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Recensões

Robert Rowland. População, Família e Sociedade – Portugal, Séculos XIX-XX

Ana Isabel Afonso
p. 370-373
Referência(s):

Robert Rowland. População, Família e Sociedade – Portugal, Séculos XIX-XX. Oeiras, Celta, 1997.

Texto integral

1Nesta obra o autor reúne um conjunto de quatro ensaios (correspondentes aos quatro capítulos do livro) que sintetizam os aspectos fundamentais da sua investigação no domínio da demografia histórica e da história da família ao longo dos últimos 15 anos.

2O primeiro capítulo – "Alcance e limitações da história da família" – constitui uma abordagem genérica dos estudos centrados na temática familiar, privilegiando as principais questões levantadas por investigadores dos vários quadrantes das ciências sociais relativas à definição da família como objecto de estudo. Da antropologia é introduzida a distinção conceptual entre família, no sentido restrito de grupo doméstico co-residente, e household, traduzido pelo autor por "agregado doméstico ou casa, em alguns contextos" (ou simplesmente por "grupo doméstico", libertando-o da restrição da co-residência). Nos breves flashes que se sucedem, alinham-se ainda a sociologia, a demografia histórica e a história social da família, como diferentes campos disciplinares forçados a entrar num diálogo virtual, através do qual partilhariam um objecto cujo principal ponto de convergência seria o da sua difícil definição.

3No segundo capítulo – "Regime demográfico e sistema familiar" – o autor, na esteira de Wrigley ("Population History in the 1980s", Journal of Interdisciplinary History, XII/2, 1981: 207-226), um historiador inglês que chamara a atenção para a importância do contexto socio-económico na compreensão dos comportamentos demográficos, procura reflectir sobre a interacção do sistema familiar com o regime demográfico, enquadrando-a em diferentes tradições e abordagens, que se situam, grosso modo, no âmbito da demografia histórica e da história da família. De acordo com a própria caracterização do autor, "o sistema familiar é […] bem mais que a forma tipicamente assumida pela família ou pelo agregado doméstico numa região determinada, ou a trama de relações existente entre membros de uma determinada unidade familiar. Tem que ver com o conjunto (variável) de funções desempenhadas pela família numa determinada região ou grupo social" (p. 14). Sendo uma dessas primordiais funções a "de servir de enquadramento institucional para a reprodução biológica das populações", conclui que "a noção de sistema familiar se encontra, assim, estreitamente relacionada com a de regime demográfico", pelo que se propõe analisar a sua interacção no âmbito alargado do "passado europeu".

4É uma abordagem de grande fôlego – espacio-temporal – que naturalmente conduz o autor para um exame do percurso histórico da demografia. Desde os primeiros numeramentos até à proliferação de estudos empíricos baseados no desbravamento de listas nominativas de habitantes subsequentes às primeiras investigações do Grupo de Cambridge, lideradas por Peter Laslett (Family Life and Illicit Love in Earlier Generations: Essays in Historical Sociology, Cambridge University Press, 1977), um conjunto de fontes e autores são passados em revista, com o objectivo de evidenciar a influência que a evolução da demografia histórica tem exercido na própria conceptualização da relação entre os fenómenos demográficos e o seu contexto social.

5São também consideradas as implicações e limitações de uma geografia familiar europeia que a partir dos anos 80 começa a delinear-se, tendo como base a aplicação da tipologia de Laslett a diferentes regiões da Europa pré-industrial. Mesmo tendo em conta as diversas críticas que este projecto tem suscitado, Rowland acaba por concluir que, "apesar das restrições que lhe podem ser formuladas, quer em termos metodológicos, quer no plano da informação, a tipologia proposta por Laslett em 1983 continua a ser a mais completa formulada até à data, e constitui um útil ponto de partida para novas investigações" (p. 58).

6Contudo, de forma algo contraditória, o subcapítulo conclusivo deste segundo ensaio já não parece ser tão concordante. Efectivamente, diz Robert Rowland, "para que pudesse de facto ser considerado como ponto de partida para a elaboração de uma tipologia regional, o esquema de Laslett precisaria de ter sido elaborado com base em critérios que derivassem de características universais do fenómeno em questão, determinadas a partir de uma definição teórica do objecto "agregado doméstico" e das sua relações com a família, com o parentesco e com outras instituições sociais" (p. 61).

7Parece-me haver aqui um certo inconformismo conceptual que se traduz por uma insistente busca no sentido de atingir universais problematicamente atingíveis, quando em termos muito pragmáticos o que se trata é de encontrar soluções operatórias que permitam classificar e estudar unidades de análise cuja clara definição (mesmo não sendo universalmente aceite) já por si pode legitimar subsequentes comparações (desde que aquilo que se compare se enquadre na definição proposta).

8A este respeito Laslett parece-me bastante coerente. A acompanhar a sua tipologia está também a sua definição de grupo doméstico (Peter Laslett, "La Famille et le Ménage: Approches historiques", Annalles ECS, XXVII/4-5, 1972: 847-872) e, logicamente, considerando a polissemia associada a este termo, só aqueles que adiram à sua definição estarão a fazer um bom uso da sua tipologia.

9Para finalizar este capítulo, Robert Rowland retoma o cerne da questão que havia formulado inicialmente, isto é, o da importância da combinação do estudo dos regimes demográficos com o dos sistemas familiares. No entanto, ao remeter essa articulação para a necessidade de "um enquadramento conceptual mais amplo", acaba por resolver o problema das definições, "adiando-o" para um outro nível de abstracção – "o do estudo interdisciplinar da organização social da reprodução" –, como se de uma coerente articulação disciplinar resultasse uma adequada coerência na articulação dos objectos de estudo partilhados.

10No terceiro capítulo – "Padrões de Nupcialidade em Portugal na Segunda Metade do séc. XIX" – o autor toma como base os Recenseamentos Gerais da População de 1864, 1878, 1890 e 1900 e procura aplicar o método de Hajnal (John Hajnal, "Age at Marriage and Proportions Marrying", Population Studies, VII/2, 1953: 111-136) ao contexto português, introduzindo-lhe algumas correcções para que possa adaptar-se às idiossincrasias nacionais (particularmente no que diz respeito à emigração diferencial masculina, que ao não ser considerada poderia distorcer os dados calculados a partir da aplicação directa do modelo original). É uma abordagem que tem como objectivo ensaiar uma caracterização da nupcialidade da população portuguesa durante o período em causa, e que apresenta, a nível concelhio, "estimativas da idade média de acesso ao casamento, da intensidade do matrimónio e do celibato definitivo de homens e mulheres, bem como do saldo migratório masculino aos 50 anos, que é um indicador da emigração diferencial masculina" (p. 108).

11As correlações efectuadas entre estas variáveis permitiram esboçar configurações nitidamente regionalizadas – como as relativas à nupcialidade feminina, à intensidade do matrimónio dos homens e à emigração diferencial masculina – enquanto outras – como a idade média ao casamento dos homens e o celibato definitivo masculino – não apresentaram qualquer configuração regional, salvo em pequenos enclaves pontualmente localizados.

12A leitura das manchas concelhias, sobreposta à das manchas mais abrangentes, recortadas pelas tradicionais delimitações de província, permitiram considerar diferentes associações de variáveis subjacentes a um padrão comum de nupcialidade, o que levou o autor a concluir que o traço mais evidente e que permite caracterizar o País é o da grande diversidade de situações que a combinação de variáveis relativas à nupcialidade parecem traduzir. Por outras palavras, se à escala macro encontramos um modelo, por exemplo a norte do Tejo, onde a nupcialidade restrita seria dominante, já no que diz respeito aos mecanismos que lhe subjazem deparamos com um leque bastante variado de associações. Associações que são descritas neste capítulo a partir das informações contidas nos recenseamentos analisados e que o autor procura completar no quarto capítulo – "A Família Portuguesa em 1960. Forma e Contexto" –, combinando a análise da nupcialidade efectuada para o século XIX com a análise das estruturas familiares em meados do século XX.

13Este salto no tempo é ditado pela restrição das fontes existentes, uma vez que o censo de 1960 é o primeiro que inclui informações sobre a composição dos agregados domésticos.

14Assim, a partir das informações contidas nesta fonte, bem como no recenseamento agrícola do mesmo ano e nos anuários demográficos dos anos 1959-1962, foi constituída uma base de dados, desagregada ao nível concelhio, "destinada a permitir uma exploração estatística da co-variação no espaço das estruturas familiares e de variáveis relativas à estrutura socioeconómica e fundiária e aos comportamentos demográficos" (p. 124).

15Esta base de dados foi submetida a uma minuciosa análise quantitativa que permitiu configurar padrões "regionais" de fronteiras algo difusas – que ora tomam como região a província (Minho, Beira, Alentejo, Algarve, etc.); ora se alargam circunscrevendo "áreas regionais do Norte, Centro ou Sul" do País; ou delimitam espaços intermédios como o Noroeste ou o Norte Interior – o que torna a sua leitura, por vezes, difícil de acompanhar.

16Com base na análise estatística multivariada dos indicadores relativos à estrutura familiar portuguesa em 1960, e tendo em conta aquilo que se pode retirar das estatísticas existentes acerca do seu contexto socioeconómico, foi assim construído um modelo explicativo que "permitiu evidenciar determinados aspectos da configuração regional do sistema familiar português e que sublinhou o papel determinante de relações de produção baseadas no trabalho assalariado para a estruturação regional desse sistema familiar" (p. 183).

17Até que ponto os resultados desta análise – quantitativa e extensiva – podem servir de enquadramento a estudos mais localizados, seja do domínio da demografia histórica ou da antropologia social, neste último caso necessariamente mais intensivos e qualitativos, é a questão principal suscitada ao longo destes quatro ensaios.

18Questão que releva das complicações conceptuais e metodológicas inerentes à articulação de diferentes escalas de abordagem. Dito de outra forma, se por hipótese, na freguesia de Santa Maria Maior os dados resultantes de um estudo intensivo, demográfico ou antropológico não estão em conformidade com o "tom" regional que a enquadra, isso deve-se a uma situação de excepção ou a uma diluição do pormenor que a uma escala mais abrangente se produz?

19A solução estará, talvez, numa desejável revolução tecnológica que consiga associar um microscópio a uma grande angular… Ou na sobriedade científica de apenas se tentar reconstituir o puzzle do País quando um número considerável de peças estiverem consolidadas. De outro modo, parece-me que corremos o risco de nos entricheirarmos em bunkers metodológicos em vez de viabilizarmos o tão saudável diálogo interdisciplinar.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Ana Isabel Afonso, «Robert Rowland. População, Família e Sociedade – Portugal, Séculos XIX-XX»Etnográfica, vol. 2 (2) | 1998, 370-373.

Referência eletrónica

Ana Isabel Afonso, «Robert Rowland. População, Família e Sociedade – Portugal, Séculos XIX-XX»Etnográfica [Online], vol. 2 (2) | 1998, posto online no dia 14 agosto 2016, consultado o 08 novembro 2024. URL: http://journals.openedition.org/etnografica/4455; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.4455

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Autor

Ana Isabel Afonso

Departamento de Antropologia da FCSH (UNL)

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