1No dia 27 de abril de 1974 – dois dias depois do 25 de Abril – caiu o “U” de ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina), renomeado no mesmo dia ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas). Deixando para trás o envolvimento do ISCSPU com a política colonial do Estado Novo, a queda do “U” marcou o início de um conjunto de transformações que visavam fazer do novo ISCSP uma escola de ciências sociais democrática, moderna e arejada. Essas transformações, que envolveram alterações curriculares, afastamento de velhos professores comprometidos com o Estado Novo e contratação de novos professores (maioritariamente exilados políticos fugidos à guerra colonial), atravessaram todos os cursos da escola e tiveram também expressão no ensino da antropologia, que repousava, desde 1968, no Curso Complementar de Ciências Antropológicas e Etnológicas (a primeira licenciatura em Antropologia criada em Portugal). Revertido, em 1976, pelo encerramento arbitrário do novo ISCSP pelo ministro Sottomayor Cardia, é este conjunto de transformações – com especial enfoque no ensino universitário da antropologia – que este dossiê procura documentar.

2Na sua base estão um conjunto de depoimentos. Cinco deles são de antigos estudantes que conheceram tanto o antigo ISCSPU como o novo ISCSP e que, de uma forma ou de outra, participaram nessas transformações (Filipe Ramires, Luiz Souta, Dulcinea Gil, Maria da Luz Alexandrino, José Cardim). Um outro depoimento (José Fialho) é de um dos professores de antropologia do ISCSP contratado depois de 1974 e afastado da escola aquando do seu encerramento por Sottomayor Cardia. Tanto José Fialho como Luiz Souta e Dulcinea Gil – ex-estudantes de antropologia do ISCSP – dão particular relevo às mudanças ocorridas no ensino da antropologia no ISCSP depois de 1974. O de Filipe Ramires dá merecido protagonismo à “queda (literal) do U” (de “Ultramarina”) no dia 27 de abril de 1974. O de Maria da Luz Alexandrino dá conta do quadro mais geral de transformações ocorridas no ISCSP a partir de 1974. E o de José Cardim, sem perder de vista esse horizonte temporal, recua à famosa crise académica de 1968, desencadeada pelo encerramento da licenciatura em Serviço Social do ISCSPU pelo Ministério da Educação, então dirigido por José Hermano Saraiva.

3Encerra este dossiê um comentário final de José Neves, professor de História Contemporânea na FCSH (UNL) e investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) da mesma faculdade. A ideia foi a de propor a um especialista de História Contemporânea, suficientemente jovem para não ter participado (ou sequer estar nascido) em 25 de Abril de 1974, um olhar exterior sobre as “pequenas revoluções”, como a do ISCSP – em que se desdobrou a “grande revolução” – como a que foi o 25 de Abril.

4Nas linhas introdutórias ao presente dossiê que se seguem assumo uma dupla qualidade: a de antigo estudante do ISCSPU/ ISCSP que participou nas transformações que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, e a de antropólogo que tem investigado sobre história da antropologia em Portugal. Procuro dar, em primeiro lugar, uma visão do lugar do ISCSPU no rarefeito ensino das ciências sociais em Portugal antes de 1974. A seguir passo em revista as transformações que a escola conheceu depois dessa data. Termino com a indicação de algumas repercussões que essas transformações – apesar do encerramento do ISCSP em 1976 – tiveram no ensino da antropologia em Portugal.

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5É conhecido que o regime deposto a 25 de Abril de 1974 não nutria particular entusiasmo pelas ciências sociais e, em particular, pelo seu ensino universitário. O que vale a pena sublinhar – no seguimento dos estudos de Frederico Ágoas (2013, 2019, 2020) – é que, apesar dessa falta de entusiasmo, se desenvolveram antes de 1974 algumas tentativas de institucionalização do ensino universitário das ciências sociais. Uma delas conduziu à criação, em 1962, do Instituto de Estudos Sociais, onde Adérito Sedas Nunes – mais conhecido pelo seu papel, em 1962, na criação do Gabinete de Investigações Sociais (GIS), e pelo lançamento, em 1963, da revista Análise Social – foi professor entre 1963 e 1972. Outras, talvez menos conhecidas, tiveram lugar no Instituto Superior de Agronomia – em torno da economia agrária e da sociologia rural – e no Instituto de Serviço Social (Ágoas 2022). Uma última, finalmente, teve lugar no ISEU (Instituto Superior de Estudos Ultramarinos) – depois ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) – no final dos anos 1950 e no decurso dos anos 1960, e está associada à figura de Adriano Moreira, diretor do Instituto e futuro ministro do Ultramar de Salazar. Neste último caso assistiu-se, sobretudo desde a integração do ISCSPU no sistema universitário português em 1962, à criação de várias cadeiras de ciências sociais no Curso de Administração Ultramarina (três anos) e no Curso Complementar de Estudos Ultramarinos (dois anos).

6As mudanças curriculares no ISCSPU integravam-se num pacote de políticas então adotadas pelo Estado Novo que procuraram, em vão, contrariar os ventos independentistas que sopravam em África (Alexandre 2023; Pereira 2021). Entre essas políticas contavam-se as referentes à formação de quadros coloniais e ao desenvolvimento da pesquisa nas colónias portuguesas. Foi então que foi criado o Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar – de que Adriano Moreira foi o primeiro diretor – no âmbito do qual foi implementada a Missão de Estudo das Minorias Étnicas do Ultramar Português, cuja direção foi entregue a Jorge Dias. Foi também nesse quadro que ocorreram as transformações curriculares no ISEU e depois no ISCSPU, que reforçaram, em detrimento da antropologia física e das ciências jurídicas, o ensino das ciências sociais, com relevo para a etnologia e para a antropologia cultural, disciplinas confiadas, desde 1956, ao mesmo Jorge Dias.

7O resultado das modificações curriculares introduzidas no ISCSPU foi uma escola híbrida, consagrada, por um lado, à formação de funcionários para a administração colonial portuguesa – por isso dependia do Ministério do Ultramar –, mas que, por outro lado, fornecia um espaço para o ensino das ciências sociais – por isso dependia também do Ministério da Educação.

10Essa dimensão do ISCSPU foi reforçada, nos anos 60, com a criação, em 1964 e em 1967, do Curso de Serviço Social e do Curso Complementar de Serviço Social e, em 1968, com a criação da licenciatura em Antropologia (Curso Complementar de Ciências Antropológicas e Etnológicas). Esta última, à qual podiam aceder alunos diplomados em Administração Ultramarina pelo ISCSPU e licenciados com outras formações, foi a primeira licenciatura em antropologia criada em Portugal.

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12Foi em larga medida por iniciativa desse movimento estudantil – e de muitos trabalhadores e professores que tinham conservado a sua posição de independência perante a direção da escola e perante o regime – que o ISCSPU sofreu, no imediato pós-25 de Abril de 1974, uma transformação radical. Esta assentou em dois grandes eixos.

13O primeiro consistiu na eliminação da orientação colonial da escola e na sua reorganização como escola de ciências sociais. A 27 de abril de 1974, quando se deu a queda do “U”, a escola foi renomeada Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o curso de Administração Ultramarina foi substituído pelo Curso de Administração e o Curso Complementar de Estudos Ultramarinos deu lugar ao Curso Complementar de Ciências Sociais e Políticas.

14O segundo eixo assentou no afastamento – a expressão da época era “saneamento” – de docentes com elevados graus de envolvimento com o regime deposto a 25 de abril e/ou com a repressão ao movimento estudantil no ISCSPU. Para o lugar desses professores, foram contratados novos docentes, maioritariamente ex-refugiados políticos com formação em ciências sociais obtida no estrangeiro e regressados a Portugal depois de 1974.

15No caso da antropologia, isso permitiu a contratação, entre outros, de colegas como José Carlos Gomes da Silva, José Fialho ou Rui Rodrigues. Beneficiando da nova dinâmica que a licenciatura em Antropologia então ganhou – e da própria visibilidade da antropologia na cena intelectual nacional e internacional da época – o curso recebeu então uma nova geração de estudantes, muitos dos quais viriam a desempenhar funções docentes nas licenciaturas em Antropologia criadas posteriormente na FCSH (UNL) e no ISCTE. Entre eles contam-se, por exemplo, Rosa Maria Perez, Jorge Freitas Branco, João Leal ou José Gabriel Pereira Bastos.

16Ambos os eixos de transformação do ISCSP a seguir a 1974 eram promissores. Mas foram abruptamente interrompidos pelo encerramento arbitrário da escola em 1976, decretado pelo então ministro da Educação Sottomayor Cardia, que, depois de ter despedido os docentes contratados a seguir a 1974, se apressou a devolver o ISCSP àqueles que dele tinham sido afastados após o 25 de Abril.

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17Um tal facto não impediu, entretanto, que algumas dessas transformações não tenham continuado a marcar o panorama universitário português.

18Foi o que se passou com a antropologia. Foi a partir do renovado corpo docente do ISCSP e de ex-estudantes do Curso Complementar de Ciências Antropológicas e Etnológicas que foi criada, em 1977, a licenciatura em Antropologia na FCSH (UNL), onde ensinaram, entre outros, José Carlos Gomes da Silva e Rui Rodrigues – ex-professores no ISCSP – ou Rosa Maria Perez, Jorge Fragoso, Cândida Porto, João Leal e José Gabriel Pereira Bastos – ex-estudantes de Antropologia do ISCSP.

19Docentes provindos do ISCSP, como José Fialho e José Carlos Gomes da Silva, estiveram também ligados à criação, em conjunto com outros docentes, da licenciatura em Antropologia Social do ISCTE. Ao corpo docente desta nova licenciatura juntaram-se, mais uma vez, ex-estudantes de Antropologia do ISCSP, como Rosa Maria Perez, Jorge Freitas Branco ou João Leal.

20Pode, portanto, dizer-se que, apesar do seu encerramento em 1976, o ISCSP continuou a projetar a sua sombra nos desenvolvimentos subsequentes da Antropologia em Portugal.