1A canção “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, faixa do sétimo álbum de Erasmo Carlos, de 1971, retornou com força mais de meio século após seu lançamento. Com uma letra marcante escrita por Roberto Carlos e sonoridade angustiante composta pelo seu próprio intérprete, se tornou a principal música da trilha sonora de “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva (de 2015), estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello e mundialmente premiado, culminando com o agraciamento recente de Melhor Filme Estrangeiro na Cerimônia do Oscar 2025.
2Trata-se de um filme acachapante, doloroso, potente, que revela a beligerância do período entre 1964 e 1985, quando o país viveu sob uma Ditadura Militar, marcado por perseguições contra o pensamento dissonante e violência do próprio aparato de Estado. Foi muito simbólico para mim que ao final ao final da exibição na sala de cinema onde pude assistir ao filme tenha ocorrido uma efusiva sessão de aplausos. Porém, isso não apaga o fato de que grande parte da população do país não somente encontra motivos para defender o nefasto período ditatorial, como vota naqueles que advogam pela realização de perseguições ideológicas, de gênero, de raça, religiosas e prometem o desmantelamento da educação, da cultura, da proteção do meio ambiente e da própria democracia nacional.
3Não se trata de um fenômeno apenas nacional: a ascensão e eleição de figuras políticas de extrema-direita em várias partes do mundo têm sido assombrosas por mesclarem discursos discriminatórios, autoritários e excludentes e flertarem fortemente com ideologias nefastas de um passado não tão remoto. A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni; o presidente da Argentina, Javier Milei; e Donald Trump, recém-empossado presidente dos Estados Unidos são exemplos destacados de políticos extremamente conservadores, com estratégias socioeconômicas antiminorias e bastante agressivos contra aqueles que discordam de suas ideias. Além disso, adotam um modelo econômico que mescla apoio às empresas nacionais e o enxugamento dos gastos e da própria burocracia do Estado, com combate a investimentos em políticas sociais, como educação, saúde e moradia.
- 1 Ou do “globalismo”, uma ideia apocalíptica e conspiracionista dos seus detratores e que combinaria (...)
4Neste cenário, uma indagação se faz necessária: podemos ainda chamar este modelo de neoliberalismo? Entre muitas referências possíveis, recorrerei à obra do geógrafo britânico David Harvey, O Neoliberalismo: História e Implicações (do original “A brief history of neoliberalismo”) (2008 [2005]), livro que tive a chance de publicar uma resenha um ano após o seu lançamento no Brasil (Oliveira, 2009). De forma sintética, podemos afirmar que: (i) políticos como Donald Trump, Javier Milei ou mesmo o ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, não veem o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial como representantes legítimos de suas ideias conservadoras nem centros de propagação de implantação do fundamentalismo do livre mercado. FMI e Banco Mundial seriam agentes da globalização1, outrora fundamento central para os neoliberais na condição de defensores das quebras de barreiras alfandegárias da economia de mercado, mas que hoje é combatida com políticas protecionistas e taxações diversas por estes novos governos; e (ii) a deslegitimação da ideia de liberdade, mas também das noções de identidade e multiculturalismo, por meio de um forte questionamento da retórica recentemente defendida pelos grupos hegemônicos.
- 2 O fortalecimento do braço coercitivo do Estado é algo central no neoliberalismo segundo David Harve (...)
5Todavia, David Harvey (2008 [2005]) já destacava a falsidade ideológica do livre comércio, uma vez que a quebra de barreiras alfandegárias não suplantava os protecionismos e servia prioritariamente para dilatar as fronteiras da periferia econômica mundial para as mercadorias dos países centrais. Porém, além disso, 20 anos após a publicação de sua obra: (i) fortalece-se o processo que pode ser sintetizado como recolonização – ou colonialismo sem colônias – como estratégia imperialista promulgada pelos Estados Unidos, algo visível nos recentes pronunciamentos de Donald Trump, discursando sobre anexar a Groenlândia e o Canadá e renomear o Golfo do México; (ii) torna-se mais evidente o braço coercitivo do Estado, não somente restrito a encampar as guerras antiterror ou apoiar golpes nas periferias do mundo, mas abrangendo ações violentas contra sindicatos, movimentos sociais, organizações e coletivos diversos, universidades e todos os grupos de resistência2; e (iii) consolida-se a “financialização de tudo”, que envolve o pleno domínio das finanças sobre as outras áreas da economia e a continuidade do modelo de privatização, austeridade fiscal, demissão em massa de servidores públicos e enxugamento do Estado. O neoliberalismo permanece como uma espécie de desculpa encontrada para que o Estado, antes de se ocultar ou enfraquecer, trabalhe em prol do mercado e do grande capital (Oliveira, 2009).
6Na obra “A nova razão do mundo: ensaio sobre o neoliberalismo”, de Pierre Dardot e Christian Laval (2016 [2010]), debate-se algo fundamental para nossa reflexão: a emersão de um padrão de governo empresarial, por intermédio de um verdadeiro culto à firma, como marca do neoliberalismo. Isso significa uma gestão compartilhada por modelos de governança público-privada sob fórmulas de gerencialismo, a mercadorização da gestão estatal e a própria subversão da democracia e dos direitos dos cidadãos. Nesse modelo de Estado, o vocabulário empresarial é adotado por seus agentes, com a privatização da construção das normas, hibridação das ações públicas e privadas e egoísmo das ações empreendidas, substituindo-se a perspectiva coletiva pela corporativa e os interesses gerais por particulares. Assim, o Estado passa a ser compreendido como empresa e o lucro se torna a sua razão principal, de maneira que se prioriza as noções mercadológicas de eficácia e desempenho, se provoca o esvaziamento do planejamento e da gestão da coisa pública e se transforma gradualmente direitos em serviços.
7Portanto, em meio a essa complexa arena política e econômica, o modelo neoliberal se transforma e se reforça, e mesmo os governos progressistas sofrem com uma verdadeira camisa-de-força dos preceitos mercadológicos. Como se não bastasse isso, o atual governo de Luís Inácio Lula da Silva, Presidente da República do Brasil empossado em 2024, tem enfrentado diferentes desafios para retirar o país dos escombros após dois governos desastrosos pós-golpe jurídico-parlamentar de 2016, de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022).
8Há muitos desafios, problemas, limites e mesmo erros no atual governo do país. Um dos maiores enfrentamentos atuais é o rapto do orçamento público pelo Poder Legislativo por intermédio das emendas parlamentares, em seus diferentes modelos (individuais, de bancada ou de comissão). A capacidade de execução de valores direcionados pelos próprios parlamentares criou profundas alterações na estrutura política nacional, pois tanto alterou o papel dos deputados federais e senadores – outrora legisladores, hoje direcionadores de investimentos – quanto diminuiu a capacidade do Poder Executivo Federal de executar políticas públicas e empreender grandes projetos. Mas como se não bastasse essa reserva de alocação dos recursos para atendimento de interesses políticos de cada parlamentar, no ano de 2025 a Lei Orçamentária Anual (LOA) permanece até o presente momento sem aprovação pelo congresso, impedindo desde as recomposições salariais do funcionalismo público já programadas e até colocando em risco toda a estrutura de funcionamento dos organismos públicos do país. Sem poder mobilizar investimentos, o governo se torna refém do congresso, bem como se consolida um certo imobilismo na capacidade de empreender ações genuinamente capazes de alterar o cenário econômico nacional.
- 3 Cedro arremata área de Itaguaí e investirá R$ 3 bilhões em novo porto, Brasil Mineral, 19 de dezemb (...)
9Sem capacidade de grandes investimentos, o modelo de parceria público-privada e de concessões se torna a regra. Eu pude participar da cerimônia de concessão do Terminal ITG02 no Porto de Itaguaí (RJ) e anúncio de recursos do Fundo da Marinha Mercante, onde o novo terminal apelidado de “Área do Meio” foi arrematado por R$ 3,58 bilhões – do maior valor já obtido em leilões do setor portuário – pela mineradora Cedro Participações S.A., holding fundada em 2016 que já opera duas minas na região de Nova Lima e que também tem investimentos no agronegócio e no setor imobiliário3. Na cerimônia, onde estiveram presentes diversas autoridades, políticos e empresários, destacou-se a participação do presidente Lula da Silva (Presidência da República, 2025).
10As últimas pesquisas de opinião revelavam naquele momento sinais de queda de popularidade do governo Lula. Com os preços altíssimos de alimentos e outros itens importantes, os juros estratosféricos regulamentados pelo Banco Central e a perda da capacidade de compra da classe média, também era (é) grande a dificuldade de construir uma agenda positiva capaz de congregar a opinião pública. Em seu discurso, Lula se mostrou ciente de tudo isso; destacou novamente a importância de parcerias com empresários com visão estratégica, defendeu a industrialização e o pleno emprego como caminho para avançarmos economicamente e clamou pela defesa da coisa pública, em especial no que se refere à educação, com novos investimentos na rede de institutos federais de ensino e no projeto Pé-de-Meia, um novo programa de incentivo para permanência e conclusão escolar para estudantes do ensino médio (Estadão Conteúdo, 2024). Mais que estratégias, são ações cujos maiores desafios são criar possibilidades de mobilidade social e promover alternativas ao modelo produtivo desenvolvimentista, excludente e ambientalmente catastrófico.
11As sombras do projeto autoritário, violento, excludente e persecutório permanecem projetadas sobre as eleições brasileiras de 2026. Há quem advogue pela anistia daqueles que invadiram e depredaram as sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto em 08 de janeiro de 2023. A Intentona Bolsonarista (Rocha de Barros, 2023) em busca de um Golpe de Estado continua nas trocas de mensagens de aplicativos de telefone celular de grande parte da população brasileira. É preciso fortalecer o Estado brasileiro e criar políticas públicas potentes para que possamos assistir “Ainda estou aqui” como uma belíssima lição de história, e não com o receio de que o futuro poderá repetir o passado.
12É preciso dar um jeito!