1Etnografias Urbanas é uma obra colectiva com origem no workshop realizado em Setembro de 2001 em torno do tema Cidade e Diversidades: Perspectivas de Desenvolvimento em Antropologia Urbana, organizado pelo CIES/ISCTE. Este evento prolongouse no tempo com duas sessões de trabalho em dois momentos diferentes. “Num primeiro momento, foram apresentadas 14 comunicações, agrupadas em três painéis temáticos – Poderes e Mediação, Estilos de Sociabilidade, Imagens e Contra-Imagens. Num segundo momento, realizou-se uma mesa redonda animada pelos organizadores (Graça Í. Cordeiro, Luís V. Baptista, António F. Costa) e pelos convidados (Gilberto Velho, Joan J. Pujadas, Joaquim Pais de Brito, Luís Fernandes e Fernando Luís Machado) com o objectivo de fazer um balanço provisório sobre o desenvolvimento da antropologia urbana, no contexto mais abrangente dos países de língua latina.” (p. 1)

2Seguindo, no essencial, a estrutura do encontro, a obra compõe-se em duas partes: a primeira tem como referência central “Territórios, Imagens e Poderes” e é constituída por sete artigos distintos que, segundo Luís Vicente Baptista – organizador desta parte – “resultam de investigações centradas na cidade e nas suas diversidades.” (p. 35); a segunda parte, dedicada a Estilos de Sociabilidades, apresentada por António Firmino da Costa, reúne um conjunto de trabalhos que são, segundo o autor, “novos contributos para o conhecimento dos estilos de sociabilidade urbana que se vão gerando nos tempos que correm” (p. 125).

3O primeiro texto é, em jeito de prólogo, de Graça Índias Cordeiro e, nele, situa a antropologia urbana, desde a génese da sua designação e dos factores que contribuíram para o seu aparecimento, passando por abordagens e metodologias de referência, como a escola de Chicago e a ecologia urbana, os estudos de comunidade e o interaccionismo simbólico, até às críticas apontadas à sua institucionalização. Depreende-se desta resenha que a capacidade heurística da antropologia urbana em fazer pensar a cidade enquanto focus, e essencialmente locus, parece, no entanto, susceptível à tentativa de ultrapassar a dualidade terminológica que lhe está subjacente: urbano versus rural.

4Não é, no entanto, este o quadro de referência dos dezasseis autores desta obra colectiva, porque a unidade não é nem temática nem programática, é antes de mais, e tal como o sublinham os organizadores, “um conjunto de reflexões e investigações em curso que têm em comum o facto de se realizarem nas duas maiores cidades portuguesas, ao mesmo tempo que adoptam, em graus varia-dos, uma perspectiva etnográfica” (p. 1).

5Na apresentação da primeira parte do livro, Luís Vicente Baptista articula três das qualidades da cidade: a cidade enquanto lugar físico, a cidade das imagens que se edificam em torno destes lugares, e a cidade dos poderes que a configuram fisicamente.

6Ao escrever sobre a cidade exposta, Joaquim Pais de Brito consegue mostrar, como faces da mesma moeda, de um lado, a cidade que se impõe pela sua grandeza graças à força monumental da sua presença física e, do outro, a cidade plástica passível de ser moldada pelo olhar de cada um. A cidade é então, e também, uma interacção criativa, produto da subjectividade humana, como sublinha o autor: “Ela é feita de múltiplos territórios com que nos sentimos identificados ou onde nos sentimos estranhos. Por isso também a cidade vê gerar esse efeito de uma natureza muito para além de nós. Uma natureza não isenta de ameaças, de perigos, de desconhecido. Como se a eficácia das instituições e da sua governação trouxessem o afastamento dos habitantes em relação à coisa pública que habitam e de que são parte. Como trazer para uma exposição a cidade como natureza apelativa e também inóspita? Como evocar uma ideia de grandeza que nunca abarcamos na sua totalidade?” (p. 50).

7Ao questionar qual a cidade que se expõe, Pais de Brito revela um jogo de opções perceptível na dificuldade em materializar, no espaço do museu, a metrópole já questionada por Simmel.

8Simmel é a referência de praticamente todos os textos dedicados à análise dos estilos de sociabilidade. António Firmino da Costa, no texto de abertura desta segunda parte, dá conta do fluir de sentido, da plasticidade do uso do termo “sociabilidade” e, não obstante, do valor acrescido que o conceito simmeliano assumiu no contexto da teoria sociológica.

9Etnografias Urbanas mostra a cidade na qual a agência humana opera a múltiplas escalas, que não restrita ao local territorial ou a formações socioculturais estritas, o que explica a orientação de parte dos textos para a problemática das múltiplas pertenças, como são os casos de Fernando Luís Machado, ao analisar a questão da etnicidade e sociabilidade dos guineenses em Portugal, e de Marina Antunes, a propósito de um estudo sobre um grupo de jovens portugueses de ascendência caboverdiana. O próprio conceito urbano re-conceptualiza-se enquanto espaço social, nacional, transnacional – veja-se o caso dos processos de integração na imigração estudados por Rui Pena Pires. E é no “diálogo” entre redes alargadas de significado, poder e prática social, e as redes locais, de práticas e significados, que se (re)configuram identidades, como o mostram Maria do Carmo Carvalho, no estudo da difusão de tipos de cultura juvenil de origem anglo-saxónica na área urbana do Porto, Inês Pereira, ao estudar a perfomance identitária ligada com as danças galegas, Susana Henriques, ao trabalhar a noção de risco cultivado, e Miguel Chaves, no estudo das raves ao identificar um conjunto de “éticas” a partir das quais se podem questionar noções como liberdade e hedonismo.

10Etnografias Urbanas não esquece a cidade que se imagina, que se cria e se recria, quer por nós próprios quer pela força da ampliação dos media, o que leva a colocar novas hipóteses de entendimento da realidade vivida no espaço citadino, é o caso da hipótese predatória de consolidação da imagem da cidade, proposta por Luís Fernandes. O entendimento da cidade passa então, e também, por uma dinâmica cultural de produção de significados a partir de práticas e materiais discursivos, como é o caso da presença das mulheres-polícia nas ruas, estudado por Susana Durão e Alexandra Leandro, e do estudo sobre os circuitos de comunicação na prática quotidiana, encetado por Tiago Neves, que parecem funcionar como um recurso na definição da “normalidade” num terreno psicotrópico.

11Os comentários finais da obra, da autoria de Gilberto Velho e de Joan J. Pujadas, ressaltam os aspectos essenciais do livro, referindo, entre outros, a importância da orientação multidisciplinar na abordagem das questões relevantes sobre a vida social nas cidades; e, do ponto de vista metodológico, salientando o lugar fundamental que a etnografia e a observação participante ocupam na análise dos contextos urbanos entendidos como locais dinâmicos, de conexões entre pessoas e lugares por meio de redes (complexas e dispersas) de circuitos de comunicação que afectam o quotidiano de vida de cada um.