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Rússia, Estados Unidos e a Guerra na Ucrânia: o conflito seguiria uma clássica lei da geopolítica?

Russia, United States and the Ukraine war:Would follow the conflict a classic geopolitic law?
Rusia, Estados Unidos y la Guerra de Ucrania: ?Seguiria el conflicto una ley clásica de la geopolítica?
La Russie, les État Unis et la Guerre en Ukranie:Le conflict suivra-t-il une loi classique de la géopolitique?
José Alexandre Altahyde Hage

Resumos

O objetivo deste ensaio é analisar a possível relação da guerra entre Rússia e Ucrânia com teoria clássica geopolítica e do pensamento político, de autores como Alexis de Tocqueville, Halford Mackinder e Francis Fukuyama. Por conseguinte, o texto também procura compreender se a oposição entre poder territorialista russo, versus poder naval norte-americano, consagrada pela teoria geopolítica, teria validade e se haveria correspondência dela com essa guerra europeia. Em outra instância, o texto também procura compreender os dilemas da atual geopolítica russa.

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Introdução

1Este texto faz parte de reflexão que não tem intenção de ser original sobre questão que demanda demorado estudo. Nosso intuito é tão somente contribuir para que o debate busque audiência diversificada sobre conflito que tomou parte em um continente que se enxergava como acima dos pressupostos realistas ou das demandas geopolíticas. Em princípio, nosso objetivo não é compreender as razões da guerra entre Ucrânia e Rússia, mas se haveria relação dela com algum pressuposto do pensamento geopolítico e se ela seria esperada pela sua teoria.

2Em coletânea organizada por Stefano Guzzini é demonstrado que, apesar dos arranjos institucionais da União Europeia, a prática da geopolítica se manteve na Europa após a Guerra Fria, quando se acreditava na extinção de comportamentos contraproducentes para a diplomacia. Rússia, Turquia e Alemanha não ficariam indiferentes aos novos tempos, apresentando políticas revisionistas. Neste ponto, há três aspectos:

31, a Rússia passaria por processo de reconstrução de seu poder nacional para sair da solvência na qual fora jogada nos anos 1990. A emergência do poder russo atrapalharia planos ocidentais para atrair antigas posses da ex-União Soviética, como Geórgia. 2, a Turquia não deixaria de se esforçar para ser polo de atração sobre áreas turcófonas que pertenciam ao espaço soviético. 3, a própria unificação alemã seria suficiente para indicar interesse por alguma questão europeia, como o reconhecimento diplomático da Croácia antes de 1995 (Guzzini 2020).

4Por que a geopolítica retorna à Europa, que tanto esforço empregou para superar a era das soberanias nacionais, inaugurada pelo Tratado de Westfalia, de 1648, para adotar regime no qual o poder dos Estados é relativizado em nome do progresso moral, considerado enriquecedor em diplomacia? Será por que ainda há imbróglios que não foram tão bem resolvidos?

5Com efeito, foi depois da Guerra Fria que ocorreu o fratricídio eslavo, entre herdeiros da tradição católico-romana dos croatas (daí o reconhecimento alemão), contra o legado católico-ortodoxo dos sérvios. Também foi depois de 1991 que houve “limpeza étnica” sobre bósnios islâmicos. E ainda poderemos falar na criação de mais Estados resultantes desse drama: Eslovênia, Eslováquia e Moldávia. Apesar dos esquemas intelectuais que indicavam a diminuição da política do poder, a geopolítica foi a expressão mais bem acabada que incentivou a criação de novas unidades políticas e o sentimento de insegurança (Kaplan 2013).

6Por conseguinte, a guerra entre Rússia e Ucrânia não é somente um embate militar no Velho Mundo; ela é também uma guerra por procuração. Trata-se de enfrentamento entre duas concepções políticas na qual uma das pontas está na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a aliança que congrega, praticamente, todo o continente europeu sob a liderança e fomento dos Estados Unidos, o centro que concebe o que deve ser enfrentado militarmente, bem como parte dos custos que são cobertos pelos Estados-membros. Cabe a Washington se encarregar financeiramente pela maior parcela da organização, bem como pela montagem do programa estratégico que a entidade deve adotar.

7Do outro lado da arena está a Rússia, país chave que herdou o espólio da antiga União Soviética, deixando uma cena de angústia e incertezas. Isto porque o fim da Guerra Fria não traduziu aquilo que se esperava em grande parte pelos entusiastas da nova ordem: democratização da política internacional, desenvolvimento geral, liberalização comercial etc. Aos poucos, o mundo havia voltado à tradicional política do poder, na qual as fronteiras, tamanho do território e da demografia passaram novamente a contar (Kaplan 2013).

8Após breve período de idealismo, de 1990 a 1994, a Europa já havia voltado a ser palco de guerras convencionais. O desmantelamento da antiga Iugoslávia e os desdobramentos violentos daquele conflito, com recriação de novos Estados territoriais, alguns sob princípios étnicos, nos revelou que a paz esperada seria apenas questões de tempo para que acabasse. Tanto os Balcãs quanto a Rússia ressurgida ainda teriam papel a cumprir em uma ordem que fora condicionada para ser dirigida por uma única superpotência.

9Os Estados Unidos, durante os anos 1990, haviam levado a OTAN a dar cabo dos impasses militares da ex-Iugoslávia; talvez (ou por causa disso) o poder americano tenha se visto como necessário para cumprir tarefa que se julgava ter sido essencial após o fim da Guerra Fria: enquadrar a Rússia na condição de potência periférica e limitada dentro de sua tragédia política e econômica, que a retrocedeu politicamente ao século XIX (Mello 1999).

10Washington haviam tomado gosto por resolver certos problemas europeus. A guerra dos Balcãs, dos anos 1990, havia deixado claro que as potências regionais não tinham condições de neutralizar o conflito. Os Estados Unidos haviam liquidado a fatura ao autorizar intenso bombardeio da OTAN sobre Belgrado. Se a intensidade daquela guerra havia diminuído consideravelmente, então, por que não enfrentar a Rússia e concluir o jogo?

11A guerra entre Rússia e Ucrânia cumpriria uma clássica lei da geopolítica, uma vez que ela marcaria o embate entre uma potência marítima, os Estados Unidos, contra uma potência continentalista ou territorialista, a Rússia, como o Estado pivô de Mackinder? Estas são questões que chamam atenção por não terem respostas fáceis. Mesmo assim, vamos nelas adentrar.

12Um estudo que procura versar sobre conflitos entre uma potência marítima contra outra, territorialista, não diz respeito somente ao andamento da guerra entre Rússia e Ucrânia, esta como procuradora da OTAN e dos Estados Unidos em particular. O estudo pode ser esforço ajudar reflexões sobre o processo no qual se desenvolve a geopolítica contemporânea e sua relação com o passado, mas que ainda persiste em influenciar o presente

13Por isso, apontamos que nosso procedimento metodológico discorre da seguinte forma: para compreendermos um aspecto da atual guerra europeia é lícito utilizarmos de revisão de literatura tradicional e referencial para estudos de geopolítica e do pensamento político tradicional. A razão para isso é que tal embate não está registrado apenas nos imperativos políticos da atualidade, sua existência pode ser resultado de forças antigas que não foram concluídas de modo satisfatório para as grandes potências nos últimos quarenta anos.

14Utilizaremos, para tanto, obras que acreditamos ter coerência para nosso propósito, embora possam ter visões diversas em vários aspectos: Alexis de Tocqueville, Halford Mackinder, Raymond Aron, Francis Fukuyama, Sergei Karaganov, John Mearsheimer, dentre outros; obras clássicas e modernas do pensamento político e da geopolítica. Por fim, em virtude da complexidade do assunto nosso intuito é tão somente contribuir para o debate e abrir caminho a artigos que possam aprofundar mais nesse tema.

15Além desta introdução, o texto está organizado em três partes. Na primeira, o intuito é versar sobre o pensamento político tradicional e sua ligação com a geopolítica moderna. Na segunda parte, trata-se de examinar a política internacional dos anos 1990 e 2000 para que se tenha ideia das condições que permitiram a continuação dos Estados Unidos como superpotência marítima e da crise que abarcou a Rússia. A terceira parte examina o possível reaparecimento da Rússia como potência territorialista partir do governo Putin. Por fim, há breves considerações finais.

Uma visão clássica do conflito

16Em 1835 o francês Alexis de Tocqueville escreveu em seu livro mais famoso, A Democracia na América, algo que pode ser relacionado com o período da Guerra Fria, de 1947 a 1991. O autor praticamente enxergou o futuro ao registrar que o mundo seria liderado por duas grandes potências: uma o lideraria pela enxada e engenhosidade; a outra ganharia expressão pela espada, vale dizer, pela centralização, força e violência (Tocqueville 1973).

17 Os países sobre os quais o escritor francês se referia são os Estados Unidos e a Rússia. O primeiro seria a terra da oportunidade e liberdade, que procuraria espalhar a democracia como forma suprema de governo pela virtude. A Rússia, sempre sob comportamento imperial, não deixaria de demonstrar desconfiança e temor perante potências concorrentes de seu tempo.

18Por isso, Moscou utilizaria sentimento de insegurança para alargar cada vez mais suas fronteiras como antídoto para seus temores. Será que o francês vislumbrou a pugna geopolítica poder territorialista versus poder marítimo? Isto é, a máxima de Mackinder, de que na dinâmica da política internacional seria historicamente o embate de uma potência territorialista, ou continentalista, contra outra, marítima? (Mackinder 2011). Embora o livro de Tocqueville esteja longe de promover debate de teor geopolítico pensamos ser lícito citá-lo.

  • 1 Tocqueville antecipa o diagnóstico de George Kennan ao observar que a gênese do poder soviético, de (...)

19Com relação aos Estados Unidos parece-nos que o autor foi providencial: “Quando vejo com que espírito os americanos comerciam, as facilidades com que o fazem, o sucesso que obtêm, não posso deixar de crer que se tornarão um dia a maior potência marítima do globo. São levados a apoderar-se dos mares, como os romanos o foram” (Tocqueville 1973, 270).1

  • 2 Expressão de Antônio Carlos Robert Moraes, quando se refere a análises que autores fizeram sobre ge (...)

20O autor de A Democracia na América apontou o destino que seria verificado em 1900, pelo almirante norte-americano Alfred Mahan, em que caberia ao poder dos Estados Unidos dominar os oceanos para que Washington consolidasse seu poder econômico, inclusive sendo o militar um entusiasta da abertura do Canal do Panamá em 1914. Opinamos que Tocqueville possuía uma “protogeografia”, já que vislumbrou aquilo que Mahan apresentaria setenta anos depois: a junção de poder naval, junto aos britânicos, com o controle das vias marítimas comerciais, dando destaque justamente ao Oceano Pacífico2

21Assim, desde as invasões mongóis da horda dourada do século XVI, sofrendo assédio da Polônia no século XVII, passando pela invasão napoleônica em 1812, pela invasão alemã em 1941 e, (por que não?), a dubiedade ocidental provocada pela expansão da OTAN nos anos 2000, há como compreender o sentimento russo de fragilidade atávica que faz com que o Estado euroasiatico prefira marcar posição pelo “ativismo” diplomático-militar.

22No juízo do Kremlin, esse atavismo não seria sem motivo. Ele resultaria da dubiedade ocidental que procurou levar a OTAN para as bordas do mundo político-cultural russo. Daí houve a procura de aproximação ocidental, e da Aliança Atlântica, a países politicamente complicados, como Geórgia de 2003; Ucrânia de 2004 (Revolução Laranja); Quirguistão de 2005 (Revolta das Tulipas) e, novamente, Ucrânia de 2014 (Euromaindan).

23Desta forma, sobreviver para a Rússia é manter largo espaço tampão, que a separe de seus possíveis adversários: “A insegurança é a emoção nacional russa quintessência” (...) a insegurança de um poder terrestre que precisava manter-se em permanente ataque e exploração em todas as direções, a fim de não ser, por sua vez, sobrepujado (Kaplan 2013, 162/171).

24 Ao iniciar o século XX os Estados Unidos já eram a mais rica economia mundial e o maior receptor de imigrantes, muitos deles provenientes do leste europeu: russos de todas as culturas, poloneses, húngaros etc. A Rússia não somente era exportadora de gente para o Novo Mundo, mas se mantinha sob regime político carcomido e apegado a uma ideia de vida bastante reacionária, o que alimentava ressentimentos de todos os tipos e, certamente, serviu de combustível para os partidários da Revolução Outubro de 1917 (Visentini 2022).

25 Em parte, Tocqueville acertou em sua “profecia”, visto que após a Segunda Guerra Mundial o mundo começou a ser governado por duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, esta passou a existir a partir do legado deixado pelo velho Império Russo para erguer uma estrutura multinacional que abrangia o leste europeu e Ásia Central, sendo todo esse povo ordenado a partir de uma cabeça centralizadora e coercitiva, Moscou:

Há hoje, na terra, dois grandes povos que, partindo de pontos diferentes, parecem avançar em direção ao mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos. Ambos cresceram na obscuridade; e, enquanto os olhares do mundo estavam voltados para outros pontos, colocaram-se repentinamente no primeiro plano das nações e o mundo conheceu quase o mesmo o nascimento e a grandeza de ambos (...) O ponto de partida é diferente, as vias divergem; entretanto, cada um deles parece chamado, por vocação secreta da Providência, a concentrar nas mãos o destino de metade do mundo (Tocqueville 1973, 273).

26Ainda que se fale em artifícios ideológicos para conseguir prestigio internacional os Estados Unidos se consideravam os reais promotores do ideal democrático e liberdade como valores universais e, para isso, fariam intervenções em outros países. Já a União Soviética não se faria de rogada: ela promoveria seus valores socialistas por meios considerados “favoráveis à paz”, como salientava Stalin; ainda que isso fosse fruto de artimanhas políticas para encobrir os reais objetivos soviéticos (Kissinger 2001; Kennan,1947).

27 Da mesma forma que o poder americano, o soviético também não deixou de intervir em outros países para assegurar sua hegemonia ou afastar medidas que pudessem ser consideradas antissocialistas. O Pacto de Varsóvia empregou forças na Polônia, 1954, e na Tchecoslováquia, em 1968; isso em contraposição às intervenções norte-americanas na Guatemala, também em 1954, e na intervenção militar na República Dominicana em 1965.

28 Enfim, eram imperativos da Guerra Fria sob o qual a verdade política e a pureza das iniciativas nem sempre tinham lugar. O que devia imperar era a razão de Estado e instrumentos geopolíticos para subordinar todos os demais sob o comando de Moscou ou de Washington. Mesmo que houvesse um ou outro rebelde o certo seria sua anulação como ator suficiente para enfrentar os dois gigantes: essa foi a sorte, ou infortúnio, de China, Iugoslávia e Índia que posteriormente procuraram constituir seu próprio clube, dos Não-Alinhados, de 1961, que também abriu inscrição para Egito, Indonésia e demais descontentes.

29 Essas citações históricas são necessárias para reforçar o intuito deste texto. Isto porque em 1904 apareceu artigo, clássico para estudos de política internacional que, de alguma maneira, combina com o trabalhado por Tocqueville. Naquele ano Mackinder defendeu a máxima de que um poder naval (sem citar diretamente os Estados Unidos) e Rússia teriam que cumprir uma espécie de lei da natureza, da política internacional (Mackinder 2011).

30 Seria a premissa de que no desdobramento histórico sempre há uma potência marítima contra outra, continentalista ou territorial. Essa lei da natureza política já havia existido na Antiguidade quando Esparta, potência territorial, enfrentou Atenas, potência naval. Da mesma forma, se deu com o Reino Unido, supremo nos mares, contra a França napoleônica que tencionava dominar o continente europeu. Assim, Raymond Aron, observador da geopolítica, percebera que a oposição terra/mar deixara forte marca no século XX:

Não é impossível interpretar a conjuntura atual à luz dos conceitos de Mackinder, vendo a rivalidade entre a União Soviética e os Estados Unidos como um episódio do eterno diálogo entre o poder terrestre e o marítimo, ampliado à escala do mundo contemporâneo. (...) Ajuda a imaginar o mapa do campo diplomático de acordo com o esquema sugerido por Mackinder: a república americana está situada numa ilha, comparável à posição da Grã-Bretanha com respeito à Europa e se esforça para proteger a linha costeira da massa eurasiana” (Aron 1986, 470/475).

31A questão é que para Mackinder essa lei deve ser exercida de tempos em tempos. Na Guerra Fria era esperado que ela fosse encontrada no embate entre Estados Unidos, herdeiros do Reino Unido, e União Soviética, herdeira da França de 1812 ou da Rússia czarista. As ideologias e valores partidários seriam somente tempero para dar gosto à disputa entre as duas repúblicas imperiais (Mello 1999). Pouca validade haveria para a geopolítica se um país era comunista ou capitalista, pois a tônica estava no acúmulo de poder e nos esforços de sobrevivência.

32 O ponto é que os Estados Unidos sobreviveram ao fim da Guerra Fria como potência marítima por excelência. Quem seria a dominadora continentalista, dos grandes exércitos? No começo dos anos 1990 a China não apresentava credenciais para tanto, nem a União Europeia. A Rússia, que saía dos destroços da finada União Soviética não tinha sorte melhor, uma vez que estava quase na solvência como Estado digno desse nome. O país havia retrocedido, com pouca industrialização competitiva e dependente da exportação de commodities.

33 Nos anos 1990, a baleia mahaniana, saiu ilesa da grande disputa; já o urso soviético foi bastante machucado. Será que as feridas cicatrizaram no animal mackinderiano? Ao seguir as linhas dos clássicos no processo político, no qual uma potência naval enfrenta outra territorialista ainda não se esgotou. A Rússia de Putin teria de dar fim a esse impasse, cujo caráter não é individual; não depende dele ou das circunstâncias governamentais - do mesmo modo que não é escolha particular de republicanos ou democratas nos Estados Unidos, mas sim imperativos históricos e geopolíticos (Mello 1999).

34 Com efeito, há como observar que na atual guerra Washington seria a cabeça coordenadora de um pacto militar, OTAN, que congrega potências navais e territoriais como Reino Unido e França, mas que, no final das contas, levaria o prêmio à maior das potências marítimas, os próprios Estados Unidos. De outro lado, há a Rússia de composição continentalista e que se sente bem à medida que suas fronteiras são alargadas e o território cresce.

35 No meio haveria os peões de importância variada, que se filiam a um dos polos disputantes. A começar pela própria Ucrânia, pode-se observar que sua guerra não ocorre por democracia ou direitos diversos, mas sim pelo fato de sua posição estratégica. O Estado ucraniano é “vítima” geopolítica pela posição que ocupa no leste europeu. Ele é área de contenção, ou de passagem, para membros da OTAN. Para a Rússia, a Ucrânia é sua periferia, sem vontade própria, e com tarefa de ser sua primeira zona de defesa. Por outro lado, Bielorrússia fecha com Moscou e Hungria prefere manter-se à distância. Já a Polônia passa impressão de esperar o que vai acontecer para colher resultados a ela convenientes, como se apossar de território ucraniano que Varsóvia julga ser de seu direito histórico.

36 Guardadas as devidas proporções há como repetir expressão dita por político mexicano, Porfírio Diaz (1830 a 1915), quando disse “Pobre Mexico, tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos”. Aqui ficaria assim: pobre Ucrânia, tão distante de Deus e tão perto da Rússia.

37Na definição desta parte do texto, podemos indicar outra passagem de Tocqueville que merece atenção. Nela, o francês entra em um mérito complexo na atualidade das relações internacionais. A saber, seria fato que os Estados democráticos, pensemos no Ocidente, não fazem guerra porque seus governos teriam de dar conta à opinião pública e à pressão social?

38O fim da Guerra Fria, para Francis Fukuyama poderia reproduzir o ideário kantiano da paz perpetua, na qual as repúblicas (possivelmente sinônimo de democracia) não fariam guerras. No caso do professor nipo-americano, isso se daria em virtude do fim dos conflitos ideológicos e pela ascensão de ordem baseada na liberdade comercial, análogo a Kant, como se pode averiguar em seu texto o The End of History? (Fukuyama 30.07.1989).

39 Em Tocqueville, essa premissa aparece, mas o autor não atribui o mesmo parecer que foi aventado no século XX. Apesar de ser uma democracia, os Estados Unidos poderiam fazer guerras, igual a qualquer potência. Isto porque, justamente nas democracias, haveria concorrência e disputas dentro do exército para alcançar melhores postos, progressão na carreira e, portanto, prestígio social – algo crível em sociedades afluentes, cujos membros poderiam também usar a guerra para fazer carreira política. (Tocqueville 1973).

40 Nesse diapasão, parece que Hedley Bull não estaria tão distante do autor de A Democracia na América, uma vez que o primeiro percebe os democráticos Estados Unidos e Reino Unido, bastantes interessados na manutenção da ordem mundial por meio do poder militar (Bull 2001). Preceito que traria prestígio para os operadores militares e políticos de Washington, como a Guerra do Golfo, de 1991, e da Guerra das Malvinas, em 1982.

41Por fim, será que a premissa do mar contra a terra; da enxada contra a espada, ainda tem validade? Por que não o teria, se o clima internacional é propicio para tanto? É necessário esperarmos pelo desfecho da guerra entre Rússia e Ucrânia para aclarar mais o caso. Os Estados Unidos, com colaboração da Grã-Bretanha, ainda mantem o coroamento de controlador dos oceanos; e a Rússia, apesar de tudo, continua a ser o poder eurasiático. Na próxima parte examinaremos as condições que permitiram aos Estados Unidos se conservarem como hiperpotência, assim como a profunda crise pela qual passou a Rússia.

Os anos 1990 e a angústia russa

42 Com o final da Guerra Fria deu-se a entender que a pugna continentalismo versus oceanismo havia deixando de existir em virtude da queda da potência que existia a partir do poder territorial, a União Soviética. A questão é que os Estados Unidos, a potência marítima da vez, emergira como incontestável para qualquer um na chamada nova ordem internacional – transformava-se na hiperpotência, algo sem igual na moderna cronologia da política internacional. Seria o vaticínio de Tocqueville, passando pela letra de Mahan e a derrota de Mackinder? Seria o malogro da premissa de que a potência preeminente seria continentalista?

  • 3 Um dos problemas da Rússia é sua contínua diminuição demográfica para um Estado que é duas vezes o (...)

43 A Rússia desestruturada, econômica e politicamente teria que se preocupar em não diminuir tanto em demografia3 quanto em território: Moscou não possuía nenhuma possibilidade de ser centro contestador da ordem americana; pelo contrário, os anos 1990 foram bastante angustiosos para o poder russo. Isto porque o Estado pivô eurasiano, que fora dominante em uma parte do mundo, até os anos 1980, passou a ser visto como país do Terceiro Mundo melhorado.

44 Uma das amostras da desestruturação política russa em seu renascimento, como Estado territorial, pode ser observada no padrão de vida, que havia caído para baixíssimo nível para um país europeu que, apesar de tudo, conseguira superar os problemas sociais mais prementes. A crise geral russa nos anos 1990 fez com que a expectativa de vida da população tivesse caído de modo desconhecido pelas sociedades industrializadas (Gowan 2003).

45 Enquanto a Rússia procurava não desaparecer como Estado regular, uma produção intelectual e acadêmica surgia para promover determinados debates que muito ganho obteve no decorrer daqueles anos. Ao voltar a Fukuyama, o autor utiliza o argumento de George F. Hegel (1770 a 1831) para expressar a ideia de que a história haveria acabado justamente com o fim da Guerra Fria e do desaparecimento da União Soviética – da mesma forma que o filósofo alemão observou, quando viu Napoleão Bonaparte varrendo o Antigo Regime na maior parte do continente europeu: ali a história havia virado a página.

46 A premissa de Fukuyama é a de que o significado do fim da história é o sepultamento de ideias que procurassem ser alternativas às defendidas pelo Ocidente: democracia liberal, livre-comércio e relativização da soberania, considerando que a vida dos Estados seria regulada pelas organizações internacionais. Não haveria mais espaço para outras experiências que não fossem a liberal. O fim da história seria também o fim dos socialismos (Fukuyama 30.07.1989).

47 A era aberta pelo ocaso do grande embate geopolítico permitiu a emergência de algumas visões, otimistas com os novos tempos na medida em que vislumbravam uma ordem internacional mais aberta, mais democrática e assentada no respeito ao direito internacional. Nesse esquema havia a máxima de que a relativização da soberania, do poder político, seria salutar para instituir aquilo que a “comunidade internacional” esperava.

48 Respeito ao meio ambiente, democracia liberal, livre-mercado, desarmamento, acato ao direito dos tratados, seriam as boas novas, as disjuntivas, para David Held, indicadas para compreender o começo de um tempo mais politicamente sofisticado ao ter como plataforma a racionalidade dos atores ao se tratar de desenvolvimento econômico, assunto particular dos países do Hemisfério Sul, e da segurança internacional, delicado para a Rússia (Held 1991). As disjuntivas modificariam a ordem esgotada pela Guerra Fria e inauguraria um convívio baseado nas virtudes que eram represadas pela corrida do terror.

49 Estamos falando da globalização. Essa modelagem socioeconômica que muito assunto provocou nos anos 1990 e 2000. Ao mesmo tempo em que globalização poderia ser exaltada como ponto alto da cooperação sociopolítica internacional, de grupos contestadores contra o capitalismo, ou injustiças internacionais, ela poderia ser instrumento de conservação da hierarquia entre Estados, reforçando ideologia a favor das grandes potências e contando com anuência de países pobres que acreditavam no fenômeno supranacional.

50 No final, o que ficou da globalização foi sua imagem como fruto de artimanhas, ou da combinação, entre o sistema financeiro comandado por Nova York e Londres, mais a tecnologia fomentada pela indústria de informática. Juntos, esses atores conseguiram fazer com que as finanças internacionais ocupassem papel ímpar na economia global, de liberalização de investimentos sem reservas e da aceitação de produtos e serviços bancários que, em princípio, não eram bem quistos pelos Estados territoriais, sobretudo os da Ásia, ciosos de sua liberdade em face de Wall Street e City de Londres (Gowan 2003).

51 Criar rede de investimentos coordenados pelos Estados Unidos era fundamental para dar impressão de que as finanças internacionais não poderiam ser controladas por governos, pois elas estariam acima dos poderes nacionais em virtude da tecnologia das comunicações que faziam operações instantâneas pelo planeta. A ilusão indicada acima residia na máxima de que se houvesse danos eles não seriam exclusivos dos países pobres, mas também dos industrializados. Isso dava a entender que os danos da globalização podiam ser socializados, pois não faziam distinção se os países atingidos eram desenvolvidos ou periféricos.

52 Apesar de tudo, vale dizer que os anos de globalização, década de 1990, foram de grande proveito e conveniência para os Estados Unidos porque foi o período em que a economia americana teve forte crescimento econômico e deu grande mérito ao governo de Bill Clinton. Foi crescimento, em grande parte, pautado pela financeirização da economia internacional e menos pela engenhosidade de produtos industriais (Stiglitz 2003).

53 A Rússia desmantelada de seus poderes seria integrada em uma atmosfera de descontrole dos fluxos financeiros internacionais. E não adiantaria contestar essa ordem de coisas, de acordo com determinado grupo de autores/políticos, uma vez que isso seria desperdício de energia e recursos. O antídoto para aqueles efeitos colaterais, da busca pela riqueza e bem-estar poderia ser vistos, não no reforço daquilo que se chama políticas econômicas, do papel coordenador do Estado, mas sim na desregulamentação e na adoção de medidas denominadas neoliberais.

54 O governo de Boris Yeltsin, de 1991 a 2000, foi pródigo ao cumprir aquela agenda, adotando medidas sugeridas pelas organizações internacionais e endossados por Washington. Observadores da política russa escrevem sobre esses itens: “Democratização, modernização e todos os outros entendimentos possíveis da transição pós-comunista foram apresentados como ideologias que legitimavam uma política com vistas a diminuir a importância global da Rússia forçando-o a seguir regras formuladas alhures” (Astrov; Morozova 2020, 373)

55 Nesse aspecto, não há dúvidas de que os Estados Unidos, em primeiro plano, aproveitaram a oportunidade para enquadrar a Rússia dentro de uma política que beirasse sua subordinação ou, para angustiar o Kremlin, incentivar contestações de grupos anti-russos. E ainda podemos citar o processo para ampliar a OTAN na Europa Oriental, na antiga área que tradicionalmente é vista como estratégica para o poder russo. Na visão de Mearsheimer a expansão do poder americano na Europa, via OTAN, dera-se também por isso:

Com o fim da Guerra Fria tornou-se possível construir uma Europa cada vez mais unida por um empenhamento partilhado na manutenção de sociedade e mercados abertos. Deslocar as fronteiras da OTAN para leste, afirmou (Bill Clinton), ajudaria a ‘solidificar o consenso nacional em torno das reformas democráticas e do mercado (Mearsheimer 2007, 26).

56Na terceira parte deste artigo trataremos do governo Putin e seu plano para resgatar a Rússia como potência reconhecida na Eurásia, da mesma forma abrimos espaço para expor partes da Doutrina Putin e seu objetivo de confirmar Moscou como centro geohistórico e continentalista da política internacional em face dos Estados Unidos e União Europeia.

Putin e a questão nacional russa

57Por ventura, se a Rússia é a expressão tradicional de poder continentalista, por outro lado, ela não teve condições de exercê-lo por falta de meios adequados para projetar-se em sua área de atuação geopolítica. O governo Yeltsin não traduziu boa imagem da Rússia como potência, inclusive por ter perdido enfrentamento militar, como o de 1994, contra rebeldes chechenos que lutavam por independência em face de Moscou. Além da citada questão, a Rússia também nada pode fazer em relação às ações da OTAN na guerra da Iugoslávia, quando forças da Aliança Atlântica, em 1999, bombardearam Belgrado.

58A reconstrução do poder russo leva em conta a realização de algumas tarefas: melhoria das condições militares, sobretudo aquelas que dependem de maior aporte tecnológico, das condições salariais e da burocracia ligado à área de defesa; neutralizar questões da economia doméstica, como alto desemprego e inflação; tirar maior proveito do petróleo e gás natural; e reforçar a autoridade estatal, tanto sobre secessionistas quanto a grupos de oposição.

59 No plano exterior o governo Putin deveria imprimir novas linhas de atuação na qual não permitiria avanços da OTAN, ou de determinados interesses ocidentais em região de articulação do poder russo, como zonas de fronteira ou em países do antigo domínio soviético, Geórgia e Cazaquistão, atos que poderiam constranger Moscou. Nesse ponto, fica patente que o assédio do poder americano, pela Aliança Atlântica, na Ucrânia pode ser interpretado pelo Kremlin como provocação ou desconhecimento dos reais interesses russos.

60 A respeito do que foi exposto acima, observamos o artigo de Sergei Karaganov, Doutrina Putin, no qual expõe a missão da Rússia para aumentar seu poder. O país teria suportado bom número de constrangimentos após a Guerra Fria, assim, já seria sem tempo para que a Rússia fizesse reconhecer seu valor, exercendo papel na economia regional, na defesa, diplomacia e cultura, mormente às partes eurasiáticas que historicamente foram influenciadas pelo eslavismo.

61 De início, vislumbrar o poder russo é também pedir mudança da mentalidade do país, a saber, como a Rússia entende seu caráter nacional e suas características socioculturais. Em outras palavras, se Moscou quiser voltar a ser sede de potência reconhecida o caminho para isso começa dentro de casa, mudando sua maneira de ver a política, de modo que venha a atender seus interesses, e não os de outros (Karaganov 2022).

62 A queixa do autor é, entre outras coisas, sobre as ciências sociais russas que deixaram de representar a visão e as prementes questões sociais do país para representar temas que costumam ser integrados ao grupo dos “pós-positivismos” ou “pós-modernismos” que, de alguma forma, contribuem para a alienação do que deve ser ciência.

63Assuntos que são gestados na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, que procuram uniformizar, ou dar a entender, que os problemas mundiais são aqueles que o Ocidente aponta – que não deixa de ser a ascensão de um tipo de pensamento único mais que liberal. Dentro desse campo haveria grupos de defesa dos identitarismos, estranhos à maioria dos russos.

  • 4 Um dos resultados de tal situação é a desmobilização nacional, a perda de vigor político e uma conc (...)

64 Dentro desse aspecto, resgatar uma ciência social que expressasse os reais problemas russos é salutar, inclusive valorizando aquilo que o marxismo-leninismo traria de pertinente, como o apego à autodeterminação e desenvolvimento. Nesse aspecto, a compreensão do que é democracia e direitos civis, para Karaganov, deve corresponder à tradição e aquilo que a população espera, e não atender a imperativos ocidentais que são estranhos aos russos, como supervalorização do individualismo, do hedonismo e indiferença às religiões.4

65 Assim, reconhecer qualidades do marxismo-leninismo não seria incongruente com o patrimônio cultural e moral da Igreja Ortodoxa, uma vez que é pela religião que se constitui a civilização de um país e seu caráter nacional. E no caso da Rússia, a valorização da religião é importante para constituir ideia de nação, bem como um programa de política exterior que ajude a elevar Moscou na condição de Quarta Roma do Cristianismo.

66 No âmbito internacional, o analista do Centro de Estudos Econômicos e Sociais de Moscou, imprime o termo “destruição construtiva” para designar algo que desgasta o espírito russo: qual seria o perfil cultural da Rússia? Ela estaria no Oriente ou no Ocidente, na Europa ou na Ásia? Esse dilema, para Karaganov, tem de esgotar, pois a Rússia não deve ser subserviente a uma cultura por ser supostamente sofisticada e cobrar a despersonalização do país. Não há problema nenhum em assumir o fato de que Moscou é sede de uma potência também asiática. Por que não dizer, então, eurasiática? (Karaganov 2022).

67 Com efeito, essa questão intelectual não desapareceu do debate russo. Saber qual é a real identidade cultural do país, se está mais para Oriente que para Ocidente, é assunto que toma atenção, por exemplo, de Alexandr Dugin, para quem a Rússia não deve procurar a ocidentalização por capricho ou subordinação. O país deve assumir sua orientação asiática, mais que asiática, eurasiática, já que a Rússia é herdeira natural dos dois continentes e deve extrair o que é pertinente e grandioso desse patrimônio, aí sim, multicultural.

68 Dugin é partícipe da retomada do conceito de eurasianismo, corrente que procura resgatar valores sociais e culturais eslavos a partir do centro geohistórico de Moscou. Esse centro estratégico seria responsável não somente para o bem-estar russo, mas também do leste europeu e euroasiático. Além disso, o eurasianismo poderia abarcar também a Alemanha, como potência descontente por estar há décadas subordinada à ordem americana (Dugin 2021).

69 Desse modo, caberia à Rússia deixar de buscar atenção do Ocidente, em princípio dos Estados Unidos, porque as relações com aquela potência não estariam baseadas na equidade e no respeito mútuo. O que Washington tencionava era estabelecer subordinação russa a seus interesses. Esse comportamento havia crescido muito mais nos anos 1990, nos quais a Rússia se encontrava em forte crise econômica e com sérios problemas de organização nacional, inclusive com riscos de secessões, a exemplo das guerras chechenas.

70A Doutrina Putin também advoga a premissa de que o engrandecimento da Rússia pode tirar a Europa de seu impasse espiritual causado pelo excesso de materialismo que pauta o que deve ser importante na vida do cidadão europeu médio. A contaminação europeia se daria também pela presença sociocultural maciça dos Estados Unidos e seu modo de vida desagregador por causa da busca desenfreada de prazer e de um subjetivismo corrosivo (Inglehart 2012).

71Além do mal-estar cultural (espiritual) haveria também o problema de soberania diminuída feita pela União Europeia aos seus membros, cujo imperativo econômico fica à mercê de Bruxelas e a estratégia militar sob o comando de Washington, apesar de haver sede europeia da OTAN. Então, o problema de procurar subordinar outras potências não se limitaria à Rússia, mas se estenderia aos próprios integrantes da Aliança Atlântica (Karaganov 2022).

72Vale dizer que essa posição já fora apontada, em parte, por Mearsheimer: “Os Estados Unidos, por exemplo, rejeitaram liminarmente várias propostas russas para tornar a organização para a Segurança e Cooperação na Europa o pilar organizativo central da segurança europeia (substituindo a OTAN, dominada pelos EUA) ” (Measheimer 2007, 61).

73 O que a Rússia procura fazer a duras penas, na Presidência Putin, é reestabelecer seu “amor próprio”, de nação que se respeita e procura respeitar as outras a partir da reciprocidade. Prestar mais atenção à escalada de poder da China, bem como ao seu entorno estratégico é substancial para a política externa russa. Por isso, a importância do Kremlin ao estabelecer relações de alto nível com Pequim, em intercâmbios econômicos, de início. Por isso a pertinência de se alimentar constantemente a Cooperação de Xangai, de 2001.

74 Em políticas que versam princípios de integração regional, a Rússia deve se aproximar, em novos moldes, das antigas possessões da época do império que se transformaram em republicas soviéticas e, na atualidade, são países independentes. Quer dizer, países independentes em parte. Isto porque essa área da Ásia Central não é ocupada por soberanias, de fato, autônomas e sabedoras de seu papel. São, em grande parte, países sem histórico nacional ou maturidade que acabam sendo atraídos por promessas das potências ocidentais que os usam para, justamente, constranger Moscou (Sébille-Lopez 2007).

75 Mesmo assim, cabe a Moscou estabelecer relações proveitosas que sejam feitas a partir de ganhos mútuos e sem reproduzir comportamentos imperiais, do czarismo, ou dirigismo, como se percebeu nos tempos da União Soviética. Eis um equilíbrio que a Rússia teria de encontrar para não permitir que países de sua borda, caso da Geórgia, sejam atraídos pelo modernismo decadente da União Europeia e apoiado pela OTAN (Karaganov 2022).

76 Em outro aspecto, pensa Karaganov, que o plano de reconstrução do poder russo não seria expansionista, visto que sua posição busca manter integridade de seu território e de seu “estrangeiro próximo”, caso mais sensível que é o da Ucrânia. O caso ucraniano é um dos mais complicados, não apenas para o Kremlin, mas para todo o sistema internacional.

77A razão para tanto é que o assédio sobre essa unidade política, de posição altamente estratégica, vem ocorrendo desde 2014, quando houve o impactante acontecimento denominado Euromaindan, na cidade de Kiev, no qual fora destituído o governo para que no lugar dele fosse instalada administração que fosse mais ocidentalizada.

  • 5 Talvez isto ocorra em virtude do papel que Brzezinski percebia para a Polônia nos anos 1980, de ser (...)

78 Tratava-se da destituição de governo, de Viktor Ianukovytch, considerado aliado da Rússia. E isso poderia nublar as intenções de abrir a Ucrânia tanto para o capital da União Europeia, que poderia integrar aquele país ao bloco, bem como à própria OTAN, hipótese com maior dificuldade de ter ocorrido, mas não necessariamente impossível. Em hipótese, o papel ucraniano atualiza o ideário de Zbigniew Brzezinski dos tempos da Guerra Fria.5

79O problema era justamente o caráter geopolítico que a Ucrânia expressa para Moscou, cuja transferência para o lado ocidental poderia perturbar a geopolítica eurasiática russa: “Ocidente tenta desesperadamente defender-se com retórica agressiva. Tenta consolidar-se, apresentando as últimas cartas que tem guardadas na manga para virar o jogo. Uma dessas é tentar usar a Ucrânia para prejudicar e neutralizar a Rússia (Karaganov 2022).

80A localização da Ucrânia sob o aspecto geopolítico é tema controverso e que pode alimentar interpretações variadas. Se o país é parte do estrangeiro próximo, como se aplica ao cotidiano político russo, logo a sorte ucraniana não deve ser separada do vizinho maior. A Ucrânia é uma espécie de vítima geopolítica, um Estado territorial que pode ter vida de virtude, de respeito às instituições internacionais e até ser uma democracia, porém, pouco disso importa para Moscou. Pouco importa ou pode ser usado como argumento justamente para fazer com que Kiev não se esqueça de que lado ela está e deve continuar.

81A razão para isso pode ser encontrada no artigo que Mackinder escreveu em 1943, com o intuito de repassar seu argumento depois de quarenta anos e também para botá-lo à prova no clima da Segunda Guerra Mundial, na qual uma potência continentalista, a União Soviética, da área pivô, junto com duas potências navais, Estados Unidos e Reino Unido, combatia a potência territorial alemã pela defesa do coração continental eurasiano (Mackinder 2019).

82No texto do geógrafo britânico a União Soviética apresentava praticamente um ponto relativamente em risco no extremo da Ásia, Vladivostok, nas proximidades do inimigo japonês; um ponto de defesa no extremo norte da Sibéria, defendida pelo gelo e uma fronteira de segurança no Cáucaso, sem inimigos naturais ou potência relevantes para ameaçar Moscou.

83Cumpre dizer que, tanto no texto de 1904 quanto na revisão de 1943, a chave de seu pensamento persiste e é utilizado atualmente de diversas maneiras, embora com termos diferentes, mas não excludentes. Trata-se da definição territorial, nem sempre muito precisa, que abarca praticamente toda a Sibéria, excluindo o extremo leste; pega o norte da China, Mongólia, toda a parte ocidental russa e conclui o avanço integrando a Ucrânia, suas ricas terras pretas em uma zona relativamente exclusiva e fechada que no artigo publicado no calor da Segunda Guerra o autor denominou heartland, coração continental. Uma feliz interpretação desse pensamento é encontrada em Mello (Mello 1999).

84Embora o professor de Oxford não tivesse demorado em apontar qual razão o heartland seria tão especial em sua percepção geopolítica há como entender que em seu gigantesco perímetro poderia se extrair bom número de matérias-primas consideradas estratégicas, caso de ouro, ferro, urânio, areias raras, potente agricultura e petróleo em grande quantidade. Por causa disso, uma das interpretações gráficas da área pivô abarca o Oriente Médio e Irã.

85Então onde estaria a vulnerabilidade soviética? Ela se encontraria justamente na Ucrânia, na época integrada ao espaço territorial soviético. Isto porque a Ucrânia é corredor, zona aberta tradicional de passagem de tropas que historicamente ameaçavam o Império Russo e continuava com o soviético. A saber, zona aberta sem obstáculos naturais que estivessem à altura de barrar ameaças vindas do Ocidente (Mackinder 2019). Portanto, Putin deve seguir esse raciocínio de vulnerabilidade territorial a partir do Ocidente.

Considerações finais

86Seriam as forças aplicadas pela OTAN contra a Rússia, usando a Ucrânia como razão de Estado, capítulo atualizado de Mackinder? Há motivos para que o Estado pivô eurasiático seja enquadrado, da mesma forma que a baleia americana fizera nos anos 1980 contra o urso soviético? Como havia mencionado Tocqueville a espada russa deveria ser contrariada pela criatividade e democracia norte-americanas para que houvesse nova ordem internacional mais liberal? A resposta não poderá ser fornecida com qualidade esperada nestas poucas páginas. Mas fica o convite àqueles que queiram desenvolver a partir de novos esforços críticos.

87 Embora possam ser assuntos distintos, estudar a atual guerra europeia não se limita somente ao embate russo-ucraniano no aspecto estratégico-militar. Sua interpretação, a depender do interessado, pode levar em conta a natureza do Estado russo, a maneira com a qual se deu a formação da Ucrânia, sobretudo no século XXI, conformação política e social da União Europeia e, por fim, as razões da expansão do poder americano via OTAN.

88A atual luta da Rússia na Ucrânia, para Paulo Visentini, não pode ser compreendida somente com informações do cotidiano, veiculadas pela imprensa convencional. O empenho militar de Moscou em seu estrangeiro próximo é ato que vem desde o final do século XVIII, no qual se procurou consolidar ao espaço russo cidades como Kherson e Nikolayev, sem falar de Sebastopol, estratégica para a Marinha de Guerra russa que se localiza na região da Crimeia, saída mediterrânea no Mar Negro (Visentini 2022).

89 É sobre esse prisma que Vladmir Putin defende a máxima de que a entrada militar russa na Ucrânia não se trata de decisão unitária de governo constrangido pela aproximação ocidental na Europa do Leste. No entender do mandatário do Kremlin a história russa e ucraniana sempre foi una, sendo que a separação político-histórica é arbitrária. Ela fora feita pelo desmanchar da União Soviética na qual Kiev e Moscou perderam unidade (Putin 1.07.2021).

90 A política da Rússia na atualidade, para a elite que compõe o governo em Moscou, é resgatar seu poder perdido nos anos 1990, considerados trágicos para os portadores da Rússia como potência. Mais do que isso, a possível ascensão russa na cena internacional teria também função transbordadora e reformista da política internacional. Transbordadora porque, dentro de uma orientação (Dugin 2021) a Rússia teria condições de espalhar sua virtude política para outros Estados que se localizam em sua borda ou na Eurásia; uma virtude moral que resgataria o valor da nacionalidade, da cultura tradicional e da religião.

91 A atuação russa também seria reformista pelo fato de militar pela transformação do sistema internacional, deixando-o menos unipolar. Isto porque Moscou considera que já seria sem tempo de mudar o sistema de Estados que há décadas é comandando pelos Estados Unidos e acompanhado pela “harmonia de interesses” que há com a União Europeia, mantendo uma ordem na qual as questões econômicas e políticas são diferenciadas em seus ganhos.

92 Desta forma, Moscou, Pequim, Nova Deli, Brasília, a princípio, poderiam constituir um novo sistema internacional, multipolar e mais dinâmico que viesse a contemplar todos os Estados. Por isso, dentro de uma interpretação, a guerra travada entre Rússia, Ucrânia e, por extensão, OTAN, seria o teste de fogo, a prova final que as potências contestadoras da ordem americana teriam que passar para que o progresso geral seja alcançado. A história mackinderiana ainda continua, visto que há muito para se esperar sobre a premissa na qual a pugna poder territorial versus naval não foi concluída. Só teria de saber quem seriam as “cabeças de chave”: Estados Unidos, Rússia China e União Europeia.

93Por fim, há como percebermos que a atual guerra europeia não pode ser interpretada apenas de uma forma. Se determinado observador apresentar um motivo para seu acontecimento isso pode ser visto como escolha, de ser parcial. Ou ao usarmos expressão famosa de Raymond Aron, a escolha de um motivo para tal guerra faz do observador em questão um “expectador engajado”. É claro que, sob esse ponto, não podemos apresentar queixas, visto que todo observador é portador de opinião, inclusive o autor deste ensaio.

94Não há problema nenhum em ser expectador engajado. Só tencionamos chamar atenção para que a explicação do conflito Rússia e Ucrânia pode ser encontrada nas linhas deixadas pela história desde o começo o final do século XIX, no qual uma lei da geopolítica entraria em ação de tempos em tempos. Uma potência continentalista enfrentaria outra naval, como se fosse uma dialética da qual sairia a evolução da história, as mudanças mundiais feitas por fenômenos materiais, advindos das condições geográficas. Não se trataria de determinismo, mas sim de uma luta, cujo desfecho seria o progresso histórico.

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Notas

1 Tocqueville antecipa o diagnóstico de George Kennan ao observar que a gênese do poder soviético, de Josef Stalin, não diferenciava dos tempos do czarismo. No século XIX isso se dava com a instituições conservadoras e a Igreja Ortodoxa; no XX, seria a vez da ideologia e do Partido Comunista, cuja direção seria incontestável. Tanto em uma situação, como na outra, a sociedade sempre será dirigida. Por conseguinte, por ser potência “excêntrica” entre os vencedores da Segunda Guerra, democracias liberais, a União Soviética deveria ser contida em seu expansionismo pelos Estados Unidos (Kennan 1947).

2 Expressão de Antônio Carlos Robert Moraes, quando se refere a análises que autores fizeram sobre geografia, ou geopolítica, quando não havia esses cursos universitários no Brasil (Moraes 2005). Fariam parte da protogeografia Euclides da Cunha e Alberto Torres.

3 Um dos problemas da Rússia é sua contínua diminuição demográfica para um Estado que é duas vezes o tamanho do Brasil. Nos últimos quinze anos a população russa caiu de 147 para 145 milhões (Fernandes 2017).

4 Um dos resultados de tal situação é a desmobilização nacional, a perda de vigor político e uma concepção de vida que torna a geração atual mais fraca e despreparada para os enfrentamentos urgentes em comparação àquela que passaria pela Segunda Guerra Mundial e pela reconstrução europeia, importante para a Rússia (Inglehart 2012).

5 Talvez isto ocorra em virtude do papel que Brzezinski percebia para a Polônia nos anos 1980, de ser pino estratégico contra Moscou. Vale dizer, um membro do Pacto de Varsóvia, que minaria a resistência soviética por meio de propaganda, apoio político ao Sindicado Solidariedade e guerra de informação (Brzezilnski, 1985). Nos anos 1990 o autor não mudara de posição frente à Rússia ressurgida; ela deveria ser diminuída (Mello 1999).

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

José Alexandre Altahyde Hage, «Rússia, Estados Unidos e a Guerra na Ucrânia: o conflito seguiria uma clássica lei da geopolítica?»Espaço e Economia [Online], 28 | 2025, posto online no dia 25 abril 2025, consultado o 21 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/29556

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Autor

José Alexandre Altahyde Hage

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC. Este artigo cumpre parte do compromisso com o programa de pós-doutoramento em Geografia Humana pela Universidade de são Paulo.

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