Luis Cunha. A Nação nas Malhas da Sua Identidade: O Estado Novo e a Construção da Identidade Nacional
Luis Cunha. A Nação nas Malhas da Sua Identidade: O Estado Novo e a Construção da Identidade Nacional. Porto, Edições Afrontamento, 2001.
Texto integral
1Esta obra constitui a versão editorial das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica apresentadas por Luís Cunha à Universidade do Minho em 1994.
2Com um prefácio da autoria de Moisés de Lemos Martins, este estudo toma como mote o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal (1938), a Exposição do Mundo Português (1940) e a I Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934), a partir dos quais problematiza a construção e aplicação de um "conjunto de verdades" que se revelaram fulcrais na gestão da acção política do Estado Novo e na construção da imagem de nação.
3Centrando a sua análise quer nos processos de legitimação do discurso e da acção política, quer na construção do edifício simbólico do Estado Novo durante a década de trinta e início dos anos quarenta, décadas marcantes na consolidação do regime, o autor justifica a opção pelo estudo dos referidos eventos pelo seu carácter excepcional. O conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu (Bourdieu, O Poder Simbólico,1989) constitui o elemento teórico fulcral deste trabalho, a partir do qual Luís Cunha procura apreender a constituição e reprodução do poder durante o periodo histórico referido, centrando-se na interpretação dos discursos produzidos.
4No campo metodológico, e face à especificidade do objecto de estudo, o antropólogo refere que esta obra se afasta dos modelos mais canónicos da investigação antropológica, centrando o seu interesse na forma como numa determinada sociedade e num momento histórico específico são pensadas "as representações sociais que a configuram". Nas palavras do autor,
Ainda que de forma distinta da do etnólogo, que observa e chega a participar tanto nas vivências quotidianas como nos momentos excepcionais dos povos que estuda, também nós lidamos com fenómenos culturais, mesmo que deles apenas tenhamos acedido a um reflexo, exactamente aquele que se expressa no texto escrito que tais fenómenos motivaram" (p. 29).
5Estas considerações teórico-metodológicas permitem a Luís Cunha justificar a ausência de um corpus teórico e de uma metodologia especificamente antropológica face à diversidade de materiais que constituíram o terreno do antropólogo.
6A Nação nas Malhas da Sua Identidade é constituído por quatro capítulos, dos quais apresentarei os três últimos, uma vez que correspondem à análise do Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, da Exposição do Mundo Português e da I Exposição Colonial Portuguesa.
7"A Natureza do Português: A Persistência de uma Imagem e a Sua Efabulação" é o título do segundo capítulo desta obra. Partindo do artigo de Joaquim Pais de Brito (Brito, 1982, "O Estado Novo e a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal", Actas do colóquio realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em Março de 1980, Lisboa, Regra do Jogo, pp. 511-532), dos discursos de Oliveira Salazar e de obras editadas pelo SNI, o autor analisa o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, evidenciando as linhas de força que definem a "natureza do português", encontrando dois eixos que permitem a interpretação da "alma nacional": história e tradição.
8Enfatizando os traços ancestrais do povo português, marcados pela correspondência entre povo e ruralidade, o autor enfatiza as suas características etnogenealógicas (A. Smith, 1997, A Identidade Nacional, Lisboa, Gradiva), reforçadas pela análise dos textos de Teixeira de Pascoaes, de Cunha Leão e de Jorge Dias.
9Do conjunto de materiais trabalhados neste capítulo considero que a análise do autor sobre a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal teria saído mais enriquecida com a consulta directa das fontes, neste caso do jornal Diário da Manhã, ao invés de se ter cingido a documentos já sujeitos a uma selecção e interpretação efectuada por Joaquim Pais de Brito.
10No terceiro capítulo – "As Sinuosidades da Memória: Da Celebração do Passado à Projecção do Futuro" – Luís Cunha aborda a apropriação que o Estado Novo fez da história enquanto suporte fundamental para a produção e gestão de uma "verdade" celebrada na Exposição do Mundo Português – "o microcosmos da nação" (p. 93). Através da análise da intervenção política de Salazar (1934-1940) trabalhada nos seus discursos e nas entrevistas concedidas a António Ferro, aliada a um olhar estético da exposição, o antropólogo problematiza os diferentes níveis de significação, procurando aclarar a rede que o Estado Novo tece entre "nação e história, entre passado, presente e futuro" (p. 65), onde a manipulação da memória adquire especial relevância com a efabulação dos grandes feitos do passado. Contudo, o tratamento teórico da questão da "memória" revela uma ausência incontornável: a obra de Maurice Halbwachs intitulada La Mémoire Collective (1968).
11Neste capítulo, Luís Cunha enfatiza o carácter pedagógico da Exposição do Mundo Português, que reflecte uma imagem da nação sintetizada na expressão "aquilo que o país deveria ser". "Ao passado valoroso e à tradição juntam-se os projectos de futuro" (p. 93). Esta imagem de nação encenada em Belém contou, para além da presença da Secção Histórica e da Secção da Vida Popular, com a Secção Colonial, onde o visitante se confrontava com os povos colonizados e com o império colonial.
12Finalmente, no capítulo intitulado "O Sonho do Império: A Vocação Civilizadora de uma Nação Derramada pelo Mundo", talvez o mais forte deste livro, é-nos apresentada a dimensão colonial da nação através da I Exposição Colonial Portuguesa realizada no Porto, reflectindo o autor sobre a importância da tendência civilizadora e missionária de Portugal, bem como sobre a imagem do indígena e do exótico.
13Segundo Luís Cunha, as exposições coloniais surgiram como "mostruários das potencialidades coloniais" (p. 96), às quais não se encontrava alheia a sua dimensão económica. Contudo, mais uma vez encontramos a dimensão pedagógica deste evento: "Mostrar à metrópole a vastidão ultramarina é conferir-lhe uma verdadeira existência, uma materialidade que a 'mentalidade rural', como Armindo Monteiro [ministro das colónias] lhe chama, não pode dispensar" (p. 98).
14Neste capítulo, o autor trabalha, para além dos discursos produzidos pelo poder político, os discursos centrados na antropologia física, com Mendes Correia, António de Almeida e Santos Júnior. Este grupo foi pioneiro nas investigações em territórios coloniais portugueses, embora os seus interesses estivessem exclusivamente ligados à antropobiologia. De facto, como refere Rui Pereira (Pereira, 1986, "A Antropologia Aplicada na Política Colonial Portuguesa do Estado Novo", Revista Internacional de Estudos Africanos, 4-5, 191-235), o interesse antropológico pelas colónias portuguesas é tardio, tendo sido estimulado no final da década de 50, com o início do trabalho de Jorge Dias entre o grupo Maconde do norte de Moçambique.
15Este capítulo convida à reflexão sobre o paradoxo do facto de em Portugal, apesar da existência de um império colonial e da ausência da questão da autonomia nacional, não se ter desenvolvido uma antropologia de "construção da nação" (G. Stocking, 1982, Ethnos, 47, 172-186; cf. também João Leal, 2000, Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional, Lisboa, Publicações D. Quixote).
16Povo, história nacional e império colonial constituem as grandes temáticas desta obra, permitindo a problematização da identidade nacional no Estado Novo. Contudo, apesar de Luís Cunha afirmar na introdução à obra que a bibliografia entretanto produzida sobre o tema não alteraria "nada de essencial" ao seu trabalho e porque "[...] a bibliografia sendo significativa, não obriga, de todo em todo, à revisão substantiva do que se escreveu [...]" (p. 15), considero que teria sido muito profícuo para este estudo o diálogo com os trabalhos nacionais e internacionais entretanto publicados.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Sónia Vespeira de Almeida, «Luis Cunha. A Nação nas Malhas da Sua Identidade: O Estado Novo e a Construção da Identidade Nacional», Etnográfica, vol. 6 (2) | 2002, 403-405.
Referência eletrónica
Sónia Vespeira de Almeida, «Luis Cunha. A Nação nas Malhas da Sua Identidade: O Estado Novo e a Construção da Identidade Nacional», Etnográfica [Online], vol. 6 (2) | 2002, posto online no dia 18 setembro 2016, consultado o 17 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/etnografica/4603; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.4603
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