1Em 24 de novembro de 1974, o Jornal do Fundão denunciava, num artigo de meia página, o caso de “uma aldeia à beira da morte”. Tratava-se da Gaia, uma povoação então com cerca de 300 habitantes situada no limite dos concelhos de Belmonte e da Guarda. A peça reproduzia um emotivo apelo dirigido, 13 dias antes, à Secretaria de Estado da Agricultura por um gaiense. Na origem do apelo estava a ameaça de exploração mineira de um conjunto de terrenos contíguos ao núcleo urbano da aldeia. Entre 1914 e 1962, a Portuguese-American Tin Mining (PATC) explorou, através do método de dragagem, os depósitos de estanho do vale da ribeira da Gaia, deixando um lastro de devastação. À voragem desta empresa foi poupada uma área com cerca de três hectares de minifúndio que, em 1974, se via ameaçada pela intenção de uma nova companhia, a Dramin, em minerar essas parcelas. A reação dos proprietários dessas parcelas evoluiu, no espaço de cinco meses, após abril de 1974, para um movimento determinado em lutar pela preservação daquelas courelas. Não só a base reivindicativa ganhou fôlego em torno de valores ambientais, como a mobilização agremiou outros atores dentro e fora da comunidade, consubstanciando um movimento social em torno de um conflito socioambiental num contexto de transição política (Silva 2010).
2Este artigo aborda esse caso, revisitando uma investigação conduzida entre 2004 e 2011 no âmbito de um projeto de doutoramento (Silva 2013). Essa pesquisa procurou, a partir de uma antropologia histórica, investigar o processo de mobilização coletiva anti-industrial. Nesse intento procurou, igualmente, compreender as interconexões estabelecidas entre os agentes políticos que operavam a partir dos centros de poder e a ação política e os atores da mobilização coletiva local.
- 1 Além de arquivos pessoais, foram consultados os seguintes arquivos em Portugal: Distrital de Castel (...)
3Estudar o processo de mobilização coletiva num contexto de mudança política e o papel da perceção da transformação ambiental na definição de vocabulários e repertórios de contestação exigia o cruzamento de fontes documentais escritas com as representações do conflito de 1974-1980 que os habitantes locais tinham, assim como com as memórias da exploração mineira durante a primeira metade do século XX. Daí a necessidade de combinar uma abordagem etnográfica com uma pesquisa em fundos arquivísticos. Atendendo ao caráter diacrónico da investigação e considerando o facto de haver pessoas que vivenciaram parte dessa história, a metodologia implicou a recolha de fontes orais. Neste âmbito, a etnografia proporcionou acesso aos sujeitos e suas redes.1
4A mobilização coletiva na Gaia foi afetada pela perceção que os contendores locais tinham das oportunidades políticas que se abriram imediatamente após a revolução de 1974. Durante os seis anos que durou o conflito, os repertórios e vocabulários de protesto foram sucessivamente influenciados pela forma como os contendores locais percecionaram e tiraram partido das mudanças na estrutura política. As queixas (grievances) e os quadros de perceção da injustiça representam importantes motores da ação coletiva (Klandermans et al. 2002), mas não são suficientes para justificar a eclosão e explicar o curso de um movimento social. Para isso, a mobilização social deve ser abordada à luz das circunstâncias políticas, tendo em conta as forças e os agentes que permitem (e reforçam) a ação coletiva. Tal significa que a oportunidade política não se impõe inexoravelmente aos indivíduos e aos grupos desejosos de protestar; ela é, igualmente, percebida e construída pelos atores dos movimentos sociais de acordo com a sua própria agência e no âmbito de trocas mútuas com outras forças e instituições políticas. Aqui, a teoria da estrutura de oportunidade política (EOP) (Tarrow 2011), não obstante a sua propensão estrutural, mostra-se um útil suporte analítico. Se a teoria da EOP nos ajuda a compreender como os acontecimentos que se seguiram ao derrube da ditadura influenciaram o desenvolvimento dos protestos na Gaia, por seu turno o conflito local pode ser útil para compreender outras correlações entre a ação coletiva local e a ação política ao nível do Estado. Em suma, o conflito na Gaia e o movimento coletivo daí resultante revelam os liames entre, por um lado, os níveis da ação das estruturas, agentes institucionais e organizações políticas que operavam nos centros do processo revolucionário e, por outro, da ação coletiva contenciosa local, com esta última a fornecer oportunidades de legitimação social às forças e organismos que lutavam para assegurar o seu espaço de influência no Portugal do pós-25 de Abril.
- 2 Exposição da Dramin à CACMB, 25-11-1974, Arquivo CMB, cx. 227.
- 3 Sobre a importância destas pequenas hortas e olivais no contexto dos sistemas de herança e reproduç (...)
5A década de 1970 trouxe a exploração mineira de volta ao vale de Gaia, oito anos depois de a PATC ter encerrado a sua atividade (Silva 2013). Os trabalhos de mineração passaram a estar a cargo da Dramin, um consórcio luso-brasileiro e norte-americano, que adquiriu uma sucata à antiga draga da PATC, dotando-a de melhorias tecnológicas com vista a redragar o subsolo em busca do estanho deixado pela PATC. Em março de 1974, depois de percorrer a metade ocidental do vale, a draga da Dramin aproximava-se das imediações da aldeia, estando prestes a entrar nos terrenos que haviam sido poupados pela exploração da empresa norte-americana. Desse subsolo, a Dramin esperava extrair 250 toneladas de minério de estanho, um “terço da produção anual do país”.2 Para os proprietários, aqueles terrenos de minifúndio tinham, igualmente, grande valor, tanto simbólico como material. Tratava-se de hortas de policultura e olival, complemento da economia doméstica, contíguas à aldeia e com boas condições de irrigação.3 Estes terrenos, tendo em conta a proximidade do núcleo urbano, o rendimento agrícola e o facto de nunca terem sido objeto de exploração mineira, contribuiriam para a definição de boa parte do arsenal argumentativo contra a mineração. Aí encontramos as bases de um discurso simbólico que enfatizava as qualidades da agricultura de subsistência e enaltecia a paisagem rural, apresentadas como símbolos de qualidade de vida e garantia de continuidade social. A par disso, a exploração mineira era denunciada como fator empobrecedor da comunidade e agente de destruição e morte.
6Por detrás da organização da oposição à dragagem destes terrenos estava o descendente de um casal de proprietários, então com 27 anos de idade. Comungando ideários de esquerda, a sua ação revelou-se determinante para a mobilização inicial do protesto, aglutinando e galvanizando outros proprietários. Foi ele quem convocou as primeiras reuniões e redigiu as primeiras reclamações. Foi, também, um elemento-chave no alargamento da mobilização à comunidade, na cooptação da autarquia e de alguns partidos políticos de esquerda. À sua volta, reuniram-se outros quatro gaienses, que constituíram o núcleo impulsionador do protesto. Este grupo rapidamente mobilizou as redes familiares, de vizinhança e de amizade, reforçando a solidariedade em torno da sua causa, alargando a base social do movimento. Vale a pena referir que, entre os cinco mobilizadores do protesto, três, então com idades entre 50 e 60 anos, partilhavam histórias pessoais e familiares ligadas à exploração e venda clandestinas de minério e pertenciam às poucas famílias que não dependeram do trabalho assalariado ao serviço da PATC.
7A revolução de 25 de Abril não podia ter acontecido em melhor altura para os proprietários da Gaia. Tal como noutros pontos do país, a transição de regime representou uma oportunidade de manifestação aberta dos interesses das classes trabalhadoras, anteriormente diminuídas na sua capacidade de participação social e política. Perante isto, os movimentos de contestação social, outrora confinados a ações furtivas (Godinho 2004), muitas vezes de acordo com as estratégias de resistência dissimulada (Scott 1985), foram substituídos por manifestações públicas de dissidência (Cerezales 2003). As ruas das cidades, as praças, os adros, os cruzamentos de estradas, as Casas do Povo e os teatros passaram a ser locais onde a população se reunia, onde se discutia política e onde coletivos manifestavam abertamente o seu descontentamento e projetavam caminhos de futuro e utopia (Downs 1983; Bermeo 1986; Cerezales 2003; Pinto 2013). Como momentos de protesto e oposição política pluralista, os comícios tornaram-se, após 1974, numa expressão inequívoca da participação popular na vida política local e nacional. Desta forma, o 25 de Abril foi decisivo para a recuperação da liberdade de expressão e de reunião, gerando um quadro politico-ideológico favorável à manifestação popular. Os acontecimentos que se seguiram ao golpe militar de abril abriram uma oportunidade política para a emergência de movimentos sociais (Cerezales 2003; Silva 2019a, 2019b). Na Gaia, a transformação institucional pós-revolucionária e as mutações na configuração dos poderes políticos e relações de poder proporcionaram uma série de oportunidades para os proprietários rurais agirem contra os planos da Dramin, enfrentando o poder simbólico, jurídico e económico que, historicamente, tinha estado do lado das empresas mineiras (Guimarães 2001; Ballard e Banks 2003).
- 4 Designação local para a parte do rés-do-chão das habitações que servia de adega, arrumo de alfaias (...)
- 5 Entrevista, 2-09-2010.
8Perante o risco iminente de expropriação, os proprietários organizaram-se num núcleo coeso e, entre abril e setembro de 1974, o protesto deu os primeiros passos. Nesta fase, o grupo reunia-se à noite ou ao fim da tarde, terminadas as tarefas agrícolas, nas “lojas” 4 das casas e, entre comes-e-bebes, delineava a estratégia de oposição à empresa mineira. Ocasionalmente, amigos, familiares e vizinhos juntavam-se a essas seminais reuniões conspirativas. Estes encontros serviram, de acordo com o principal animador do movimento, para unir as pessoas em torno de uma causa que a maioria, nos seus 50 a 70 anos de experiência de vida, duvidava que pudesse ser ganha. Para o dirigente, essas assembleias informais serviram para estabelecer uma posição coletiva comum de recusa das propostas de Dramin e consciencializar o grupo para a ideia de que valia a pena lutar, porque os “tempos eram outros”.5
- 6 Especialmente partidos progressistas de esquerda como o MDP/CDE, muito ativo em Belmonte (Reed 1988 (...)
9A estratégia implicava expor o problema às entidades reconhecidas como capazes de influenciar as decisões, assim como à imprensa regional. Nas palavras do dinamizador do protesto, era da maior importância “meter ao barulho” todos os que tivessem algum tipo de influência: partidos políticos,6 a autarquia, secretarias de Estado e ministérios com tutela da agricultura e extração mineral, governos (sobretudo os governos provisórios), Governo Civil, o Movimento das Forças Armadas (MFA), a imprensa e, mais tarde, a Comissão Nacional do Ambiente (CNA).
- 7 Arquivo da Direção Regional de Economia do Centro, Proc. 797, vol. 1.
10Numa carta dirigida à Dramin, em outubro de 1974, um proprietário dava conta da iminente exposição da questão na imprensa.7 Um mês depois, o Jornal do Fundão divulgava o protesto, reproduzindo uma exposição de um proprietário, numa clara tentativa de mobilização de audiências mais vastas e envolvimento de aliados, estratégia que Della Porta e Diani (2006) identificaram como relativamente comum no processo de afirmação dos movimentos sociais.
- 8 Carta de proprietária à Dramin, 5-11-1974, Arquivo CMB, cx. 186.
11Da intimidade das “lojas” dos proprietários, o movimento ganhou dimensão pública quando, em outubro de 1974, se realizou a primeira assembleia popular na escola primária da Gaia. A reunião contou com a presença do presidente da Comissão Administrativa Municipal de Belmonte (CAMB) e de alguns elementos da estrutura local do MDP/CDE. Esta manifestação alargou o protesto à comunidade, com o grupo inicial de proprietários a obter a solidariedade da maioria dos habitantes da Gaia para a sua causa. A solidariedade coletiva era essencial para transmitir os argumentos contra a dragagem: a ideia era transformar as queixas dos proprietários ameaçados pela exploração mineira num libelo comunitário. No final de 1974, o movimento apresentava-se como a voz de um coletivo em defesa de um espaço que, apesar de ser propriedade privada, era representado como património comum, sendo a empresa mineira e a sua draga retratadas como os “inimigos do povo”.8
12Na busca de aliados, o movimento viu a autarquia de Belmonte tornar-se o seu primeiro grande apoio institucional. Fortemente influenciado por elementos da estrutura local do MDP/CDE (Reed 1988, 1995), este executivo interino representava um aliado natural no apoio ao coletivo “pobre”, “humilde” e “espoliado”, a julgar pela forma como os contestatários se apresentavam nas suas cartas e petições. O envolvimento da CAMB acentuou-se no primeiro trimestre de 1975, com os seus representantes a colaborar na organização de assembleias populares e reuniões entre as partes em conflito.
- 9 Tratou-se da “Operação Castelo Branco”.
- 10 Declaração de oficial, “Operação Castelo Branco”, Notícias da Covilhã, 1-2-1975.
- 11 Ibid.
- 12 Declaração de oficial do MFA, não identificado, Jornal do Fundão, 26-1-1975.
- 13 Notícias da Covilhã, 1-2-75.
13Pressentindo o papel preponderante do MFA no processo de transição de regime, os contestatários da Gaia cedo tentaram obter o apoio dos militares, convidando-os a deslocarem-se à aldeia. O MFA acabou por vir em janeiro de 1975, no âmbito de uma Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica (CDCAC) na Beira Baixa.9 Desejosos de resolver as “necessidades do povo” 10 e “levar o espírito do 25 de Abril às aldeias mais recônditas”,11 “onde o processo revolucionário tardou a chegar”,12 a simpatia do sector militar progressista pela causa dos proprietários era evidente. Com o MFA a anunciar abertamente a sua vontade de “juntar o povo aos homens que o libertaram do fascismo” 13 os contestatários viram uma oportunidade de cooptar um aliado entre as forças emergentes da transição revolucionária. Do lado do MFA, o apoio aos movimentos populares enquadrava-se na sua estratégia de legitimação sociopolítica, consubstanciando a desejada Aliança Povo/MFA (Almeida 2009). O MFA apresentava-se, assim, não só como um mediador entre as partes em conflito, mas também como um potencial aliado do movimento popular contra a Dramin. É de realçar que estes movimentos, entre os quais se pode incluir o da Gaia, estavam em sintonia com a sensibilidade da fação mais progressista do MFA (Hammond 1985), empenhada na defesa da democracia participativa direta (Cerezales 2003).
- 14 Relatório CDCAC, 5-2-1975, arquivo do Ministério da Defesa Nacional, EMGFA, 5.ª Divisão, cx. 6520.
- 15 Com a nacionalização do Banco Português do Atlântico, parte do capital da Dramin acabou por ficar s (...)
14A participação do MFA na Gaia ocorreu durante os primeiros três meses de 1975, promovendo, pelo menos, uma reunião entre as partes em conflito e uma assembleia popular. O relatório da brigada encarregada da CDCAC em Belmonte revela comiseração para com os opositores à dragagem, no entanto, no mesmo propõe-se a nacionalização imediata da Dramin, a declaração de utilidade pública de todas as parcelas em disputa e a subsequente dragagem. Na opinião do oficial do MFA, os depósitos de estanho existentes no subsolo do vale eram demasiado importantes para a economia nacional e deveriam ser explorados.14 A tomada de posição deste corpo militar misturava ambiguidade com pragmatismo. Ambiguidade, pois há uma aparente dificuldade em tomar uma posição favorável face a qualquer uma das partes. Para o oficial, as queixas populares mereciam ser escutadas e percebe-se uma sensibilidade para com elas. Contudo, tangendo uma posição desenvolvimentista, o interesse económico nacional e a autosuficiência em matérias-primas do país soprepunham-se à causa dos proprietários gaienses. Para o MFA, o interesse nacional estaria duplamente assegurado se se retirasse à empresa, através da sua nacionalização, o controlo da operação extrativa e o acesso às mais-valias da exploração mineira, e se se garantisse a exploração das parcelas, alegadamente, com mais reservas de minério.15
- 16 De acordo com um dirigente do movimento, o incidente foi provocado pela visita de um engenheiro agr (...)
- 17 Comunicado da LUAR, não datado, provavelmente emitido entre abril e junho de 1975, arquivo particul (...)
- 18 Entrevista, 10-06-2010.
15A participação do MFA no conflito deve ser entendida no plano da erosão da capacidade do Estado para fazer valer a sua autoridade e garantir a ordem pública (Bermeo 1986). A autoridade e as limitações operacionais da polícia tornaram-se evidentes para os manifestantes locais quando, em abril de 1975, eclodiu um tumulto entre trabalhadores da Dramin e habitantes da aldeia. A propósito desse evento, um gaiense recordou que a Guarda Nacional Republicana teve de ser transportada para o local em carros particulares, revelando dificuldades em apaziguar a situação.16 Percebendo a deterioração da capacidade de intervenção das forças policiais, os contestatários também contaram com a participação da LUAR. O acesso à LUAR deve ser visto à luz da interpretação que os habitantes locais tinham da volatilidade, não apenas nos alinhamentos políticos, como, também, da autoridade do Estado. A presença da LUAR na Gaia mostra como os locais mobilizaram recursos externos face a problemas imediatos. Além da distribuição de panfletos na aldeia denunciando que “O Imperalismo ataca em Gaia” e acudindo à unidade da população contra “parasitas do nosso país e […] violência reacionária […] para acabar definitivamente com a exploração capitalista”,17 o autodenominado Núcleo de Acção da LUAR na Covilhã terá também visado a segurança dos participantes no movimento numa altura – verão de 1975 – em que o enfrentamento tangeu situações de violência aberta. De acordo com um dos organizadores do movimento, “essa gente [LUAR] veio para aqui para dar proteção à população […]. Circulavam ali na zona em que a draga trabalhava […] porque os gajos [operários da Dramin] tinham ameaçado a população e as coisas estavam feias”.18
16O papel dos governos no conflito é um pouco mais difícil de situar, em parte devido à vertiginosa sucessão de executivos e à volatilidade das circunstâncias políticas que acompanharam a sua formação. Os governos provisórios liderados por Vasco Gonçalves, entre julho de 1974 e setembro de 1975, foram os que mais apoiaram o movimento. Um indicador claro da adesão governamental foi o apoio dado pelo Ministério da Agricultura e Pescas (MAP) durante os III, IV e V Governos Provisórios. Este facto é reconhecível na correspondência enviada pelos manifestantes e admitido em várias conversações informais com dois participantes no movimento. Foi uma decisão produzida por um serviço do MAP, em julho de 1975, que atribuiu aos solos foco do conflito a qualidade máxima, restringindo a sua utilização a atividades agrárias. Desta forma, os proprietários beneficiaram da legislação recentemente decretada, destinada a proteger as terras agrícolas de alto valor. Trata-se dos decretos-leis n.º 356/75 e n.º 357/75, um par de diplomas arrojados que visavam a preservação de áreas agrícolas. As consequências desta legislação fizeram-se sentir durante toda a década de 1970, assegurando a proteção dos interesses dos proprietários, mesmo após a queda dos governos provisórios (Silva 2013).
17Uma melhor compreensão de como os aliados do movimento mudaram pode ser alcançada observando-se as transformações políticas e governamentais nacionais. Por exemplo, o apoio do MAP ao movimento foi mais evidente durante os governos provisórios, quando a influência de políticos e técnicos progressistas de esquerda neste organismo era mais notória (Bermeo 1986). Depois de 1976, com a reorganização e, nalguns casos, a desativação destas estruturas (Baptista 2010), o apoio do MAP à causa dos proprietários esmoreceu. Convém apontar que o MAP, sobretudo sob a direção de Oliveira Batista nos IV e V Governos Provisórios, entre março e setembro de 1975, revelou um poder e uma capacidade de intervenção política e social sem precedentes quando comparado com os antigos organismos de tutela dos assuntos agrícolas ao longo do século XX (Caldas 1978). Contudo, após o VI Governo Provisório e o I Governo Constitucional, registou-se um afastamento do MAP em relação ao movimento da Gaia, à medida que os quadros mais alinhados com a esquerda eram afastados e novas orientações políticas, menos comprometidas com as agendas revolucionárias, eram definidas.
18Depois de 1976, para além das leis de proteção de solos, o movimento contou, também, com o apoio da Comissão Nacional do Ambiente (CNA). Este suporte ganhou robustez a partir de 1977, com o envolvimento pessoal do seu mais alto responsável, Correia da Cunha. A sua participação reforçou a validade dos decretos de proteção dos solos, não tendo pejo em afirmar-se perante os serviços que tutelavam a atividade extrativa (desde o início do conflito, do lado da Dramin) como um empenhado militante contra a atividade mineira na Gaia (Silva 2013). A aldeia tornou-se, assim, um palco de batalha, não só entre a Dramin e os pequenos proprietários locais, como, também, entre organismos estatais. O conflito ofereceu uma oportunidade para a CNA reforçar a sua luta pela adoção de formatos alternativos de desenvolvimento que não comprometessem os recursos agrários e o património ecológico do país. Do lado da Direção-Geral de Minas e Serviços Geológicos (DGMSG), uma resolução a favor da Dramin permitiria uma exceção na aplicação da lei de proteção de solos, consentindo, desse modo, a dragagem de todo o vale de Gaia e criando um precedente que poderia influenciar projetos extrativos noutras regiões.
- 19 Declaração do presidente da CNA, 31-12-1978, arquivo particular.
19A CNA, através do empenho do seu presidente, afirmou-se como o derradeiro aliado institucional do movimento, numa altura em que todas as oportunidades políticas se fechavam. A mobilização coletiva contra a exploração mineira forneceu um caso concreto para o exercício da sua missão de regulação ambiental. O conflito da Gaia serviu de paradigma do confronto entre modos de desenvolvimento conflituantes, com a CNA a tomar o partido dos contestatários, vendo o seu pleito como um grito desesperado de uma comunidade oprimida por modelos hegemónicos de desenvolvimento industrial.19
20O instrumento de protesto mais usado pelos contestatários na Gaia foram cartas e abaixo-assinados. Além de revelar a verve usada na mobilização coletiva, essa correspondência constitui uma fonte inestimável para compreender como se delineou a argumentação contra a exploração mineira. A primeira carta foi enviada em outubro de 1974 e a última em setembro de 1979, num total de 67 missivas. As sucessivas vagas de correspondência denunciavam o comportamento da Dramin, apelidando a ação empresarial de persecutória e danosa, ao mesmo tempo que a maioria dos subscritores manifestava indisponibilidade para ceder os seus terrenos à exploração mineira. O número de subscritores ascendeu a 163, um terço dos quais residente nas aldeias vizinhas e na zona da grande Lisboa, mas com ligações familiares a Gaia.
21Ao manter um fluxo constante de informação escrita, o movimento procurou assegurar um canal de comunicação com os seus interlocutores no Estado e nas organizações políticas. Esta estratégia foi decisiva para promover o movimento como um fenómeno coletivo, mostrando-o como uma expressão de ação e unidade comunitárias. Além disso, as cartas expõem (i) o aspeto emocional da mobilização social, (ii) o papel da perceção e da memória da destruição ambiental no passado, (iii) as relações de engajamento entre os indivíduos e o meio ambiente, (iv) as estratégias dos contestatários para cooptar aliados institucionais. Na correspondência, nota-se um discurso refutador do pressuposto de que a atividade mineira era decisiva para o desenvolvimento nacional. A agricultura, mesmo na sua forma de subsistência, era apresentada como uma alternativa viável à iniciativa industrial, com a paisagem rural a surgir idilicamente retratada, em trejeitos de pastoral autóctone, repleta de imagens telúricas, nas quais os terrenos cobiçados pela empresa mineira eram exibidos como marco histórico que ligava o presente a um passado sem minas.
- 20 Petição enviada à primeira-ministra, Maria de Lurdes Pintasilgo, 20-09-1979, arquivo particular.
- 21 Carta de proprietária ao MAP, 16-12-1976, arquivo DSRG-DREC-ME, pasta 797, vol. 1.
- 22 Carta enviada por um proprietário à Presidência do Conselho de Ministros (PCM), 20-02-1978, arquivo (...)
- 23 Petição subscrita por 11 proprietários ao Ministério da Indústria e Energia (MIE), 5-05-1975, arqui (...)
- 24 Petição de quatro proprietários enviada à CNA, 15-12-1976, arquivo privado.
22Nas dezenas de cartas e petições, os habitantes da Gaia surgem como partes indissociáveis do meio ambiente, sendo as propriedades em risco de dragagem consideradas como “a causa da existência do povo e […] a sua razão de viver”.20 Nessa correspondência, a paisagem rural não é retratada como um cenário distante, desconectado do contexto de vida dos sujeitos, ela é, também, representação de relações de reciprocidade e de interdependência entre pessoas e meio ambiente. As cartas expõem a dimensão simbólica dos terrenos alvo da mineração. Estes, situados entre o núcleo da aldeia e o resto do vale anteriormente dragado, funcionavam como espaço-fronteira que demarcava a aldeia do restante vale de “pedras e areia”,21 “um verdadeiro jardim”22 de “leiras férteis e cheios de árvores”,23 terrenos de “enormes e frondosas oliveiras”.24
- 25 Petição de quatro proprietários ao presidente da CNA, 15-12-1976, arquivo privado.
- 26 Carta enviada por uma gaiense à PCM, 23-02-1978, arquivo CMB, caixa 186.
- 27 Carta enviada por um gaiense à PCM, 20-02-1978, ibid.
- 28 Carta enviada por uma gaiense à PCM, 21-02-1978, arquivo CMB, caixa 228.
- 29 Carta enviada por um gaiense ao primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, novembro de 1974, arquivo CMB, (...)
- 30 Carta enviada por uma gaiense à PCM, 20-02-1978, ibid.
- 31 Carta enviada por uma gaiense ao MAP, 16-12-1976, arquivo DSRG-DREC-ME, pasta 797, vol. 1.
- 32 Carta enviada por um gaiense à DGMSG, 1976, arquivo privado.
- 33 Carta enviada por uma gaiense ao primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, 10-04-1975, ibid.
- 34 Petição subscrita por 29 pessoas enviada ao MAP, 8-12-1976, arquivo DSRG-DREC-ME, pasta 797, vol. 2
- 35 Carta enviada por um gaiense ao primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, novembro de 1974, arquivo CMB, (...)
- 36 Carta enviada por uma gaiense ao MAP, 16-12-1976, arquivo DSRG-DREC-ME, ibid.
23Os principais argumentos veiculados pelas petições e cartas, além de denunciarem a exiguidade das propostas financeiras da Dramin, exaltavam a dependência que as unidades domésticas tinham daquelas parcelas. Sublinhando o seu valor sentimental, expunham-se os receios de perda do solo agrícola e manifestava-se ressentimento contra o comportamento da indústria mineira no presente e no passado. Esta argumentação aludia, frequentemente, à memória da depredação ambiental produzida no passado e projetava autorrepresentações de modéstia e humildade. Essa humildade é evocada em pelo menos 22 documentos, onde os manifestantes se afirmam como “boa gente [e] ordeiro povo que vive animadamente do que a terra lhes dá”.25 Uma identidade assumida individualmente (“[sou] uma mulher humilde deste povo”,26 “[sou] um pobre analfabeto”27) ou coletivamente (“gente pobre”,28 “gente pequenina”,29 “fracos camponeses”,30 “somos uma classe de gente pobre e humilde”,31 “os mais desfavorecidos”.32 Um registo de humildade inversamente proporcional à representação do adversário, com a empresa mineira exposta como “papão”,33 “latifundiários movidos pelos piores instintos”,34 que trabalha “como uma matilha de cães”35 “querendo levar todos à fome”.36
24Na narrativa dos contestatários evoca-se uma relação com o meio, construída e mantida através da experiência e da prática quotidianas (Ingold 1992, 2000; Milton 2002). Tal relação, em particular com os recursos agrários e modos de produção fora do marco produtivista, projetava-se em elaborações identitárias eivadas de categorias e valores suscetíveis de reforçar a solidariedade dos habitantes locais em torno do protesto.
- 37 Carta de proprietários gaienses ao MIE, 5-05-1975, arquivo CMB, caixa 186.
- 38 Exposição à PCM, 15-12-1976, arquivo particular.
25Além de proporcionar elaborações identitárias, o envolvimento com o meio também precipita registos emocionais. Tal é observável na forma como os terrenos são apresentados como indissociáveis de todo um modo de vida histórico da comunidade, fundamentais para a economia doméstica no presente e símbolo tangível do esforço dos antepassados. Assim, preservar esses recursos agrários significava manter continuidades relacionais entre as pessoas e o lugar, alinhando os indivíduos e o coletivo com as suas origens históricas: “[os terrenos são] terra amiga porque é ela que tudo em boa verdade nos dá”;37 “são estas leiras a causa de existência deste povo […] e a sua razão de viver, porque nelas estão as suas raízes, os seus olhos, o seu pão, a sua vida, o seu orgulho e toda a sua riqueza”.38
- 39 Carta de descendente de proprietário gaiense ao secretário de Estado da Agricultura, outubro de 197 (...)
- 40 Petição de quatro proprietários de terras à CNA, 15-12-1976, arquivo CMB, caixa 227.
26O papel e a importância da relação com o meio mais percetíveis se tornam vistos num duplo plano de valorização da propriedade rústica, ou seja, no valor tangível e intangível atribuído às parcelas objeto da querela. As narrativas recorrem à emoção para exaltar tanto a função produtiva dos terrenos, como a memória coletiva daquele “jardim, alegria do povo”:39 “aqui ainda se trabalha de sol a sol, […] sem férias, sem Natal, sem assistência […] mas apesar de tudo adoram a sua terra, porque é esta que regada com o seu suor lhes dá o pão e a vida; nela têm raízes, aqui viveram seus avós, seus pais, e continuarão seus filhos e netos”.40
- 41 Ver, também, por Ortner (1995), Polletta e Jasper (2001) e Flam e King (2005).
- 42 Carta de proprietária à PCM, 20-02-1978, CMB, caixa 228.
- 43 Petição de quatro proprietários à CNA, 15-12-1976, ibid.
27A leitura da correspondência enviada pelos opositores à exploração mineira na Gaia coloca em perspetiva o papel das emoções na mobilização coletiva.41 A ansiedade e a angústia tornam-se os principais indicadores da expressão emocional, num registo que reforça os já referidos processos de construção identitária em torno da pobreza e da humildade e em estreita associação com a denúncia da conduta prepotente da Dramin. Além disso, as emoções reforçam a visibilidade pública do movimento e, ao mesmo tempo, contribuem para a sua aproximação a potenciais aliados, como foram os casos do MFA ou do MAP, entre 1974 e 1975. Na Gaia, a verve emocionada dos contestatários, para além de reforçar a sua autoimagem de humildade, robusteceu a expressão coletiva do protesto. A instrumentalidade das emoções no conflito é observável em, pelo menos, quatro níveis: (i) na negociação entre os proprietários de terras e a Dramin; (ii) na resistência popular contra a mineração; (iii) na mobilização dos participantes; e (iv) na cooptação de aliados. É patente a forma como o registo emocional serve para defender uma valoração da propriedade superior à oferta da Dramin; para isso, concorre a contabilização dos laços afetivos numa equação repleta de variáveis intangíveis, em nítido contraste com o cálculo objetivo da empresa. A emoção emerge, também, para reforçar os apelos dirigidos aos poderes institucionais e às organizações políticas, acentuando a imagem negativa da empresa mineira. O tom angustiado dos contestatários contribuiu para armar a resistência contra a exploração mineira, exibindo a draga como o símbolo excelso da ruína e da morte: “tirar-nos estes bocadinhos então era morrermos aqui à fome rodeados de areia e pedras, que é o que a empresa busca”;42 “se essa terra fosse destruída […] seriam […] umas dezenas de famílias […] atiradas para a miséria, o abandono, a desgraça e a fome”.43
28Em 1979, o IV Governo Constitucional liderado por Carlos Mota Pinto decretou a utilidade pública das parcelas foco do conflito, abrindo caminho para a expropriação e posterior dragagem daquela área. Para tal, muito contribuiu a aprovação da lei n.º 36/79, que isentou a atividade mineira das implicações da legislação de proteção dos solos de 1975, como a Dramin e a DGMSG vinham exigindo. No entanto, a expropriação nunca se concretizou, acabando os proprietários por negociar com a Dramin o arrendamento e dragagem das parcelas em 1980. O conflito, que desde cedo atravessou a cena pública sob a forma de manifestação coletiva, acabou por se extinguir na discrição das negociações privadas entre proprietários e empresa mineira. Este desfecho evidencia as transformações ocorridas no plano político e económico. À medida que as alterações económicas de viés liberal tomavam o país no final da década de 1970, fechavam-se portas institucionais a movimentos e causas próximas de modelos de produtivos e organizativos de base cooperativa (Baptista 2010). O impacto destas alterações macroestruturais refletiu-se na vida dos movimentos coletivos locais e na sua capacidade de suster níveis de participação como os que se verificaram a meio dos anos 70. O conflito da Gaia, que começara com uma recusa inicial dos proprietários em aceitar as contrapartidas financeiras da empresa mineira, evoluindo rapidamente para uma posição coletiva de intransigência face à possibilidade de ceder as parcelas para mineração, terminou, mais tarde, numa democracia normalizada (Rezola 2008), com a aceitação de contrapartidas monetárias pela dragagem de um lote de terras tão apreciadas por proprietários e pela companhia.
29Nesta revisitação de um conflito socioambiental espoletado pela revolução de 1974 num contexto rural observaram-se os quadros de oportunidade política pós-revolucionária e o seu contributo para a eclosão da mobilização popular em articulação com o papel da perceção do ambiente, em particular a partir da memória da devastação ambiental no passado.
30A abordagem ao conflito da Gaia percorreu cinco grandes eixos de análise: (i) o surgimento de uma afronta suficientemente aguda para espoletar uma reação coletiva; (ii) a presença de quadros de liderança e a organização de um núcleo coeso de opositores; (iii) a abertura de oportunidades políticas para a ocorrência de manifestações públicas de protesto; (iv) a capacidade de, uma vez constituída como movimento, a ação contestatária fornecer oportunidades políticas, a partir do nível local, a outros agentes; (v) a memória de meio século de exploração mineira e seus impactos sociais e ambientais. Considerando esta variedade e confluência de fatores, o conflito dificilmente pode ser tomado como um fenómeno que dependa unicamente das transformações aportadas pela mudança de regime. Além dos fatores políticos de índole estrutural, a ação contestatária local não pode ser separada do passado mineiro da região e da memória social dos seus impactos. Tal é evidenciado pelo constante recurso a imagens evocativas da destruição ambiental no passado e da conduta hegemónica das empresas mineiras na localidade. As histórias de vida de alguns dos principais dinamizadores do protesto revelam biografias familiares pautadas pela participação na exploração clandestina de minério em pleno Couto Mineiro e de resistência e independência face à empresa norte-americana que, durante mais de meio século, se impôs na aldeia. Confirmando as suas capacidades heurísticas (Pina-Cabral e Lima 2005), a abordagem etnográfica, ao facilitar o acesso a estas histórias de vida e de família, contribuiu para conferir profundidade histórica e acentuar a perspetiva diacrónica na análise do conflito socioambiental e correspondente movimento social na década de 70 na Gaia. Perante esta anamnese da depredação ambiental e dos comportamentos prepotentes dos consórcios mineiros, a mobilização social de 1974 pode ser lida como uma oportunidade para ajustar contas com um passado de silenciamento e repressão. A oposição à Dramin, na década de 70 e num contexto de concessão de liberdades cívicas, constituiu também uma forma de compensar as injustiças do passado.