1Este livro reúne textos provenientes de jornadas de reflexão com o tema “Usos Sociais da Etnologia”. Nessas jornadas três grandes questões foram abordadas: o património, os problemas sociais e os nacionalismos. O tema dos heróis nacionais terá aparecido aos organizadores destas jornadas como um bom modo de abordar os valores que fundam a ideia de nação e constituem o seu património ideológico.

2A obra que recenseio apresenta uma selecção das contribuições dos participantes nessas reuniões e, segundo Claudie Voisenat, que assina os “avant-propos”, deixa sem resposta a questão da importância, para as nossas sociedades, de personalidades mediáticas como Madona. Os contributos estão agrupados em quatro capítulos intitulados, “Heróis e nações”, “Atributos e paradoxos”, “O tempo dos heróis: emergências e declínios” e “A oficina dos heróis”. A minha recensão coloca-se necessariamente do ponto de vista do historiador e pretende apenas contribuir para o debate entre as áreas científicas da história e da antropologia.

3A introdução, da autoria dos coordenadores da publicação, delimita o tema de uma forma que parte dos estudos felizmente não seguirá. “A fabricação e a promoção dos heróis estão em perfeito acordo com o ritmo da fundação nacional”, escreve-se nela. Parece-me ser esta afirmação tautológica se, por outro lado, se afirma serem só deste tipo os heróis estudados. A própria cronologia não podia ser outra quando se considera a nação como emergindo em conjunto com a cidadania nos finais do século XVIII. Um dos problemas que põe esta delimitação é que, para terem uma biografia reinventada, todos os heróis anteriores têm de ter tido um nascimento noutro contexto, mesmo tendo significado, características e objectivos diferentes.

4Heróis são “os que se vão da lei da morte libertando”, como escreveu Camões. Ou, se nos referirmos à inevitável mitologia grega, os que escaparam ao inferno órfico do esquecimento. Nas tragédias gregas os heróis eram intermediários entre a sociedade e o sagrado. Punham em contacto a história profana e o tempo dos mitos e dos deuses. A sua vida tocava o absoluto e era vivida como um destino que se ligava à cidade mas do qual esta se distanciava. Desta forma os heróis estavam associados à legitimação do poder.

5Assim – e sem pretender seguir a sua história no contexto dos diferentes poderes em circulação nas sociedades que precederam a emergência do nacionalismo – heróis são os que são guardados pela memória colectiva como tal, sendo um importante elemento da sua identidade e da legitimação do poder vigente.

6Do passado não se faz tábua-rasa e a nação constrói-se com materiais preexistentes múltiplos, que foram guardados devido a um conjunto complexo de factores, variável em cada caso. Pare-ce-me pois pouco adequado escrever:

D’ailleurs tous les travaux ici presentés démontrent que les gestes héroïques anciennes que le récit nacional se plaît à ressusciter et à enchainer proviennent d’un tout autre univers d’antagonismes (par exemple la lutte des chrétiens et des “infidèles”, des vassaux et des suzerains, des autochtones et des conquerants étrangers...), furent longtemps la propriété symbolique d’une collectivité autrement définie (une dynastie, une lignée aristocratique, un groupe professionel, une église, une cité...) ou, à la limite, ont été forgées de toutes pièces dans le mouvement moderne de la nationalisation de l’histoire (p. 6).

7É que verdadeiramente novos e característicos deste período não são os heróis mas sim os grandes homens (cf. Fernado Catroga, “Ritualizações da História”, História da História em Portugal, Séculos xix e xx, Lisboa, 1996). A gesta dos grandes homens não assume o mesmo dramatismo que a dos heróis, mas a sua biografia salientará sempre o sacrifício em prol da comunidade. A comunidade envolvida depende da circulação dos poderes na sociedade, mas também de condições materiais objectivas, como os meios de produção e circulação de ideias e imagens, a capacidade de consumo e compreensão dos mesmos. Por isso um herói, ou um grande homem, será tanto mais nacional quanto mais alfabetizados forem os cidadãos. E não será por acaso que os heróis nacionais se associarão à escola. Alguns dos estudos mais interessantes deste volume referemse às características da produção e difusão destas imagens ou à sua recepção.

8O primeiro estudo presente no livro deve-se a J. P. Albert e intitula-se “Les métamorphorses des héros nationaux”. Incide sobre o caso francês de uma forma geral, isto é, sem seguir o percurso, ou as características de nenhum herói ou período. Parte da constatação de que no pós-guerra os heróis nacionais franceses apareciam como heróis da resistência. J. P. Albert põe o problema dos contextos que determinam a selecção e favorecem o culto dos heróis de uma nação. Salienta que o panteão está em permanente redefinição e produz um esquema interpretativo que toma em linha de conta o campo de reconhecimento e o tipo de “grandeza” que caracteriza um herói. Conclui que os que promoveram uma causa nacional são mais facilmente utilizáveis como heróis do que os que se associam a outro tipo de causas, como a ciência, a caridade ou a procura do belo. O quadro em que tenta visualizar esta abordagem situa no espaço cada personagem com maior ou menor proximidade em relação a diversos tipos ideais em que o herói nacional ocupa uma posição central. Como o autor refere, uma personagem periférica pode sempre ser trazida para o centro devido à manipulação da sua gesta. Salienta que as situações de crise e de antagonismo favorecem a afirmação e a produção da identidade nacional, através da sua dramatização como culto dos heróis. Os heróis nacionais são muitas vezes heróis contra, que se levantaram em defesa da comunidade ameaçada pelo inimigo exterior. A sua acção dramática é tanto mais heróica quanto o seu estatuto é pequeno à partida. Aproxima o sacrifício heróico do martírio religioso e escreve que o herói promove, pelo seu sacrifício, uma pedagogia da solidariedade.

9Essa solidariedade seria geradora de comunidades imaginárias e em particular da solidariedade nacional. Neste caso, o herói seria promotor da homogeneidade e da similitude. Os heróis nacionais seriam necessariamente semelhantes. E no caso dos heróis antigos este factor seria substituído pela origem nacional.

10Sem negar o carácter explicativo desta visão do papel dos heróis na formação da nação, convém salientar a especificidade da constituição dos mitos nacionais em França. A unidade foi, no caso francês, um tema dramático que se traduziu em rebeliões e condenações à morte. O povo unitário mítico foi constituído através da violência revolucionária, pela amputação da divergência e do federalismo. A revolução não usou um passado mítico mas criou um presente mítico. Foi esse contexto dramático ou mesmo trágico, como o descreveu Lyn Hunt, que propiciou a emergência de heróis como Bara (Lyn Hunt, Class, Politics and Culture in the French Revolution). O caso francês é assim um caso extremo.

11J. P. Albert termina o seu estudo com uma citação de Luc de Heusch, segundo o qual a ciência política contemporânea deveria relevar da história religiosa comparada. A frase, mais que provocadora, parece-me propiciatória de alguma falta de rigor conceptual. Que o culto dos heróis tenha incorporado o modelo cultural do martírio e da hagiografia dos santos, que as biografias dos grandes homens tentem aproximá-los de heróis, que se possam heroicisar tipos sociais, parece-me evidente; mas, ao misturar realidades com contextos diferentes, perdemos em capacidade de compreensão.

12Parece-me por isso contestável que se assimile o culto do chefe ao culto do herói, ou que se inclua neste grupo as stars. Aliás o rigor está patente em muitos dos estudos publicados neste volume. D. Bryan põe esta objecção na página 34 do seu estudo, intitulado “En souvenir de Guillaume: les parades orangistes en Irlande du Nord”. Também o estudo de Danielle Demélas-Bohy sobre a heroicisação da história de Espanha, após a guerra civil, se aplica a distinguir entre o culto do herói e a imagem de Franco.

13Já a abordagem que é feita da figura de Salazar, no estudo de Moisés Martins e Luís Cunha, intitulado ”Salazar et Fátima entre politique et réligion”, parece bem menos interessante. Salazar não tem nenhum dos atributos de um herói. Tornou-se um chefe incontestado no meio de alguma violência mas a sua legitimidade alicerça-se na grande obra pacífica do Estado Novo. O discreto culto do chefe em que se apoiou, aproxima-o da figura do grande homem mas não assume qualquer dramatismo. Ao convocar o passado nacional e os seus heróis míticos, como apoios legitimadores, coloca-se em continuidade com o que o precede. As rupturas simbólicas não são assim tão fortes. A República conservou, como escudo nacional, o escudo de Afonso Henriques e as cinco chagas que nele simbolizam o aparecimento de Cristo. Há seguramente um triunfo religioso mas não devemos esquecer que o monumento ao marquês de Pombal foi construído em 1934. O ditador que sabe qual o verdadeiro sentido do progresso é um modelo também presente durante o Estado Novo.

14O culto do chefe é analisado por Berthold Unfried no estudo intitulado “Montée et déclin des héros”. Aqui Estaline não nos aparece como um herói mas mais como um deus cujos filhos semi-humanos são, seguindo o modelo clássico, heróis. Uma única dúvida parece pertinente. Unfried assimila heróis reais e heroicisação de grupos sociais, como os operários que ultrapassam as normas de produção. Creio que estes intervenientes – presentes também no ocidente – são novos e se aproximam mais das antigas alegorias do que da figura do herói. Correspondem a uma democratização do espaço público, em que a figura do soldado desconhecido teve, no ocidente, um grande papel. O reconhecimento da sua “honra” irá muitas vezes a par com a falta de recompensa material dos seus sacrifícios.

15Anne Eriksen, que estuda o papel das mulheres neste processo, salienta o papel pedagógico dos actos heróicos na formação da identidade individual. Assim, o papel das mulheres na sociedade estaria em tensão com a existência de uma predominância de heróis masculinos. A personificação da pátria em alegorias femininas seria uma forma de a superar. Quanto às heroínas, baseando-se em três exemplos concretos, mostra como a sua imagem foi sendo construída, ou reconstruída (a autora usa o termo purificada) de forma a adequar-se à tradicional divisão de papéis entre os sexos.

16Como conclusão poderia escrever que o conjunto dos estudos publicados neste volume é muito estimulante para um debate sobre o papel dos heróis na formação do nacionalismo. Acrescentaria talvez que, nalguns casos, se associam fenómenos que uma análise mais fina permite compreender de forma mais enriquecedora.