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O anonimato em contexto de grupo: as associações "anónimas"

Anonymity in group: "anonymous' associations
Catarina Fróis
p. 293-312

Resumos

Este ensaio discute o conceito de anonimato de uma forma geral, partindo para a sua problematização tendo como caso de estudo as associações Famílias Anónimas, Narcóticos Anónimos e Alcoólicos Anónimos, procurando entender-se o modo como o anonimato assume contornos específicos e pertinentes para a sua compreensão.

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Texto integral

  • 1 O texto aqui apresentado está inserido no work in progress levado a cabo no âmbito dos trabalhos de (...)

1Este texto tem como objectivo discutir o conceito de anonimato reflectido num contexto de grupo, nomeadamente junto das associações Famílias Anónimas, Narcóticos Anónimos e Alcoólicos Anónimos.1 Antes de se entrar na análise dos dados etnográficos propriamente dita, importa perceber de que modo é que estudar e compreender o anonimato tem ou pode ter alguma importância e relevância na antropologia, nas ciências sociais e na sociedade contemporânea.

2O anonimato, ou numa formulação em termos de acção, o "recorrer-se" ao anonimato com um propósito específico, não é uma questão que tenha a sua origem num passado recente. Encontramos numerosos exemplos dos seus diversos usos na literatura (cf. Griffin 2003), em cartas anónimas (cf. Castanheira 2004, Saks e Ostrom 1973); preocupações filosóficas que vêm de correntes de estudo como o individualismo (cf. Da Matta 1990, Dumont 1983), a fenomenologia (cf. Natanson 1986, Schutz 1979) ou a preocupação com o crescimento de grandes pólos urbanos e industriais (cf. Simmel 2004, Wirth 1938), etc.

3Nos dias que correm, com o desenvolvimento maciço de novas tecnologias de informação, o crescente uso da Internet como forma de aquisição de conhecimento e de trocas comunicacionais, o armazenamento de informação individual em bases de dados, a videovigilância, etc., (cf. Poster 2000, Marx 1997, Caplan e Torpey 2001, Norris e Armstrong 1999, Turkle 1997) também novas formas de comunicação entre os indivíduos são estabelecidas. Mais do que nun¬ ca estamos em toda a parte, podendo ser quem somos ou, noutros casos, quem não somos.

4Podemos ser vistos sem sabermos e vermos sem o dizer. Esta ideia reme-te-nos de imediato para a estrutura do Panóptico estudado por Michel Foucault, associado à vigilância máxima sobre o indivíduo: "O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver - ser visto (...) é-se totalmente visto sem nunca se ver (...) vê-se tudo, sem nunca ser visto" (1997: 167). Se tivermos em conta a crescente evolução e complexificação dos meios utilizados para a identificação dos indivíduos, como bem o demonstra a colectânea de ensaios editada por Caplan e Torpey (2001), constatamos que desde a Idade Média até aos nossos dias esta tem sido uma preocupação dos Estados soberanos em relação aos cidadãos sobre os quais têm autoridade; preocupação esta associada sobretudo ao combate à criminalidade: desde a introdução do que hoje consideramos simples documentos de identificação como as cartas de recomendação, registos escritos do nome, residência, profissão, até ao aparecimento de técnicas como a recolha de impressões digitais ou a recolha de ADN.

5O anonimato, nestas condições, aparece com outros contornos, como se fosse também adaptável. A um nível mais filosófico, poderia falar-se do cidadão anónimo, do desconhecido, aquele que ninguém conhece, fenómeno que ocorre sobretudo nas grandes cidades (cf. Savage e Warde 1993). Edgar Allan Poe, no seu conto "The Man of the Crowd", relata-nos a história do homem que incessantemente procura o conforto da multidão de desconhecidos, preenchendo o vazio da solidão que a cidade em si mesma representa na (sua) existência individual.

6Diz Colette Pétonnet: "O anonimato está no cerne do fenómeno urbano. Reina sem disputa nos lugares públicos, protegendo cada um de nós e o que não revelamos, condição tão necessária (...) para tornar possível a coexistência de milhões de pessoas" (1987: 249). Georg Simmel, no conhecido ensaio "A Metrópole e a Vida Mental", tece algumas considerações interessantes a este respeito que, embora não se referindo especificamente ao anonimato, em muito se assemelham a esta consciência do outro:

De um ponto de vista formal, a atitude mental do habitante das grandes cidades poderá descrever-se como de reserva. (...) Somos forçados a manter esta reserva (...) pelo direito à desconfiança que sentimos perante esses elementos fugazes da vida urbana; (...) é frequente não conhecermos sequer de vista aqueles que durante todo o ano são nossos vizinhos (...) (2004:83).

  • 2 Referem-se em seguida alguns dos motivos que podem tornar o anonimato desejável; a vergonha, o esti (...)

7A nossa preocupação centra-se precisamente numa forma de continuação do anonimato; na pessoa que, sendo desconhecida, não se quer dar a conhecer; que, tendo ao seu dispor os meios para tal, se faz desaparecer e ocultar quem é, actuando, interagindo anonimamente, independentemente dos motivos que a levam a fazer tal opção.2 Como se espera conseguit demonstrar, o anonimato apresentase como uma forma diferente de interacção e comunicação entre os indivíduos, assumindo um papel importante na sociedade em que vivemos e nas relações que estabelecemos com os outros.

8Nenhum ponto de partida será melhor do que observar o significado de "anonimato" e "anónimo" como está definido no dicionário:

ANONIMATO, nm. Qualidade ou condição do que é anónimo; sistema de escrever anonimamente. (Var. [p. us.]: anonimado.)

ANÓNIMO, adj. Sem nome; não assinado; que não tem o nome do autor; pouco conhecido; obscuro: artista anónimo; (Com.) diz-se da sociedade comercial que não é designada por nome ou firma, e sim por um título que designa o fim social ou a sua natureza; nm. aquele que não assina o que escreve; indivíduo sem renome, obscuro. (Dicionário Universal da Língua Portuguesa)

9Tal como consta nas definições apresentadas, o anonimato prende-se sobretudo com o desconhecimento de "quem é" o outro, da sua ausência na interacção e na comunicação que é estabelecida. Ou seja, existe um interlocutor, a mensagem e aquele que a recebe mas no entanto apenas estamos na posse destes últimos, não sabemos identificar quem inicia a relação.

  • 3 "Legal name"; "Locability"; "Pseudonyms linked to name or location"; "Pseudonyms that are not linke (...)

10Refere-se, em destaque, à ausência do nome daquele que escreve ou ac¬ tua. No entanto, interessa salientar que o anonimato, podendo ser entendido como a ausência do nome daquele que inicia a acção é, mais do que apenas a ausência do nome, a inexistência de uma forma (legal) de identificação. Desta-ca-se o trabalho do sociólogo Gary Marx (1999: 99 e seguintes) que propõe, nesta mesma linha de pensamento, sete possíveis formas de identificação do outro na sociedade contemporânea e em que o anonimato só seria total quando não tivéssemos presente nenhuma delas.3 Apesar de discordarmos aqui deste "radicalismo" - os dados etnográficos recolhidos assim o permitem -, é nesta linha de interpretação que se considera que o anonimato deve ser entendido.

11De uma forma muito sumária, se se pensar que, para além do nome que é realmente o que nos obriga em primeira instância a responder ao outro, preenchidos por uma identidade e uma história pessoal e vivencial que precede, muitas vezes, o nosso próprio nascimento e existência enquanto seres sociais, somos também identificados (ou passíveis de ser relacionados) pelo nosso número de contribuinte, o cartão bancário que possuímos, a nossa morada, impressões digitais, leitura da íris dos olhos ou da palma das mãos. Verificamos, assim, que estes factores ultrapassam a ideia do nome enquanto forma única de identificação. Por outro lado, uma muito interessante questão é colocada por Kaplan e Bernays (1997: 189 e seguintes) quando discute se ao uso de um "novo nome", operacionalizado pela sua efectiva mudança, corresponde também uma 'nova identidade'. Ou seja, o facto de uma pessoa em determinado momento da sua vida decidir alterar o seu nome de baptismo, corresponderá de igual modo a uma renovação da sua identidade enquanto indivíduo com um passado e uma história pessoal e familiar?

12Robert Griffin, a propósito do uso do anonimato e de pseudónimos na literatura, refere ainda o facto de que neste caso, o uso do anonimato pode revelar mais do que esconde, no mesmo sentido que Paulo Valverde (2000) também fala de máscaras, "Se o nome legal e o nome fictício são tipos de máscaras, entendo o anonimato, não como uma falta ou ausência, mas, efectivamente, como uma outra máscara." (Griffin 2003: 10) Ainda sobre esta questão encontra-se em trabalhos de várias áreas disciplinares como o direito ou a teologia, a ideia de que não ter nome é não ter existência, nestes casos, perante a lei, a sociedade e Deus (cf. Reinhartz 1998, Elhadad 1990, Féroldi 1990, Boucaud 1990).

13Mas apenas se quis demonstrar sumariamente que nome e anonimato, tendo uma relação directa na problematização desta questão - tal como nos é proposto pelas definições do dicionário - não são, no entanto, suficientes para que possamos compreender o anonimato em todas as suas dimensões na sociedade contemporânea. Como Helen Nissenbaum nos diz:

(...) o valor do anonimato não reside na capacidade de se permanecer incógnito, mas na possibilidade de agir ou participar mantendo-se fora de alcance, inalcançável. (...) aquilo que está em jogo no anonimato é precisamente esta inalcançabilidade. Se noutras épocas manter-se incógnito - isto é, optar por não revelar o nome - era a melhor maneira de conquistar inalcançabilidade, faz sentido que essa opção fosse protegida. Manter-se incógnito, porém, não deve ser entendido como o fim em si do anonimato, mas antes como o meio tradicio¬ nal através do qual a inalcançabilidade tem sido conquistada. (1999: 142)

14Apresentam-se em seguida alguns dos dados recolhidos em trabalho de campo com três associações em que a regra do anonimato se assume como uma das condições fundamentais para a sua existência e operacionalidade. Pretende-se que a análise destes elementos permita alargar a discussão em torno da ideia de anonimato que temos vindo a apresentar até aqui.

Os grupos anónimos

15Os dados apresentados são o resultado de um trabalho em curso desde 2002, iniciado com as Famílias Anónimas (FA) e posteriormente com os Alcoólicos Anónimos (AA) e os Narcóticos Anónimos (NA). O acompanhamento dos grupos foi realizado na área da grande Lisboa, dedicando a cada uma das associações nove meses de observação participante em reuniões semanais, com horários e locais distintos, tendo ainda sido feitas entrevistas aos seus membros, sempre que possível em diferentes etapas da sua frequência. Podemos caracterizar estas três associações como sendo todas provenientes do modelo tradicionalmente conhecido como de 22 Passos e que tem a sua origem nos Alcoólicos Anónimos, associação criada nos Estados Unidos da América na década de 1950. Todas as associações existentes sob a denominação de "anónimas" derivam deste modelo, que foi sendo adaptado para as diferentes áreas a que se dedicam, estando actualmente difundidas por todo o mundo.

  • 4 Alguns exemplos: "Overeaters Anonymous", "Recovery Couples Anonymous", "Sexual Compulsives Anonymou (...)

16Neste texto focamos apenas três associações - por serem as que existem em Portugal há mais tempo - mas encontramos muitas outras em que este modelo é utilizado. No nosso país temos ainda os Emocionais Anónimos, os Nicotino-Dependentes Anónimos e os Co-dependentes Anónimos. Existe ainda uma associação com objectivos específicos muito semelhantes aos das FA dirigida especificamente a familiares de alcoólicos - os Al-Anon. Refira-se ainda que nos Estados Unidos da América encontramos mais de trinta associações com diferentes objectivos seguindo todas este modelo.4

  • 5 O termo "adicção" (usado pelos informantes tanto na oralidade como na escrita como adaptação ao por (...)
  • 6 Não serão aqui considerados os elementos que poderiam explicar a média de frequência de idades ou d (...)

17No caso dos AA, o problema focado é o abuso do álcool. Nos grupos acompanhados, esta associação é composta na sua maioria por homens com idades compreendidas entre os 35 e os 60 anos. Nos NA foca-se a "adicção" (sic),5 ou seja, o uso de drogas e de álcool ou outras substâncias químicas. Verifica-se que neste grupo há também uma predominância de homens com idades entre os 25 e os 45 anos. As FA são uma associação dirigida a pessoas familiares de alguém com problemas de adicção e é composta na sua maioria por mulheres com idades entre os 45 e os 65 anos.6 Qualquer uma das associações é composta apenas por membros e não por profissionais das áreas das diferentes associações, sendo por isso considerados como grupos de auto-ajuda ou ajuda mútua.

18Importa ainda salientar que a análise que aqui será apresentada dará um maior ênfase à forma como o anonimato é importante nestes grupos, considerando que o estudo destas associações não se esgota no âmbito desta problemática. Por partilharem de um modelo comum, qualquer uma das três associações define-se como "irmandade" ou "associação sem fins lucrativos", com estatuto e organização próprias, em que indivíduos se reúnem para, através da identificação e narração de sentimentos e situações comuns, "tratar" dos problemas que ali os levam. Segundo a filosofia preconizada, os 22 Passos são "etapas" ou "princípios" pelos quais um indivíduo deve passar para conseguir, gradualmente, chegar a uma situação de estabilidade quer física quer emocional relativamente ao problema com que está a lidar. Em complemento com as 12 Tradições (normas pelas quais o grupo se deve reger) são a base destas associações.

19As associações subdividem-se por grupos a que corresponde efectuar uma reunião semanal dos vários membros. Apesar de tratarmos aqui das três associações em simultâneo, elas são independentes umas das outras mantendo, como já foi dito, estatuto e formatos de existência semelhantes. Num mesmo local podem decorrer reuniões de um grupo de FA às segundas-feiras às dezanove horas, por exemplo, e às terças-feiras às vinte e uma horas realizar-se uma reunião de NA. As reuniões são efectuadas em diversos locais, tendo sido observada uma preferência por centros paroquiais e igrejas e uma preocupação de não ser um lugar "exposto", para que exista uma suficiente discrição daqueles que ali se dirigem. Apesar de existir uma componente religiosa ou de "fé" na filosofia preconizada - designada pelos seus membros como sendo "espiritual" - uma das regras é que esta não seja condição de aceitação dos membros nem seja divulgada enquanto tal. Ou seja, a escolha do local da reunião está relacionada com a disponibilidade (e aceitação das entidades) de salas vagas e não com questões de outra natureza.

  • 7 Nome fictício, tal como todos os outros constantes neste texto, a pedido específico dos entrevistad (...)

20Como nos diz Vasco,7 um membro de FA, a propósito do local de reunião onde vai:

A sala de (...) é muito boa porque ali entram drogados [NA], entram bêbedos, [AA] entra tudo, porque há muitas reuniões ali, os grupos uns vão para um lado, outros vão para o outro; não se sabe [fora dali] o que é que aquela gente ali vai fazer. Na nossa reunião, às vezes ao mesmo tempo [no mesmo local] está lá o grupo folclórico, está lá tudo.

21A par de "cargos" que são mantidos por membros escolhidos dentro do grupo (a estes membros é dada a designação de "servidores de confiança") e que asseguram a sua manutenção e funcionamento enquanto tal, a reunião está aberta a todos os membros que não desempenhem ali qualquer função e que estejam presentes apenas como participantes.

22As tarefas no início de uma reunião são realizadas automaticamente em torno da mesa: colocar cadeiras em número suficiente para os membros que estão presentes e aqueles que podem vir a assistir, dispor a literatura em cima da mesa e alguma que é posta nas paredes. Posteriormente, o coordenador dá início à reunião através da leitura de um "guia sugerido para as reuniões" - folheto específico que é utilizado por todos os grupos. Anuncia em seguida as regras da reunião (duração de uma hora e trinta minutos, com o seu terminus às x horas) e pede que cada um fale na sua vez, nunca durante mais de três minutos para que todos os que o desejam possam intervir. Pergunta ainda se existe algum membro "novo" ou um visitante. Por novo membro entende-se que é a pessoa que está a assistir a uma reunião daquela associação pela primeira vez. Caso exista algum presente, é-lhe explicado que é a pessoa mais importante naquela sala, pelo que é pedido que não intervenha ao longo de toda a reunião para que possa escutar aquilo que os outros membros têm para dizer e são-lhe reservados os últimos trinta minutos, altura em que toda a atenção lhe é dirigida.

  • 8 A esta exposição, bem como às intervenções dos diversos membros dá-se o nome "partilha", ou seja,ca (...)
  • 9 Damos aqui alguns exemplos de temas falados nas reuniões: "Medo", "Fe", "Serenidade".

23Por regra existe um tema sobre a qual um convidado faz uma exposiçã tendo por base a sua experiência pessoal.8 Na ausência de um convidado e de tema, são feitas propostas pelos vários membros que, em conjunto, decidem qual o tópico dessa reunião.9 Independentemente destas circunstâncias, de uma forma geral, o tema está já predefinido bem como as leituras que são feitas no início e que convidam a uma reflexão que cada um faz para si próprio.

  • 10 "Concedei-me Senhor, Serenidade para aceitar as coisas que eu não posso modificar, para modificar a (...)

24Existindo um convidado, como foi dito anteriormente, este faz a sua apresentação, referindo-se apenas a si próprio e aos acontecimentos que lhe têm ocorrido relativamente ao problema que ali o leva. Após esta exposição, cada um dos presentes intervém, referindo-se ou não ao que ouviu anteriormente. Na maior parte das vezes, as exposições têm um carácter pessoal e uma carga emotiva muito forte. Chegados ao fim do tempo estipulado, o coordenador volta a ler o "guia", pergunta se o secretário tem alguma comunicação de outros grupos a fazer, faz passar o saco das contribuições por todos os membros, relembra a 12a Tradição dos grupos referente ao anonimato, lê um cartaz que está em cima da mesa e que diz "Quem você vê aqui, o que você ouve aqui, quando sair daqui, deixe que fique aqui" e a reunião é dada por terminada quando todos de pé e de mãos dadas numa roda dizem a "Oração da Serenidade"10 e dizem em seguida: "Volta que isto resulta, se tu trabalhares o programa!" A sala é então colocada na disposição inicial sem que seja deixado qualquer vestígio da passagem pelo grupo ali.

25Este é, por norma, o formato que qualquer uma das associações observa do decorrer de uma reunião, podendo contudo existir algumas diferenças, seja no modo como são feitas as leituras iniciais ou no modo como as salas são dispostas. Assim, no caso das FA e dos NA, verifica-se que num período inicial são feitas várias leituras distintas, ao passo que nos AA consistem apenas na leitura da "Reflexão Diária". Algumas reuniões são dispostas em plateia, outras há em que os membros estão sentados à volta de uma mesa, etc.

Os Alcoólicos Anónimos

26O caso da Maria, 50 anos, que frequenta a associação há 7 anos:

Conheci Alcoólicos Anónimos através de um padre católico, que eu procurei, pela necessidade de deitar cá para fora, da culpabilização. Como fui educada e sou católica, volta e meia ia chorar para o padre porque não tinha coragem de dizer a mais ninguém. Até porque pensava que era um vício, não sabia de todo que era uma doença, até que este padre me disse que não tinha que ter culpa nenhuma, não era vício nenhum, não era culpa nenhuma e que eu tinha era que ir para os Alcoólicos Anónimos.
Eu comecei a beber tarde, embora eu sempre tivesse gostado do sabor de quase todas as bebidas alcoólicas e percebi que aquilo me fazia estar num estado de espírito diferente e de que eu gostava, daquela passagem tipo anestesia.
Depois eu tive uma vida difícil de casamento e divorciei-me, e comecei a beber porque não aguentava. E comecei a beber à grande, sem me preocupar rigorosamente com nada nem com ninguém. Nem com os filhos, nem com os pais, nem com nada. Era para anestesiar mesmo. Era para dormir, era para fugir à minha realidade. Eu já não trabalhava, deixei de trabalhar e eu estava todo o dia à espera da hora de beber, que era só ao fim do dia. Durante o dia eu man-tinha-me com comprimidos, porque os psiquiatras passavam-me comprimidos e então eu estava bem, era ansiolíticos, era anti-depressivos, era hipnóticos para dormir, era tudo. Um dia dei comigo a não conseguir controlar e aí assustei- -me.
Não conhecia mais ninguém assim e tudo era um bicho-de-sete-cabeças. Isolar, isolar, isolar, estar em casa, não fazer nada, vegetar, tomar comprimidos até chegar a hora de beber. O que é certo é que isto foi continuando assim, sem eu saber o que é que havia de fazer à vida, sem desabafar com ninguém a não ser com os padres e até que surgiu esse e eu telefonei para os AA. E consegui que pelo telefone me dissessem como é que se fazia para não beber, como é que era, como é que se fazia. E a pessoa disse-me que a resposta era um dia de cada vez não tocar no primeiro copo e isso não me serviu. E então foi mais um ano. E um dia sem eu perceber porquê, vinha a fazer uma viagem de lá de cima do Norte e na viagem eu passava sempre em Fátima a dar um beijinho a Nossa Senhora e dessa vez decidi não ir. E nisto dá-me um baque terrível, eu choro, choro, choro.
Eu pensei que ia chegar a Lisboa e ia ter que dar um rumo à minha vida: "ou mato-me ou saio disto porque isto é um inferno, não aguento mais". E pela primeira vez não bebi. Cheguei a Lisboa, tinha guardado religiosamente o pa-pelzinho com o contacto de AA e fui buscar o número de telefone. Falei de novo, soube quando é que havia uma reunião. E eu não bebi nesse dia e no dia seguinte então lá fui a uma reunião. Ia cheia de vergonha, cheia de medo, estas coisas acho que são mais ou menos normais sobretudo nas mulheres; pensando que eu era a única e não era nada, havia muitas lá. Não me importava com nada a não ser com a certeza que aquela gente me dava de que eu era capaz de parar de beber que era o que sobretudo me interessava. Eu não acreditava, achava que era impossível, era impossível para mim parar de beber. E passou um dia, dois, três, quatro, passou uma semana e foi a data mais bonita para mim em todo o meu processo de álcool, até hoje. Foi eu ver que era possível. Ao fim de sete dias, uma semana, eu vi que era possível eu não beber. Mas isto só não largando as reuniões, porque eu precisava daquilo, eu sentia perfeitamente que eu precisava da força dos grupos, das pessoas iguais a mim, da identificação; as pessoas falavam e falavam de mim, das experiências delas, normal¬ mente muito mais pesadas mas não interessava, os sentimentos eram os mes¬ mos.

Os Narcóticos Anónimos

27O caso do José, 38 anos. Frequenta a associação há IO anos:

Eu comecei a usar drogas propriamente ditas na ordem dos meus 22, 23 anos. Não quer dizer que não as tivesse usado antes, mas de uma forma compulsiva foi a partir dos 23 e depois é um percurso que as pessoas vão fazendo com o uso de drogas, às duas por três sentimo-nos bem. Se de alguma maneira aquilo que procuramos é o efeito da droga, depois ficamos dependentes e fazemos tudo aquilo que é necessário fazer para usar porque já não conseguimos estar sem usar drogas.
E depois foi todo um percurso desde essa altura até aos 28 anos de idade, que foi quando entrei em recuperação, em que houve várias tentativas minhas de parar de usar. Eu de facto conseguia parar mas não me conseguia manter parado. Assim voltava a usar mais ou menos e depois voltava ao mesmo sistema: roubar, enganar, etc. para ir usar drogas.
E depois cheguei ao meu fundo do poço, em que muita coisa me aconteceu, em que cheguei àquilo que eu interpreto como ter ultrapassado determinados limites e em que me lembro que os meus pais foram para fora e nesse mês que os meus pais estiveram fora, eu estive em casa com acesso a uma série de coisas no culminar do meu uso. E então roubei cheques, falsifiquei cheques para arranjar dinheiro para ir usar. Mas enquanto fazia isso, parece que a minha cons¬ ciência estava lá, sempre constante e eu sentia-me mal, sentia uma grande vergonha e a sentir que mais cedo ou mais tarde quando os meus pais chegassem eu tinha que enfrentar o buraco. E de facto quando a minha mãe chegou e o meu pai, e a minha mãe me perguntou: "Então, está tudo bem?" e eu disse-lhe: "Não, está tudo mal". Portanto eu tinha consciência que eu ia ter que assumir que tinha feito um determinado número de coisas e que elas se iriam saber de qualquer das formas, mas eu preferi ser eu mesmo a admiti-las logo a priori. E então mais uma vez tentei fazer uma desintoxicação em casa, foi a terceira que eu fiz em casa, fora outras duas ou três que eu tinha feito internado em clínicas. Esta foi aquela que eu fiz para parar de usar e depois de passada a ressaca, na semana seguinte eu dei-me conta que eu acordava e não conseguia estar sem usar. E como não conseguia ter acesso às drogas porque estava fechado em casa, então eu ia beber. Ia à garrafeira do meu pai e ia beber.
E isto foi uma sequência de coisas de que eu me comecei a dar conta ao longo dessa semana e que era o facto de eu quinze dias antes estava num desespero tão grande que eu queria parar com aquela vida e, passada a ressaca, eu estava a constatar que eu não conseguia. E os meus pais começaram então a fazer contactos para um centro de tratamento em Inglaterra. A sensação que eu tinha é que eu tinha era que sair daqui, sair do local onde vivia, sair do meio onde eu vivia porque eu sinto que estava saturado de tudo. Saturado da minha vida, do meio ambiente, saturado das pessoas. Envergonhado, com sentimentos de culpa e uma data de sentimentos que eu não estava a saber lidar com eles.
Na altura em que eu vim e que eu comecei a frequentar salas [outro termo utilizado pelos membros para se referirem às reuniões], senti uma grande receptividade das pessoas já com algum tempo, quando se apercebiam que eu era um recém-chegado. Eu fiz noventa dias, noventa reuniões, e foi extremamente importante, não só porque criou uma rotina diária para mim, que isso eu acho que é uma necessidade muito grande num adicto, especialmente quando entra em recuperação. Porque nós não temos rotina, não temos regras, disciplina, em nada mas porque isso me ajudou de facto a envolver-me no meio, enquanto que se eu fosse hoje e depois só daqui a duas semanas, isso tornava-se muito mais complicado. Indo a noventa dias, noventa reuniões, foi bom para eu criar um método que de alguma forma torna muito mais rápidos os resultados em termos de me envolver no meio de NA e de me sentir pertença da Irmandade. Eu tinha bem a noção de que tinha que criar novas amizades, que tinham de ser dentro do meio daquilo que seria NA. Para mim foi o fechar de um capítulo e o abrir de um outro em que tudo aquilo que tem o antigamente - pessoas, lugares, hábitos - fecha-se o livro e agora começou-se um novo em que os meus hábitos tinham que ser diferentes, as pessoas tinham que ser diferentes, tudo.

As Famílias Anónimas

28O caso da Inês, 39 anos, que frequenta a associação há 2 anos:

Eu conheci o meu marido à noite, e à noite toda a gente bebe. Eu sou divorciada de uma pessoa de nada destes problemas e conheci o S. (...) e encontrávamo-nos sempre à noite. Houve uma vez em que ele dormiu em minha casa e eu estranhei porque eu na altura eu tinha uma garrafeira em casa e eu estranhei ele ir durante a noite beber mas não dei grande relevância a isso. Depois o tempo foi passando, ele ia às vezes lá a casa e houve uma vez de manhã que eu notei que ele estava com uma grande ressaca. Mas a ressacar tipo drogas, com tremuras, com vómitos. Mas eu também conhecia-o há pouco tempo e percebi logo que ele era alcoólico e que se drogava. Eu já tinha a experiência de ter visto isso com o meu pai, não é? [o pai da informante é alcoólico] E a coisa foi correndo, eu comecei-lhe a perguntar: "Mas tu não és capaz de não beber?"
Com o andar do tempo fui-lhe dizendo que ele era alcoólico e que tinha um problema com álcool e com drogas. Eu abordei a família dele a perguntar o que é que achava, que aquilo era um exagero e a família achou que eu era louca. A coisa correu, ele perdeu o emprego, começa a consumir, era uma coisa desgraçada, a pedir dinheiro a toda a gente, eu disse-lhe para sair de casa. Começo, primeiro, agressiva, mas entretanto vejo que isso ainda piora, porque eu realmente gostava dele e queria ajudá-lo. Eu acho que não há necessidade de uma pessoa provocar a destruição do outro. E eu pensei que havia de haver outras formas de o ajudar. E eu cheguei a uma altura em que tive mesmo de me separar dele, mas disse-lhe que ele tinha aqui uma amiga para o ajudar em tudo. E eu disse-lhe que ele tinha que se tratar e foi três meses para tratamento. Acabei por perder o meu emprego. Desde apanhá-lo com mulheres na minha casa, cenas de pancadaria, muitas coisas. Era as coisas que ele roubava lá de casa, a família dele escorraçou-me, foi muito complicado. E a dada altura ele disse-me que estava sozinho, só me tinha a mim e que precisava de ajuda.
Eu comecei nas Famílias [Anónimas], ainda quando ele estava em tratamento. Se eu não tenho ido para as Famílias, tinha virado o boneco. É tão difícil viver com uma pessoa assim! É que nas reuniões as pessoas têm a mania de dizer que maridos uma pessoa pode ter muitos, mas que os filhos são para toda a vida. Mas na realidade uma pessoa quando gosta de alguém... eu tinha que dormir com ele bêbedo, é muito complicado. Tu a dizeres para ele ir pagar a renda e ele gastava 90 contos em dois dias! E eu tive necessidade de ir ter com pessoas que eu não conhecesse para saber uma outra opinião.
Eu ali sinto-me tão bem, falamos uma linguagem parecida, entendemos as coisas, porque se a gente for falar com alguém assim de fora... ali a gente pode dizer que fomos roubadas, se os filhos estão presos, se levam porrada, sei lá, ali estamos à vontade para falar dessas coisas, eles não me culpam, não me criticam, nada. E é isso que nos une, ficamos contentes pelas alegrias dos outros, ficamos tristes quando sabemos que alguém dos outros recaiu, somos muito unidos e é pelo sofrimento. Não estamos ali a criticar nem a vangloriar de nada.

  • 11 Cf. Fróis (2004), Valverde e White-Mair (1999), Cain (1991), Greil e Rudy (1983), Antze (2003).
  • 12 Os relatos aqui apresentados foram recolhidos em entrevistas individuais com os respectivos membros (...)
  • 13 Para que mais facilmente se demonstre a semelhança que temos vindo a referir entre as várias associ (...)

29Os relatos aqui apresentados constituem-se como elementos pertinentes na análise não só do tipo de experiências que levam os membros a procurar as associações que estamos a tratar mas, de igual modo, para que se compreenda a origem das motivações que subjazem à existência da regra do anonimato. É através da narrativa oral, da partilha de problemas, experiências e sentimentos comuns que a terapia toma lugar.11 Apesar de não analisarmos exaustivamente o modo como os sujeitos neste contexto - e como forma de integração no grupo - adoptam e interiorizam a filosofia das associações, salientam-se alguns elementos que ressaltam dos excertos apresentados e que se revelam comuns a um discurso colectivo dos membros.12 Expressões como a de Maria "ou mato-me ou saio disto porque (...) não aguento mais" ou a de José quando diz "(...) cheguei ao meu fundo do poço", ouvem-se com frequência nas reuniões como sendo sinónimas de que a pessoa naquele momento está "preparada" para procurar e aceitar a ajuda que posteriormente vai encontrar junto destas associações, reme-tendo-nos directamente para a impotência de que fala o 1° Passo, por exemplo dos NA: "Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que tínhamos perdido o domínio sobre as nossas vidas" (Narcóticos Anónimos 1991).13

30Do mesmo modo, a "linguagem parecida" de que fala Inês é também parte integrante do discurso e vocabulário que são usados por estas associações, atribuindo novos significados a velhos termos do quotidiano ao mesmo tempo que são interpretados por todos da mesma forma, bem como a existência de slogans ou lemas que em poucas palavras resumem alguns dos objectivos ou de formas de agir defendidas pelo "programa" (dos 12 Passos). Ou seja, se os membros de AA falam por exemplo de "medo", todos os presentes sabem que se refere ao medo da recaída; o "mantém as coisas simples" ou o "só por hoje" são também expressões recorrentes nas reuniões e que depois são veiculadas em conversas informais entre os membros ou que foram referidas nas entrevistas efectuadas. Salienta-se ainda a ideia dos "noventa dias, noventa reuniões" como sendo um dos lemas que os membros consideram importantes de transmitir a um recém-chegado, significando que uma reunião por dia durante noventa dias seguidos é o melhor modo de um novo membro se sentir integrado na filosofia da associação que começa a frequentar, no contacto com outros membros e com o adquirir de um novo modelo interpretativo e de conduta do seu problema. É, nas palavras dos próprios, "um novo modo de vida". Os membros dos grupos anónimos acreditam que a melhor forma de resolver os seus problemas é através da "identificação" com pessoas que tenham passado pelo mesmo tipo de situações. É frequente ouvir-se, por exemplo no decorrer de uma reunião de Narcóticos Anónimos, a expressão "o valor terapêutico da ajuda de um adicto a outro não tem igual". Isto é, sendo grupos de auto-ajuda mútua - compostos apenas por indivíduos com o mesmo tipo de problemas e sem a existência de profissionais especializados na área ou que ali não estão nessas condições - considera-se que um dos factores que é sentido como de união entre os mem¬ bros é a partilha de um estigma comum associado a sentimentos de vergonha e de culpa, aliviado unicamente através da troca de experiências e de um saber colectivo de modos de agir e de interpretar os problemas.

Numa reunião de NA aquilo que se encontra é uma coisa mágica: a identificação, a partilha, a igualdade, o carinho. Acho que acima de tudo é a identificação, o não estar só. Eu lembro-me que eu penso que aquilo que eu estou a passar ou a sentir é especial, a verdade é que se eu dentro de uma reunião eu falar disso tenho sempre alguém que se identifique comigo e que tem uma palavra para falar comigo sobre isso, seja uma experiência passada ou mais recente, mas é a identificação acima de tudo. (Rui, 40 anos, frequenta NA há 8 anos)

A regra do anonimato

31Os membros pertencentes aos grupos anónimos pretendem agir sem que os elementos que lhes dão um significado social fora dali sejam entendidos como factor de pertença. Assim sendo, seria como se considerássemos que a partir do momento em que entram numa reunião ou mesmo quando falam fora dali mas na sua condição de membros, se despissem de tudo o resto e se assumissem apenas como sujeitos que têm um problema específico do qual todos partilham e apenas por essa via estão unidos. Elementos de identificação como o local de residência, a profissão, a escolaridade, o estado civil - que são distintivos de quem se é - são, naquele contexto, destituídos de toda e qualquer importância. O que não significa, no entanto, que não estejam presentes.

32Propicia-se aqui a existência de um espaço confessional dirigido especificamente a uma das áreas da sua vida, em que apenas determinados aspectos são relevantes e que é partilhado por um espírito de grupo em que todos têm consciência desta delimitação, quer em termos de espaço emocional que cada um dá de si próprio, de espaço temporal (a duração de I hora e 30 minutos em que estão reunidas estas condições) ou de espaço físico, existente a priori, "equipado" para o efeito previsto e que depois volta à disposição inicial como se nada ali tivesse ocorrido. Este fenómeno só é passível de ser entendido desta forma se tivermos em consideração toda a carga emocional que lhe está implícita e que está subjacente aos motivos pelos quais os indivíduos procuram uma destas associações, por um lado, e a questão do anonimato, por outro. Os relatos que acima apresentámos mostram-nos de que modo as situações descritas podem ser dramáticas, traumáticas e estigmatizantes para os sujeitos que aqui procuram apoio.

33Considera-se assim que a existência e salvaguarda do anonimato é, na realidade, aquilo que torna possível que toda a acção decorra deste modo; é uma das regras fundamentais da filosofia de qualquer uma destas associações. Transcrevem-se aqui as 11a e 12a Tradição das FA por estarem directamente relacionadas com o anonimato, embora como já se referiu, o facto do modelo ser comum a todas as associações significa que todas têm a mesma regra:

11a - A nossa política de relações públicas baseia-se mais na atracção do que na promoção: temos de manter sempre o anonimato pessoal ao nível da imprensa, rádio, cinema e TV. Temos de preservar com especial cuidado o anonimato dos nossos membros, assim como os dos membros de outros programas de recuperação.
12a - O anonimato é o alicerce espiritual de todas as nossas Tradições, lembran-do-nos sempre a necessidade de colocar os princípios acima das personalidades." (Families Anonymous 1991)

34Esta questão está relacionada não só com os motivos pelos quais os membros consideram que o anonimato é uma vantagem e uma necessidade mas também com aquilo que o anonimato em si mesmo proporciona. Falamos de anonimato não apenas na sua acepção mais comum e que se relaciona com a ausência do nome ou de uma qualquer forma de identificação dos indivíduos mas, na mesma medida, como uma forma de protecção a que os indivíduos recorrem neste contexto.

  • 14 Os membros dos grupos anónimos falam em "poder superior".

35É necessário compreender-se que o anonimato nestas associações existe tanto para fora do grupo como dentro dele, apesar de, numa reunião, as pessoas estarem face a face. Num momento inicial de frequência dos grupos, o "não se ter de dizer quem se é" revela-se de extraordinária importância, ainda que, como defende Erving Goffman (1983), toda a interacção presencial implique já um conhecimento do outro, mesmo que esta interacção não seja verbal. No caso que analisamos aqui, o facto de os membros se juntarem para tratar de um problema específico (que é comum a todos e por isso ali estão) e não para falar de situações do quotidiano tendo que se expor - dizer quem são, o que fazem, onde vivem - é determinante e torna irrelevante todo e qualquer tipo de atribuições que se lhes possa fazer a priori. Sylvie Faizang diz-nos a propósito do anonimato nos AA: "O anonimato é assim para os AA o sinal de renúncia da pessoa, elemento fundamental de um programa espiritual orientado para o reconhecimento da sua impotência e de um desejo de se ser ajudado por um poder ainda maior" (1996: 104).14

36Entende-se que o anonimato é garantia da salvaguarda da pertença dos membros a esta associação do mesmo modo que pode ser considerado como o veículo terapêutico em si mesmo. É utilizado tanto para dentro como para fora do grupo, preservando-se que dentro dos diversos grupos seja mantido relativamente ao conteúdo das intervenções que foram feitas e de quem as fez. Apesar de existir uma identificação através do primeiro nome dos membros dentro de um grupo, o anonimato é, mesmo assim, salvaguardado na medida em que conhecendo-se apenas o primeiro nome nem sempre se consegue estabelecer uma relação entre o nome da pessoa e quem ela realmente é. Para o exterior das reuniões, o anonimato é utilizado como uma garantia não só do que é dito, mas também de quem o disse e até de que o indivíduo — ou b ali pertence.

37A esta condição estão subjacentes as motivações da existência do anonimato neste contexto: mais do que uma segurança relativa aos membros, ele é sentido como uma necessidade. Prende-se não só com o estigma que as pessoas sentem, mas também com o facto de considerarem que o anonimato é o que põe todos os membros em pé de igualdade, abolindo quaisquer diferenciações que possam existir e que sejam independentes dos motivos que ali os levam.

Ali não interessa se és advogado, se és doutor, se tens muito dinheiro, se vens da família XPTO ou se vens do meio da rua. O propósito de começar uma coisa nova, um "novo modo de estar na vida" sem usar drogas, independentemente de se tens milhões de contos e nunca roubaste na vida ou se vens de uma prisão e a tua vida foi feita a roubar. Não interessa, isso não é importante, não interessa o nome, não interessa nada. O único propósito é a tua intenção de começar algo de novo sem as drogas estarem presentes. (Diogo, 38 anos, frequenta NA há 5 anos)

38Por outro lado, considera-se que ninguém deve usar o nome destas associações em proveito próprio, de modo a que uma pessoa em particular seja representativa de um grupo ou associação mas, mais ainda, que não haja possibilidade de qualquer tipo de exploração mediática ou comercial da organização em si mesma. Escreve o biógrafo de Bill W., um dos dois co-fundadores de AA: "(...) a maior objecção que os membros de AA têm em que se quebre o anonimato é no sentido em que diferencia as pessoas que quebram o seu anonimato de todo o resto da irmandade" (Hartigan 2000: 135).

39Independentemente do modo como as relações entre os indivíduos se desenvolvem neste contexto - uma vez que se verifica que num momento inicial a procura das reuniões é marcada pelo embaraço e pelo desconforto, à medida que o tempo passa assume outras características - não é por isso que se deve excluir a existência do anonimato numa situação de face a face. Ou seja, ainda que em determinado momento da sua frequência nos grupos um membro comece a desenvolver sentimentos de amizade e de confiança que extravasem os limites do grupo ou do objectivo das reuniões, o que é importante de salientar é a possibilidade de escolha que lhes é oferecida através da existência desta regra.

Por exemplo eu não sei onde é que as pessoas moram e acho que isso é bom. Acho que nem nunca disse que moro no Cacém, a única pessoa a quem dei a minha morada foi a ti. E acho que isso é bom. Imagina que me aparecia qualquer pessoa aqui à porta. Mesmo que eu tenha dito que morava no Cacém, o Cacém é tão grande! (Etelvina, 56 anos, 3 anos de frequência das FA)

40Poder escolher o que dizer, a quem e quando, é em si mesmo o modo de tornar possível a terapia bem como a existência dos grupos e das reuniões. Uma das questões colocada durante as entrevistas é "Se tivesse que preencher uma ficha com o seu nome, morada e profissão para que pudesse frequentar as reuniões, qual seria a sua reacção?" 90% dos membros na totalidade das entrevistas realizadas até este momento (trinta) responderam que não o fariam ou, caso tivessem que o fazer, que então desconfiariam e provavelmente não "iam lá".

Se alguém viesse lá com um questionário, eu acho que virava as costas. (...) é aquela coisa de achar que as pessoas não têm nada a ver com isso, eu ficaria desconfiado, para que é que queriam essa informação, por exemplo. Portanto foi giro perceber aquela coisa de que "o único requisito para se ser membro é o desejo de parar de usar" [uma das regras das associações que se refere especificamente à única condição para a aceitação dos novos membros], não és obrigado a nada. Eu das outras pessoas numa reunião só sei que usaram drogas, não sei mais nada sobre a vida pessoal das outras pessoas, isso não me interessa muito, não é muito relevante. (Pedro, 30 anos, frequenta NA há 5 anos)
Eu desconfiava logo. Desconfiava e pessoalmente não assinava nada e nunca mais lá punha os pés porque não têm nada que saber da minha vida, não é? Numa reunião eu também não tenho que falar da minha vida, só falo se quiser, não tenho nada que dar satisfações a ninguém não é? Só se quiser. (Tiago, 50 anos, frequenta AA há 2 anos)

41Não deixa de ser curioso o uso de expressões como "não têm nada que saber da minha vida", ou "não têm nada a ver com isso", num contexto em que a nota dominante é precisamente a exposição de acontecimentos e situações do foro íntimo e pessoal e que, segundo os membros, só ali podem ser discutidas dessa forma por se encontrarem entre pares. Podemos considerar que o anonimato é reificador de um elo "invisível" entre os indivíduos: unidos (e, segundo a sua perspectiva, compreendidos) pelo estigma mas também pelo anonimato. Em todos estes indivíduos se opera o mesmo processo de omissão da sua pertença a esta organização e, portanto, de gestão da informação do que revelam de si próprios para o exterior.

42Omissão esta que pode ser equiparada com a ideia de segredo de que nos fala Simmel, embora reconheçamos neste caso algumas particularidades interessantes de explorar. Segundo este autor - e neste ponto concordamos em absoluto com a perspectiva apresentada:

O facto de existir ou não secretismo entre dois indivíduos ou grupos, (...) é uma questão que caracteriza toda a relação de ambos. Pois, mesmo quando um deles não se apercebe da existência de um segredo, o comportamento daquele que oculta e, portanto de toda a relação, é certamente modificado por esse facto (2004: 144).

43Tal como temos vindo a demonstrar, existe entre os membros dos grupos anónimos uma comunhão de hábitos, comportamentos e filosofia de vida que passa pelo uso do anonimato como uma forma de diferenciação entre os membros e as "pessoas lá fora". Esta ideia é continuada com a condição de diferença, do ser-se diferente; que é, em si mesmo, uma forma de poder de que também nos fala Simmel.

44No momento em que um membro decide revelar a outrem a sua pertença está, nas suas palavras, a "quebrar o [seu] anonimato", não estando apenas a revelar aquilo que segundo Simmel poderia ser entendido como um segredo mas sim a revelar um outro aspecto da identidade até agora desconhecido e que é a de ser portador daquilo que, segundo Erving Goffman (1963), seria um estigma desacreditável, (re)conhecido apenas no momento em que é revelado. Assim, o membro estaria a dizer de si próprio mais do que um segredo, aquilo que é para além do que se vê.

45Adaptando a esta questão o que nos diz João de Pina Cabral sobre os "aspectos diurnos" e "nocturnos da vida sócio-cultural" (ver Pina Cabral, 2000: 875) considera-se que o uso do anonimato, por um lado, e a sua "quebra", por outro, estariam nos dois pólos desta dicotomia se tivermos em conta que o que é hegemónico neste contexto é a partilha do anonimato e não o seu inverso. Aos "aspectos diurnos" e portanto legitimados corresponderia o uso do anonimato e, aos "aspectos nocturnos" e reprimidos estaria a quebra do anonimato e o assumir do estigma. É importante salientar nesta interpretação que a centralidade que confere uma atribuição de marginalidade neste contexto é observada segundo a perspectiva de um membro dos grupos anónimos e da filosofia aí preconizada e não de uma legitimação social fora destas associações, concordando com este autor quando diz "(...) que as nossas necessidades etnográficas jamais serão satisfeitas por qualquer oposição simplista entre margens e centro" (idem: 883).

46Considerando ainda que "quebrar o anonimato" é, em si mesmo, revelar a identidade do sujeito, retomamos Roberto da Matta e o seu ensaio sobre as noções de indivíduo e pessoa, "Você sabe com quem está falando?" (1990). Aqui, o autor discute esta popular expressão brasileira como sendo sinónima de uma forma de diferenciação entre dois ou mais sujeitos numa acção e em que um deles quebra o seu anonimato que é o que o coloca em igualdade em relação aos outros na interacção, de forma a afirmar a identidade que o diferencia dos demais. Diz o autor: "... tudo indica que a expressão ["Você sabe..."] permite passar de um estado a outro: do anonimato (que indica a igualdade e o individualismo) a uma posição bem definida e conhecida (que indica a hierarquia e a personalização)" (1990: 170).

47O anonimato pode ser entendido como um modo de gestão da informação que o indivíduo faz de si mesmo: pode falar-se de uma área específica da vida omitindo todas as outras por não serem relevantes nesse contexto, da mesma maneira que fora de uma reunião se preserva o anonimato, isto é, a identificação dos companheiros, o que disseram e aquilo que fazem ali, mantendo simultaneamente o do próprio. Não é o Pedro, engenheiro, casado, com dois filhos, que vive na Amadora que interessa, mas sim o Pedro, pai de um toxicodependente. O anonimato será então uma máscara que o membro coloca para si próprio quer dentro de uma reunião quer para fora, no contacto com o "mundo exterior" que sente que o julga. Revela-se nos grupos anónimos mais do que uma possibilidade de gerir a forma como o indivíduo se apresenta ao outro, um referente comum de interacção: uma opção e uma escolha que, necessariamente, determina o modo como toda a acção decorre.

48Tendo em mente as transformações e evoluções tecnológicas que conduzem a um cada vez maior controlo dos cidadãos (não só pela parte do Estado e seus organismos mas também, por exemplo, por entidades comerciais) ao nível dos seus desejos, escapes, consumos preferenciais, reconhecemos que há um processo paralelo em que o anonimato actua na mesma dimensão. Aquilo a que normalmente se chama o jogo do "gato e do rato": à medida que são criadas novas formas de actuação junto dos indivíduos, também as pessoas procuram formas de fuga a este "apertar do cerco". Ao longo deste texto procurou-se sobretudo mostrar de que modo é que a antropologia e as ciências sociais em geral podem contribuir para o estudo e compreensão do fenómeno do anonimato e sua crescente complexificação na sociedade contemporânea, podendo ser considerado como um objecto de análise em si mesmo e dialogar com temas que já há muito vêm a ser explorados por estas disciplinas: identidade pessoal e colectiva; modernidade e urbanidade; privacidade e confidencialidade; relações entre nomeação e identificação; segredo/ secretismo; novas tecnologias de informação e de comunicação.

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Notas

1 O texto aqui apresentado está inserido no work in progress levado a cabo no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no curso de doutoramento feito no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Agradeço ao João Vasconcelos o apoio que me deu com os seus comentários numa primeira versão deste paper. As traduções aqui apresentadas são da exclusiva responsabilidade da autora.

2 Referem-se em seguida alguns dos motivos que podem tornar o anonimato desejável; a vergonha, o estigma, a liberdade de actuação, a possibilidade de criar e recriar uma nova identidade, ou seja, o sentido lúdico; aquilo que será, basicamente a fuga a um controlo físico, moral, social. Sobre estigma cf. Goffman (1988 [1963]).

3 "Legal name"; "Locability"; "Pseudonyms linked to name or location"; "Pseudonyms that are not linked to name or location"; "Pattern knowledge"; "Social categorization"; "Symbols of eligibility/noneligibilty".

4 Alguns exemplos: "Overeaters Anonymous", "Recovery Couples Anonymous", "Sexual Compulsives Anonymous", "Homossexual Anonymous", "Parents Anonymous", etc.

5 O termo "adicção" (usado pelos informantes tanto na oralidade como na escrita como adaptação ao português do original addiction) é usado como uma categoria indígena, não sendo elaborada aqui qualquer discussão deste conceito. Com esse propósito vide entre outros Valentim (1998), Davies (1997). Outros trabalhos sobre grupos terapêuticos que seguem o modelo dos 12 Passos podem ser encontrados, por exemplo, em Keane (2000) ou Ronel (2000).

6 Não serão aqui considerados os elementos que poderiam explicar a média de frequência de idades ou de género nas diferentes associações.

7 Nome fictício, tal como todos os outros constantes neste texto, a pedido específico dos entrevistados.

8 A esta exposição, bem como às intervenções dos diversos membros dá-se o nome "partilha", ou seja,cada um partilha com os outros a sua experiência pessoal, dando um pouco de si mesmo àqueles que o ouvem.

9 Damos aqui alguns exemplos de temas falados nas reuniões: "Medo", "Fe", "Serenidade".

10 "Concedei-me Senhor, Serenidade para aceitar as coisas que eu não posso modificar, para modificar aquelas que eu posso e Sabedoria para distinguir umas das outras."

11 Cf. Fróis (2004), Valverde e White-Mair (1999), Cain (1991), Greil e Rudy (1983), Antze (2003).

12 Os relatos aqui apresentados foram recolhidos em entrevistas individuais com os respectivos membros e não no decurso de uma reunião. Salienta-se no entanto que estes dois discursos não estão dissociados, ou seja, o que é dito individualmente acerca da frequência dos grupos e da sua filosofia é, na maior parte dos casos, uma reprodução do que é dito em reunião e que é partilhado por todos de igual forma. Uma reflexão sobre o processo de "conversão" dos membros destes grupos no contexto português pode ser encontrada em Fróis (2003).

13 Para que mais facilmente se demonstre a semelhança que temos vindo a referir entre as várias associações no que concerne ao modelo utilizado, transcreve-se o V Passo dos AA e o das FA, respectivamente: "Admitimos a nossa impotência perante o álcool - que as nossas vidas se tinham tornado ingovernáveis" (Alcoólicos Anónimos 1991) e "Admitimos que éramos impotentes perante as drogas e as vidas dos outros - que as nossas vidas se tinham tornado ingovernáveis" (Families Anonymous 1991).

14 Os membros dos grupos anónimos falam em "poder superior".

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Catarina Fróis, «O anonimato em contexto de grupo: as associações "anónimas"»Etnográfica, vol. 9 (2) | 2005, 293-312.

Referência eletrónica

Catarina Fróis, «O anonimato em contexto de grupo: as associações "anónimas"»Etnográfica [Online], vol. 9 (2) | 2005, posto online no dia 21 agosto 2016, consultado o 16 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/etnografica/2965; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.2965

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Autor

Catarina Fróis

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Bolseira de Doutoramento da FCT

catarina.frois@netcabo.pt

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