagens fractais de um processo que antes estava centrado na cidade, com a sobreposição vertical de construções e aglomerado em seus círculos concêntricos.

4Essas imagens fractais revelam um urbano planetário e diferencial, onde a visualidade contínua dos prédios do barão de Haussmann posta na capa da obra de Henri Lefebvre, The Urban Revolution (1970/2003), dá lugar a instabilidade de paisagens urbanas operacionais extremamente distintas, como as demonstradas por zonas de extração na capa da obra de Neil Brenner (2014), chamada de Implosões e explosões: Rumo a um estudo da urbanização planetária.

5Quando anunciado por Henri Lefebvre (1999) a dissociabilidade da cidade e do urbano, somos convidados a reposicionar a nossa visão e revisar o urbano que vemos para além do que um artista cubista teria visto (MERRIFIELD, 2014). Esse movimento abre a possibilidade de pensar não somente uma virada espacial resultante na sociedade urbana, mas também em uma virada visual, anunciando um reconhecimento do urbano como um artista expressionista abstrato veria.

6Nesse sentido, este ensaio tem como objetivo analisar em que medida o novo momento da urbanização anunciado por Edward Soja (2013), Sandra Lencioni (2015a, 2017) e Neil Brenner (2018), entendido por nós como uma nova virada espacial, também pode representar uma virada visual do processo de urbanização contemporâneo.

7Compreendemos que, à medida que o processo de urbanização contemporâneo submete a estrutura metropolitana monocêntrica, pautada na cidade, a uma cisão por meio dos intensos e múltiplos fluxos de pessoas, mercadorias e informações, a visualidade (ROSE, 2012) – ou seja, a maneira de reconhecer o processo de urbanização – também se alterou.

8Para responder a este objetivo, além desta introdução e das considerações finais, nossa análise está dividida em três sessões, cada uma buscando explicitar diferentes aspectos dessas transformações e suas implicações para os estudos urbanos.

9 Na primeira parte, intitulada de (re)virando os estudos urbanos, traçamos a evolução dos estudos urbanos desde a Escola de Sociologia Urbana de Chicago, que centralizou a cidade como seu objeto de estudo, até as abordagens contemporâneas que sugerem uma abordagem regional mais ampla desse processo.

  • 2 Sandra Lencioni (2015a, p.150) afirma que “o domínio e direção do processo de reprodução não estão (...)

10 Em seguida, na sessão (re)virando o espaço, vamos argumentar a existência de uma nova natureza do processo de urbanização, em que a urbanização contemporânea transcende a cidade e adquire características metropolitanas e globais, entendida por nós como uma nova virada espacial. Esse nexo metropolitano-financeiro2 reflete uma nova realidade, exigindo novas formas de compreensão, que revela uma virada visual do processo de urbanização.

11 Por fim, na seção retratos do novo urbano, buscamos apresentar novas formas de representação visual do fenômeno urbano. Demonstrando como a imagem clássica da cidade, com seus círculos concêntricos e limites definidos, foi substituída por representações fragmentadas e diferenciais que refletem a complexidade da urbanização contemporânea.

(Re)virando os estudos urbanos

O valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana (Henri Lefebvre, 2001, p.14).

12Os estudos urbanos estão, desde muito tempo, sendo debatidos de um ponto comum. Pesquisadores com agendas aliadas em entender a natureza do urbano, o seu processo e suas transformações, estão tomando como referência analítica a cidade. A de considerar que esse foco analítico encontra considerável influência na grande obra dos fundadores da escola de Sociologia Urbana de Chicago, denominada sugestivamente como The City (Burgess e Park, 1925).

13Sem a verdadeira noção de suas influências, Ernest Burgess e Robert Park vão, sem o medo do peso da afirmação, aprisionar os estudos urbanos na cidade. Universalizando o pensamento sobre esse processo, a organização da cidade, entendida aqui também como o ambiente urbano, é determinada pelo tamanho da sua população, sua concentração e distribuição dentro da área da cidade. (Burgess e Park, 1925, p.6).

14Nesse momento nasce uma indissociabilidade nos estudos urbanos – entre cidade e urbano – exaustivamente explorada e difícil de ser superada. Assim, quando Ernert Burgess no capítulo “The Growth of the city” está explorando “os processos típicos de expansão da cidade” (tradução nossa, p.50), ele está formulando, simultaneamente, um desenvolvimento típico de expansão do processo de urbanização.

  • 3 Para elucidar melhor a nossa alegação podemos pensar no filme Megalópoles, do renomado diretor Fran (...)

15Os elementos constituintes da cidade vão se tornando os elementos constituintes do urbano. Onde as casas, os prédios, os pavimentos e os fios vão se enraizando como a forma urbana universal e o seu crescimento, a dispersão dessas formas. O poder dessa associação é tamanho que obras cinematográficas3, para representar futuros distópicos de urbanização total da sociedade, vão criar uma imagem regular, contínua e espraiada de prédios cinzas.

16Olhando para a cidade de Chicago da mesma maneira que Juan Gris olhou para uma tela em branco, Burgess vai produzir um mapa semelhante a qualquer obra do artista cubista. O mapa “o crescimento da cidade”, figura 1, representa o crescimento físico da cidade (ou da urbanização) de maneira tão orgânica, com círculos concêntricos e limites bem definidos, que é possível encontrar o seu urbano no quadriculado das toalhas de mesa da obra Still Life With Checked Tablecloth (1915) do pintor espanhol.

Figura 1 : O crescimento da cidade

Figura 1 : O crescimento da cidade

Fonte: Burgess e Park, 1925, p.50

17A indústria nesse momento também vai desempenhar importância na aderência dessa maneira de fazer os estudos urbanos. Isso por que “existem tipos de indústria, mesmo de nível mais baixo, que só podem ser realizados em uma grande cidade” (Burgess e Park, 1925, p.13). Desta maneira, ao lado da densidade populacional e da centralidade, no que constituía o que chamavam de urbano, estava como elemento essencial a existência da indústria.

18Ancorado nesses elementos, a indústria e o comércio vão fornecer as condições materiais para o estudo da cidade e do urbano nesse momento. A indústria, com a sua marcante estrutura fordista, é o ponto central de onde emana a expansão radial. Em torno desse centro, temos mais três círculos radiais: primeiro, uma zona de transição com negócios e manufatura leve; segundo uma área de habitação dos trabalhadores da indústria; e terceiro, a zona da área residencial de apartamentos da alta classe. (Burgess e Park, 1925, p.50).

19Nesse mesmo momento temos o surgimento de uma cultura urbana fundamentada nas características citadas e no dualismo. A singularidade da vida urbana em relação à rural vai fornecendo os elementos necessários para essa cultura. Louis Wirth (1938) afirma que essa cultura deve ser entendida como “um sistema específico de normas ou valores, ou – no que diz respeito aos atores – de comportamentos, atitudes e opiniões” (tradução nossa, p. 27).

20O urbano então se constituí como maneira específica de organização espacial que apresenta como forma a cidade. Contudo, à medida que a produção industrial explodiu, muitas cidades passaram a ter o seu desenvolvimento territorial com proporções metropolitanas. Segundo Sandra Lencioni (2017), isso “decorre das necessidades impostas pelo capital produtivo que exige o desenvolvimento de determinadas funções para se viabilizar” (p.205).

  • 4 Para melhor aprofundamento do conceito ler Lencioni (2007; 2021).

21A expansão dos meios de produção e do capital dispersa os pontos de concentração e cria uma ampla rede urbana (CARLOS, 1988, p.35). A indústria, que anteriormente pressupunha concentração espacial, encontra novas maneiras de se desenvolver, influenciada pelo adensamento de uma gama de condições gerais de produção4, ou seja, equipamentos de consumo coletivo que integram a reprodução do capital.

22“O crescimento prodigioso das trocas, de uma economia monetária, da produção mercantil, do “mundo das mercadorias” que resultará da industrialização, implica uma mudança radical” (tradução nossa, LEFEBVRE, 2014, p.68). Uma quantidade absurda de termos surge para tentar dar conta dessa transformação, contudo muito deles ainda adjetivam a cidade, sem nem perceber a perda de sua centralidade.

  • 5 Termo utilizado aqui para as diversas denominações de cidade que se apresentam de forma metafórica (...)

23As cidades metafóricas5 surgem para dar conta da compreensão da mudança do processo urbano. Surgindo trabalhos sobre cidades globais (SASSEN, 1991), cidades mundiais (HALL, 1984; FRIEDMANN, 1986), megacidades (GILBERT, 1996), cidades provinciais (SKELDON, 1997), entre tantos outros termos que tentam, com esforços finais, fazer os estudos urbanos pela categoria analítica da cidade.

24A cidade que foi exaustivamente utilizada como a forma universal desse processo nos estudos urbanos e constantemente rotulada como indissociável dele, perde o seu privilégio analítico. Isso porque o espaço, vítima das contradições do capitalismo, é incorporado como produto de uma racionalidade voltada para a acumulação, resultando em diversas formas morfológicas e configurações espaciais.

25Antes mesmo de anunciar o fim da cidade pensado por muitos autores, buscamos entender aqui, com a formulação simples e precisa de David Harvey (2014), que “a coisa que chamamos de cidade é o resultado de um processo que chamamos de urbanização” (Tradução nossa, p.61). Ou ainda, a também precisa contribuição de Matthew Gandy (2014), em que “as cidades são apenas uma forma de urbanização” (tradução nossa, p.86).

26A perda desse protagonismo frente ao intensivo avanço do meio técnico-científico-informacional, da globalização da economia e da generalização da mercadoria, resulta em um quadro complexo demais para os estudos urbanos centrados na cidade. A explosão e a implosão (LEFEBVRE, 1999) da cidade – como maneira universal analítica e forma urbana - anuncia algo que estamos chamando aqui de virada espacial do processo de urbanização.

(Re)virando o espaço

A realidade urbana, simultaneamente ampliada e explodida, perde assim as características que herdou do período anterior: totalidade orgânica, pertencimento, imagem edificante, sentido de espaço medido e dominado pelo esplendor monumental (Henri Lefebvre, 2014, p.42).

27No início do capítulo “Da cidade à sociedade urbana” da obra A Revolução Urbana (1999), o filosofo Henri Lefebvre argumentou uma hipótese que vai ecoar por décadas nos estudos urbanos. Essa hipótese, virtual no momento que Lefebvre escreveu e concebida atualmente por alguns autores como real (BRENNER, 2014; 2018), é de que a urbanização completa da sociedade resultará na denominada sociedade urbana.

28Elaborada a partir de um instigante eixo, que é ao mesmo tempo espacial e temporal, temos traçada a compreensão da ausência de urbanização até o estado íntegro desse processo. Esse movimento prolifera o tecido urbano e corrói os resíduos da vida agrária (LEFEBVRE, 1999, p.17). Explodindo o urbano que vai sendo condensado por subúrbios e conjuntos residenciais, formando uma vasta rede de infraestrutura.

29Além de se estender, o urbano “acentua, em um novo plano, o caráter social do trabalho produtivo e seu conflito com a propriedade (privada) dos meios de produção” (LEFEBVRE, 2014, p.45-46), em que a produção industrial estende o crescimento das trocas mercantis e multiplica o número dessas trocas. Assim, “compra e venda, mercadorias e mercado, dinheiro e capital parecem eliminar todos os obstáculos” (LEFEBVRE, 2014, p.42).

30Durante este período de generalização, o efeito do processo – nomeadamente a realidade urbana – torna-se ao mesmo tempo causa e razão, isto é, fatores induzidos tornam-se indutores. O problema urbano torna-se um fenômeno global. Este crescimento estende-se desde a simples troca de mercadorias ao mercado global até à troca de produtos, obras de arte, ideias e seres humanos (LEFEBVRE, 2014, p.42-43).

31Para Lefebvre a reprodução do capital industrial é, ao mesmo tempo, a reprodução do urbano. Essa sutil perspectiva abre precedente para entender o urbano como algo muito maior do que a cidade visualizada pelos membros da escola de Sociologia Urbana de Chicago. Contudo, quando temos uma clara transição da hegemonia do capital industrial para o financeiro, temos uma transição da natureza desse processo de urbanização.

32Nesse momento a globalização da economia e a restruturação produtiva vão promovendo “uma verdadeira ruptura no processo de produção social do espaço dando origem a uma nova fase da urbanização mundial” (TUNES, 2023, p.4). A consolidação dessa nova fase da urbanização é o que estamos chamando de virada espacial.

33O termo virada espacial não é novo e já foi empregado por outros autores com outros sentidos. Ana Fani (2015), iluminada pelas ideias de Henri Lefebvre (1974), vai chamar de virada espacial a transição da ideia de espaço como palco da ação humana para a compreensão do espaço como meio, condição e produto de uma sociedade diferenciada por classes. Edward Soja (2011) vai chamar de virada espacial a difusão sem precedentes do pensamento espacial crítico.

34A partir da década de 1970, influenciado pelas obras de Henri Lefebvre, temos a difusão de uma visão do espaço orientada pelo materialismo. Autores como David Harvey (1989) e Edward Soja (1983), vão chamar a atenção para o papel central do espaço na reprodução capitalista, em que a virada espacial reflete “a fonte primordial do ataque ao historicismo e da reafirmação do espaço na teoria social crítica” (SOJA, 1993, p.54).

35A nova virada espacial que decorremos nesse ensaio não se relaciona diretamente com a apresentada por Edward Soja (2011) e Ana Fani (2015). No entanto, a influência de ambos no conhecimento e na compreensão desse termo é inegável. Assim, a virada espacial que propomos representa uma transformação da forma clássica (urbano-industrial) para uma forma contemporânea (metropolitana-financeira) do processo de urbanização.

36Esse novo momento pode ser denominado como Metropolização Regional (LENCIONI, 2020), Urbanização Regional (SOJA, 2013) ou Urbanização Extensiva (MONTE-MOR, 1994; BRENNER, 2018). Ainda que essas denominações apresentem diferenças, todas compartilham a ideia de que a sociedade urbana anunciada por Lefebvre se concretiza, originando uma urbanização planetária.

37A força do termo urbanização planetária pode causar estranheza em um primeiro momento. E inúmeras são as críticas que tentam, de alguma maneira, apresentar essa nova fase da urbanização como uma ideia universalizante. Contudo, esse processo precisa ser compreendido de forma diferente das análises tradicionais do fenômeno urbano. Se não voltamos as fantasias utópicas em que a urbanização planetária produz uma imagem contínua de arranha-céus por todo o planeta.

38Não se trata mais de um estudo urbano centrado na cidade e pautado na lógica dualista. Não é a reprodução da cidade que esse momento da urbanização evoca. Não são os prédios, as ruas, os fios que denominaram a forma do urbano. E sim a generalização do capital fictício, da mercadoria, da especulação imobiliária. Ou a Los Angeles vista por Allen Scot (2018) e a Calcutá analisada por Ananya Roy (2009; 2016), não apresentam essas características?

39Para dar mais clareza a essa transição temos o instigante e preciso esquema proposto por Regina Tunes (2023).

Figura 2 : Transição da problemática do urbano

Figura 2 : Transição da problemática do urbano

Fonte: TUNES, 2023, p.5

40 Do lado esquerdo da imagem estão sintetizadas as principais características do processo de urbanização do século XX. Nesse momento é possível visualizar as formas urbanas tipicamente fordistas que os estudos urbanos pautados na cidade esgotaram. E ainda, a lógica dualista que moldou grande parte da singularidade do urbano clássico, sendo aquele que não é o campo, que não é o rural, que não é a periferia.

41 Do lado direito da imagem temos resumido as lógicas que fundamentam esse novo momento da urbanização. Sendo possível encontrar as finanças, a policentralidade, a dispersão e as paisagens operacionais, responsáveis pelo surgimento de formas urbanas extremamente distintas das empregadas nos estudos clássicos sobre o urbano.

42 Paulo Cesar Xavier Pereira (2013) evidência com mais clareza a ideia de que estamos passando, ao afirmar que “esse conjunto de produtos, formas de produção e apropriação imobiliária configura a emergência do espaço metropolitano e dissolução do urbano da cidade antiga” (p.105).

43 Nesse momento a vida dos limites orgânicos da cidade dá lugar a vida nos limites indefinidos da região. Um exemplo nesse sentido é a megarregião Rio de Janeiro e São Paulo proposta por Sandra Lencioni (2015a). Esse espaço metropolizado concentra intensa integração produtiva, forte interação com a economia global e grande densidade de movimentos pendulares (LENCIONI, 2015a).

44No caso em exame, a dispersão urbana tem como contraposto a ideia de unidade, precisamente de uma unidade historicamente constituída, uma vez que o urbano se constitui como feito humano, como produção social. Portanto, estamos a falar de fragmentação de uma unidade, de fragmentação de uma totalidade. E, também estamos a falar de dispersão e de seu contrário, a concentração. (Lencioni, 2015a, p.9).

45A nossa ideia é de que em consonância a virada espacial do processo de urbanização exista também indícios de uma virada visual, em que a integração na fragmentação, a dispersão da metrópole para além dos limites metropolitanos (LENCIONI, 2017) e as paisagens operacionais, fazem surgir uma nova e diversificada maneira de reconhecer o fenômeno urbano.

46A representação desse urbano não se trata mais da singularidade da cidade, e sim de múltiplas e indeterminadas representações do capitalismo contemporâneo, em que as megarregiões, as zonas de extração, as paisagens operacionais e, até mesmo as obras de arte, vão apresentando maneiras de reconhecer o fenômeno urbano.

Retratos do novo urbano

“(...) A realidade urbana e sua problemática fragmentam-se indefinidamente, na teoria e na prática, em representações esparsas” (Henri Lefebvre, 2001, p.145).

47A visualidade do fenômeno urbano em sua forma clássica, com círculos concêntricos, um centro bem definido e uma realidade orgânica, encontrou maneiras fáceis de ser representada. As particularidades de representação do urbano pela Escola de Sociologia Urbana de Chicago, por exemplo, ofereciam visões sugestivas da cidade de Chicago e uma forma de interpretar o fenômeno urbano.

48A renovação dos estudos urbanos em escala global reflete em imagens extremamente diversas, permitindo pensar em uma metamorfose não só do processo de urbanização, mas também de sua representação. Esse cenário apresenta o desafio de representar os intensos e múltiplos fluxos da realidade virtual dos mercados financeiros globais, as macroestruturas das megarregiões e as paisagens operacionais devastadas das zonas de extração.

49Segundo Gillian Rose (2001) as imagens nunca são janelas vazias para o mundo. Quando fazemos uma representação, estamos tentando passar uma ideia por meio dos elementos particulares de um fenômeno. É dessa maneira que os estudos urbanos do século XX se apropriou da imagem da cidade.

50Os mapas cubistas do século XX representam a cidade orgânica, com limites bem definidos. Assim a simbologia da cidade explodiu, e qualquer representação da cultura urbana incluía a imagem da cidade, dos prédios e da indústria. Não é difícil encontrar fotografias, vídeos, filmes e gráficos nesse sentido. Uma simples pesquisa no Google com o termo “urbanização planetária” revela prédios, fios e ruas como ícone dessa representação.

51Embora essas imagens continuem a representar o urbano de hoje, elas não capturam totalmente a visualidade desse processo contemporâneo. Não é o mundo de cidade única de Fuller (1927) que encontramos ao ver imagens de zonas de extração. Nessas áreas, não são prédios que dominam a paisagem, mas sim a magnitude de um cenário devastado.

52Ao tentar representar a realidade urbana de hoje, devemos referenciar as telas gigantes do expressionismo abstrato. O caos inerente a cada atributo desse movimento artístico encontra substância nos intensos e múltiplos fluxos do capital fictício contemporâneo. Um exemplo disso é a obra "Los Moscos" (2004) de Mark Bradford, que oferece uma impressão da capacidade infinita de expansão dos fluxos, onde não há começo, fim ou mesmo um centro definido.

Figura 3 : Los Moscos de Mark Bradford

Figura 3 : Los Moscos de Mark Bradford

Fonte: Acervo pessoal. Londres, 2024.

53A imagem anterior pode causar estranheza, mas o caleidoscópio de um espaço sem moldura representa muito bem a multiplicidade e intensidade dos fluxos de mercadorias, pessoas e informações presentes no urbano de hoje. A obra de Bradford, com suas camadas complexas e texturas intrincadas, captura a essência da urbanização contemporânea, caracterizada pela fluidez e pela falta de contornos definidos.

54Aos poucos, a representação única do urbano vai ruindo, e os limites de um município não conseguem mais explicar o que acontece na escala do lugar. Esse desmantelamento dos limites tradicionais exige o surgimento de novas maneiras de representação cartográfica. As representações clássicas, como mapas com linhas de fronteira rígidas, já não são suficientes para capturar a complexidade da urbanização atual.

55Um exemplo nesse sentido é a representação cartográfica da urbanização da Suíça, apresentado por Christian Schmid (2014). Buscando representar um país completamente urbanizado com paisagens urbanas que fogem da noção clássica de cidade, o ETH Basel, produziu uma representação espacial nova e alternativa da Suíça urbana, como podemos ver a seguir.

Figura 4 : Topologias de uma suiça urbana

Figura 4 : Topologias de uma suiça urbana

Fonte: SCHMID (2014, p.408)

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57 A imagem anterior define e caracteriza cinco tipos de urbanização. Essas tipologias esboçam uma imagem da Suíça como um país urbano, detalhando cada forma de urbanização e seu tipo relevante de formação. Surpreendentemente, há uma total ausência de limites territoriais, sejam eles municipais, estaduais ou nacionais. Essa abordagem sugere que a urbanização transcende as fronteiras administrativas tradicionais, refletindo uma integração espacial mais complexa e interconectada.

58Não é difícil encontrar semelhanças entre o mapa apresentado por Schmid e a obra de Mark Bradford, mencionada anteriormente. Ambos os trabalhos oferecem uma visão do espaço urbano que desafia as representações convencionais e sublinha a complexidade do fenômeno urbano contemporâneo. Além disso, a ausência de limites territoriais explícitos no mapa de Schmid aponta para uma nova compreensão do espaço urbano, onde a infraestrutura e a conectividade são mais importantes que as fronteiras geográficas.

59 Uma outra mudança impactante nessa representação é o surgimento de capas de livros que fogem do clássico urbano. Obras que desenvolveram a problemática do urbano clássico apresentavam capas onde era fácil encontrar a vastidão de prédios como forma universal do urbano, como por exemplo na obra A questão Urbana (1983), de Manuel Castells. Contudo, nas últimas décadas é possível encontrar novas maneiras de representar o urbano, como a capa da obra de Neil Brenner (2014a), mostrada a seguir.

Figura 5 : Capas de livros sobre o urbano.

Figura 5 : Capas de livros sobre o urbano.

Fonte: Castells, 1983; Brenner, 2014.

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61No lado direito da imagem anterior temos a capa da obra A Questão Urbana (1983), de Manuel Castells. O livro que é um clássico dos estudos urbanos adota a simples imagem da cidade para representar uma questão tão abrangente como os estudos urbanos. Do lado direito da imagem, temos a obra de Brenner que expõe em sua capa uma representação do urbano que até pouco tempo não seria nem concebida como urbano.

62Fotografias como essa, retirada por Garth Lenz, no campo de petróleo das Areias Bethuminosas do Athabasca, no Canadá, oferecem um panorama inquietante de representar o urbano contemporâneo. Essa paisagem operacional produto da urbanização extensiva, fornece novas perspectivas críticas para pensar a condição urbana em sua escala planetária.

63Não se trata mais da cidade, se trata de imagens fractais de um urbano que integra interesses financeiros, coorporativos, valoriza e revaloriza terras, transcendem ambientes, devasta sociedades e destrói tudo a sua frente. Nessas condições, fica evidente novas maneiras de representar o fenômeno urbano. E mais, fica evidente a urgência de novas teorias, análises, cartografias e obras de arte, que situem adequadamente, as múltiplas imagens fractais de um urbano, aparentemente, sem limites.

Considerações finais

64 Neste ensaio procuramos argumentar que os estudos urbanos historicamente centralizam suas análises na cidade como forma universal de organização espacial. Está perspectiva, legado da Escola de Sociologia Urbana de Chicago, vem se mostrando insuficiente para capturar as transformações complexas do momento atual do processo de urbanização.

65Ernest Burgess e Robert Park, em "The City" (1925), estabeleceram uma visão que universalizou a cidade como a unidade básica de análise dos fenômenos urbanos, em que a indústria e a concentração espacial formavam os elementos centrais dessa configuração, com zonas fáceis de serem caracterizadas, como por exemplo, os círculos concêntricos que delineavam as zonas de transição de cada atividade.

66A cidade, na visão de Burgess e Park, se tornou a forma universal do urbano, uma perspectiva que persistiu por décadas e foi reforçada por representações visuais e culturais. Esta abordagem, que associava indissoluvelmente a cidade ao urbano, não é capaz de capturar a natureza dinâmica e expansiva dos processos urbanos contemporâneos.

67Com o avanço do capitalismo financeiro e a globalização da economia, a forma urbana clássica deu lugar a novas configurações espaciais. A urbanização com nova natureza transcendeu os limites da cidade, englobando uma ampla rede de infraestruturas e paisagens operacionais que vão além das fronteiras tradicionais.

68Henri Lefebvre, em "A Revolução Urbana" (1999), já vislumbrava uma sociedade completamente urbanizada, onde a distinção entre urbano e rural se desintegrava. Esta urbanização planetária implica uma dispersão espacial que desafia a lógica dualista e orgânica da cidade.

69 A complexidade da urbanização contemporânea manifesta não só uma nova virada espacial, como também uma virada visual, representando a necessidade de novas formas de representação e análise. A visualidade tradicional, com seus mapas concêntricos e limites bem definidos, não consegue mais capturar a essência do urbano atual.

70Obras como "Los Moscos" de Mark Bradford e as representações cartográficas de Christian Schmid sobre a Suíça urbana, exemplificam essa nova abordagem visual e espacial. Desafiando a noção clássica de cidade e oferecendo visões fragmentadas e integradas que refletem a dispersão e a complexidade dos fluxos de capital, mercadorias e pessoas.

71A mudança também se reflete na literatura acadêmica, em que capas de livros sobre estudos urbanos, como os de Neil Brenner, retratam paisagens operacionais de zonas de extração ao invés de meros aglomerados urbanos. Essa transição visual simboliza a necessidade de novas teorias e análises que possam capturar a multiplicidade e a extensão dos fenômenos urbanos contemporâneos.

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Notas

1 Influenciado pelas perspectivas de Henri Lefebvre e Michel Foucault, o termo virada espacial ganhou ênfase a partir da década de 1970 com o surgimento de abordagens críticas sobre o espaço. Isso possibilitou a difusão sem precedentes do pensamento espacial e a superação da ideia do espaço como palco da ação humana para a compreensão do espaço como meio, condição e produto de uma sociedade diferenciada por classes.

2 Sandra Lencioni (2015a, p.150) afirma que “o domínio e direção do processo de reprodução não estão nas mãos do capital industrial, mas na do capital financeiro”. Isso se realiza na produção e valorização do espaço como ativo financeiro fictício. Um exemplo nesse sentido é a atuação do mercado imobiliário que transforma o ativo imobiliário em ativo financeiro, desmaterializando o imóvel, que se torna um ativo no mercado financeiro.

3 Para elucidar melhor a nossa alegação podemos pensar no filme Megalópoles, do renomado diretor Francis Ford Coppola. O longa conta a história de um arquiteto que quer reconstruir a cidade de Nova York como uma utopia após um desastre devastador. A imagem dessa reconstrução não tão difícil de ser encontrada, é a de um vasto mar sem fim de prédios.

4 Para melhor aprofundamento do conceito ler Lencioni (2007; 2021).

5 Termo utilizado aqui para as diversas denominações de cidade que se apresentam de forma metafórica e surgem para cobrir os estudos urbanos.

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Índice das ilustrações

Título Figura 1 : O crescimento da cidade
Créditos Fonte: Burgess e Park, 1925, p.50
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/28654/img-1.png
Ficheiro image/png, 31k
Título Figura 2 : Transição da problemática do urbano
Créditos Fonte: TUNES, 2023, p.5
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/28654/img-2.png
Ficheiro image/png, 45k
Título Figura 3 : Los Moscos de Mark Bradford
Créditos Fonte: Acervo pessoal. Londres, 2024.
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/28654/img-3.jpg
Ficheiro image/jpeg, 93k
Título Figura 4 : Topologias de uma suiça urbana
Créditos Fonte: SCHMID (2014, p.408)
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/28654/img-4.png
Ficheiro image/png, 384k
Título Figura 5 : Capas de livros sobre o urbano.
Créditos Fonte: Castells, 1983; Brenner, 2014.
URL http://journals.openedition.org/espacoeconomia/docannexe/image/28654/img-5.png
Ficheiro image/png, 1,3M
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Thiago Rodrigues, «Virada espacial e urbanização planetária: repensando a visualidade dos estudos urbanos»Espaço e Economia [Online], 28 | 2025, posto online no dia 05 fevereiro 2025, consultado o 18 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/28654

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Autor

Thiago Rodrigues

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO)

24thiagorodrigues@gmail.com

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Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC-SA 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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