1O conceito de território vem ocupando um lugar central na pesquisa geográfica dos últimos anos, dado, sobretudo, pela redefinição do seu significado e da importância que apresenta para a explicação de determinados fenômenos, outrora explorados a partir de outras abordagens espaciais. Os territórios do crime, por exemplo, vêm ocupando espaço nas discussões geográficas nos últimos tempos, e alguns grupos de pesquisa têm se dedicado a tais debates. Como exemplo, o grupo Geografia do Crime e da Violência, da Associação Nacional de Pesquisa de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), que tem como membros Alexandre Magno Alves Diniz, professor Doutor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Alcindo José de Sá, da Universidade Federal do Pernambuco, Lucas de Melo Melgaço, da PUC-Campinas, Sueli Andruccioli Felix, da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP-Marília) e Wagner Batella, da UNESP-Presidente Prudente; o Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão Sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos (NEVI), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que conta com a participação de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, e tem a relevante participação do professor Cláudio Luiz Zanotelli, Doutor em Geografia; e, por fim, o Grupo de Pesquisa e de Gestão Urbana de Trabalho Organizado (GUTO), da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP-Marília), presidido pela professora Sueli Andruccioli Felix, graduada em Ciências Sociais e Doutora em Geografia. Tais grupos desenvolvem pesquisas, cujos temas abordam questões referentes à criminalidade, violência, segurança pública, exclusão social, dentre outros temas relacionados, com a participação de outras áreas do conhecimento, fator que enriquece as discussões e possibilita a transversalidade dos debates.
2Beato (1998) ressalta a importância do tratamento espacial do fenômeno da criminalidade violenta ao destacar que este se diferencia de abordagens psicológicas e sociológicas, por exemplo, ao deslocar a análise com base nos criminosos para as ocorrências dos delitos. Isso permite explorar o contexto no qual se deu o evento violento, possibilitando ao pesquisador identificar padrões no espaço e no tempo relacionados a determinados crimes. Zanotelli (2001), por sua vez, acrescenta que a geografia detém ferramentas conceituais capazes de analisar a relação entre o espaço e o crime, o espaço e a violência, fatores que destacam a relevância dessa ciência no que se refere ao estudo da criminalidade violenta.
3Saquet (2007), ao tecer uma discussão sobre a História do Pensamento Geográfico, em especial sobre o conceito de território, ressalta que
No período compreendido entre 1870 e 1960, no qual predominam as geografias positivista e neopositivista (empírica e lógica), normalmente identificado como geografia tradicional (...) privilegiam-se os conceitos de paisagem e região (natural ou geográfica), em detrimento de outros, como o de território. O conceito de espaço aparece com destaque na geografia somente nos anos 1950, quando o de paisagem é deixado de lado e o conceito de região é reduzido ao resultado da classificação de áreas de acordo com procedimentos de agrupamento e divisão lógica (SAQUET, 2007, p. 34, destaque do autor).
4Corrêa (2009, p.20) argumenta que « Lugar e território não são conceitos significativos na geografia teorético-quantitativa ». A partir da década de 1980 entra em crise a concepção de região, compreendida como área contínua, com características específicas, estável e homogênea. De acordo com Saquet (2007, p. 35), isso se deu em decorrência das inovações efetivadas nos meios de circulação e informação, bem como « [...] das distintas ações de sujeitos em espaços diferentes e de redes extralocais que integram cada vez mais em escala planetária. » As mudanças verificadas no campo científico possibilitaram a revalorização do conceito de território. Assim, o nível local e regional passa a ser visto essencialmente como um nó de redes, e:
Os novos campos de externalidade não têm mais formas areais compactas, nem um raio limitado, mas se configuram como redes, articuladas em centros e sistemas urbanos pequenos e grandes, sobre extensões territoriais tendencialmente nacionais e internacionais (DEMATTEIS, 1995, p. 90 apud SAQUET, 2007, p. 35).
5Saquet (2007) argumenta que para compreender essa nova dinâmica foi necessário substituir a ideia de espaço homogêneo e a de posição geográfica para a de posição relacional. Com isso,
Aquela compreensão matemático-estatística, proeminentemente dedutiva e de soma de componentes naturais e humanos é limitada para explicar os novos processos e arranjos socioespaciais, cada vez mais complexos. Articulam-se condições (i)imateriais na revisão e reelaboração do pensamento geográfico e na retomada do conceito de território com novos significados em novas abordagens e concepções (SAQUET, 2007, p. 35, destaque do autor).
6Nesse sentido, Dematteis (2007) declara que essas mudanças verificadas no mundo permitiram redefinir o objeto e o papel da geografia em relação aos problemas atuais decorrentes da evolução da sociedade humana, ressaltando que
[...] se a geografia como saber científico tem mais de dois mil anos, é porque quem a praticou durante esse longo período, soube dar as respostas pertinentes aos problemas característicos de cada período histórico, adaptando à realidade o aparato conceitual e metodológico da disciplina (DEMATTEIS, 2007, p. 7).
7A pesquisa geográfica adotou, em diferentes momentos históricos, conceitos que à época, possibilitaram explicar diversas questões elencadas pela referida área científica. Todavia, com as transformações verificadas no mundo moderno houve a necessidade de ampliar o discurso geográfico até então desenvolvido, com vistas a atingir a complexidade dos objetos que se colocam como desafios para serem explicados e compreendidos. Neste sentido,
[...] o conceito de território – juntamente com seus derivados, a territorialidade, a territorialização e outros – permite repropor, hoje, em termos sociais e políticos, um discurso geográfico quem em épocas precedentes, assumiu outras formas e se expressou com outros conceitos. Podemos, também, afirmar que, raciocinando como geógrafos sobre o conceito de território, podemos entender melhor muitos problemas que a geografia teve como ciência. De fato, as concepções territorialistas da geografia mais recente, absorvem e reelaboram as diferentes concepções da geografia do passado: como ciência da diferenciação do espaço terrestre, ciência das relações multiescalares entre o ambiente físico e a sociedade humana, ciência da paisagem e assim por diante (DEMATTEIS, 2007, p. 7).
8Observa-se, portanto, que todo conceito adquire novas especificidades com o passar do tempo, adaptando-se à época e às necessidades que o mundo tende a revelar. Sobre isso, Saquet (2007) argumenta que
Todo conceito tem uma história, seus elementos e metamorfoses; tem interações entre seus componentes e com outros conceitos; tem um caráter processual e relacional num único movimento do pensamento, com superações; as mudanças significam, ao mesmo tempo, continuidades, ou seja, descontinuidades (descontinuidade-continuidade-descontinuidade, num único movimento); o novo contém, pois, o velho e este, aquele (SAQUET, 2007, p. 13, destaque do autor).
9Saquet (2007) também ressalta que as relações de poder vêm sendo efetivadas historicamente, consoante as características de cada sociedade, e envolvem relações imateriais de caráter geopolítico, econômico e cultural. Não é, pois, uma instituição, mas o nome dado a uma situação complexa da vida em sociedade. Ou seja,
[...] o poder significa, nessa perspectiva, relações conflituosas e heterogêneas, vari áveis, intencionalidade; relações de forças que extrapolam a atuação do Estado e envolvem e estão envolvidas em outros processos da vida cotidiana, como a família, as universidades, a igreja, o lugar de trabalho etc. O desvendamento das relações de poder e da ideologia se faz fundamental porque, nesta, age-se na orientação e constituição do eu, do indivíduo, integrando-o à dinâmica socioespacial através das mais distintas atividades da vida cotidiana (SAQUET, 2007, p. 32).
10Ideologia e poder andam juntos. De acordo com Saquet (2007, p. 33), a ideologia « [...] molda comportamentos e atitudes, condiciona normas e regras e vice-versa » para o poder dominar. Ambos são inerentes às relações sociais, que por sua vez substantivam o campo de poder, que conforme o referido autor, estão presentes nas ações do Estado, instituições e empresas, ou seja, em relações sociais efetivadas na vida cotidiana, com vistas ao controle e à dominação sobre homens e coisas.
11Souza (2001, p. 78) ressalta que « O território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder » e « As relações de poder são um componente indispensável na efetivação de um território ». Portanto, o que está em questão na conformação de um território, é « [...] quem domina ou influencia e como domina ou influencia esse espaço ». Nesse sentido, o autor destaca que o processo de formação do território envolve « [...] o exercício de relações de poder e a projeção dessas relações no espaço (espaço que, simultaneamente, também é, enquanto substrato material e ‘lugar’, uma referência e um condicionador das práticas de poder) ». (SOUZA, 2009, p. 60). Em outras palavras, o referido autor esclarece que território não é sinônimo de substrato material:
Se a fonte de poder que coordenou a modelagem material de uma porção da superfície da Terra (transformação da natureza, retrabalhamentos do ambiente construído...) for destruída ou sucumbir, o substrato material, caso não tenha sido totalmente arrasado no transcurso de uma guerra, ainda estará presente, como testemunho das realizações de um povo, de um grupo social; mas o território, enquanto tal, pode vir a ser subdividido, repartido, pulverizado entre facções rivais. Em alguns casos, como o de Cartago depois da última Guerra Púnica, ambos, ambiente construído e território, podem ser varridos do mapa. (SOUZA, 2009, p. 66).
12Existem diferentes escalas de território, e embora o conceito, sobretudo político, que prevalece seja aquele que define os Estados-Nação, caracterizados por espaços cujas fronteiras são estáveis, ele pode apresentar flexibilidade e, portanto,
[...] formar-se e dissolver-se, constituir-se e dissipar-se de modo relativamente rápido (ao invés de uma escala temporal de séculos ou décadas, podem ser simplesmente anos ou mesmo meses, semanas ou dias), ser antes instáveis que estáveis ou, mesmo, ter existência regular, mas apenas periódica, ou seja, em alguns momentos – e isto apesar de que o substrato espacial permanece ou pode permanecer o mesmo (SOUZA, 2001, p. 87).
13Os territórios são, portanto, constituídos por territorialidades. Estas, segundo Souza (2001), estabelecem-se a partir de
[...] relações de poder espacialmente delimitadas e operando sobre um substrato referencial [...], é um certo tipo de interação entre homem e espaço, a qual é, aliás, sempre uma interação entre seres humanos mediatizada pelo espaço (SOUZA, 2001, p. 99, destaque do autor).
14De igual modo, Sack (1986, p. 2) argumenta que a territorialidade relaciona-se ao modo « [...] como as pessoas usam a terra, como organizam o espaço e como dão significados ao lugar », sendo uma expressão geográfica do poder social. Devido ao seu caráter processual, Sack (1986) declara que o território é dinâmico, e os seus limites podem ser modificados conforme as estratégias de controle e delimitação do espaço. Conforme Saquet (2007), a definição dada pelo referido autor para a territorialidade está diretamente relacionada a estratégias de influência e controle de recursos, fenômenos, relações e pessoas. Assim, nesse processo « Há motivações geográficas e sociais, e o controle depende de quem está influenciando quem, da delimitação e do contexto do lugar, espaço e tempo ». (SAQUET, 2007, p. 83, destaque do autor). A territorialidade é, nesse sentido,
[...] um componente do poder não significa somente criação e manutenção da ordem, mas é um esquema para criar e manter o contexto geográfico através do qual experimentamos o mundo e lhe damos significados (SAQUET, 2007, p. 84, destaque do autor).
15A fala supracitada de Saquet (2007) torna-se clara quando se transporta sua ideia para a análise temática da criminalidade violenta, em especial do tráfico de drogas, sobretudo no que se refere ao controle e delimitação do espaço realizada pelos traficantes, com vistas à manutenção da prática criminosa. Souza (2001, p. 91), por sua vez, fala de territórios estabelecidos pelo tráfico de drogas, que se encontram « [...] disseminados pelo tecido urbano, com territórios amigos (pertencentes à mesma organização ou ao mesmo comando », que no caso do Rio de Janeiro, são representados pelo Comando Vermelho, Terceiro Comando, Comando Caipira e bandos independentes, dispersos, constituindo-se em « áreas neutras » (Figura 1). Em entrevista realizada por Souza (2001) com uma liderança da Favela Morro do Céu, na Zona Norte do município do Rio de Janeiro, as « áreas neutras » seriam
[...] aquelas que, não sendo diretamente territorializadas por nenhuma organização de traficantes – os quais se encarregam de garantir uma certa ordem interna ao território pelo bem dos negócios (por exemplo), punindo exemplarmente crimes comuns como estupros e furtos) -, se apresentam como locais particularmente inseguros, desprotegidos, expostos (SOUZA, 2001, p. 92).
FIGURA 1 - Territorialidade em rede: Parte da área de obsolescência de uma cidade em dois momentos distintos.1850 a 1900
Nota: Trottoir – do Francês, calçada (de uma rua). (Dicionário Larousse).
Fonte: Souza (2001, p. 95).
16Souza (2001) comenta que entre os espaços territorializados por uma organização criminosa há territórios inimigos pertencentes a outro comando. Neste sentido, observa-se que
A territorialidade de cada facção ou organização do tráfico de drogas é, assim, uma rede complexa, unindo nós irmanados pelo pertencimento a um mesmo comando, sendo que, no espaço concreto, esses nós de uma rede se intercalam com nós de outras redes, todas elas superpostas ao mesmo espaço e disputando a mesma área de influência econômica (mercado consumidor), formando uma malha significativamente complexa. Cada uma das redes representará, durante todo o tempo em que existirem essas superposições, o que se poderia chamar uma territorialidade de baixa definição. Uma alta definição só será alcançada se uma das organizações lograr eliminar as rivais dentro da área de influência, monopolizando a oferta de tóxicos, ou se as organizações chegarem a um acordo, estabelecendo um pacto territorial (SOUZA, 2001, p. 92, destaque do autor).
17O autor supracitado ressalta que a constituição de redes de organizações criminosas como as do Rio de Janeiro
[...] remete à necessidade de se construir uma ponte conceitual entre o território em sentido usual (que pressupõe contiguidade espacial) e a rede (onde não há contiguidade espacial: o que há é, em termos abstratos e para efeito de representação gráfica, um conjunto de pontos – nós - conectados entre si por segmentos – arcos – que correspondem aos fluxos que interligam, « costuram » os nós – fluxos de bens, pessoas ou informações -, sendo que os arcos podem ainda indicar elementos infraestruturais presentes no substrato espacial (SOUZA, 2001, p. 93).
18A esse território em rede ou território-rede, o referido autor designa de território descontínuo, que é, na realidade « [...] uma rede a articular dois ou mais territórios contínuos » (SOUZA, 2001, p. 94). Estes territórios-rede são formados, sobretudo pela imposição da « lei », que no sentido amplo da palavra grega nómos, significa lei, norma e costume, imposto de cima para baixo e/ou de fora para dentro (SOUZA, 2009). Todavia, estes territórios geralmente não são mantidos apenas por meio do poder heterônomo, apoiado exclusivamente na coerção, mas apresentam, de forma ponderada, níveis de consentimento com vistas à propalação do domínio exercido sobre determinado espaço. Sobre isso, Arendt (1985) declara que quando o poder é deslegitimado, ou seja, quando o consentimento fica comprometido, apela-se para o uso da força bruta com o objetivo de manter a dominação.
19Por outro lado, quando um grupo influencia outro a atuar conforme as regras estabelecidas, tem-se o que pode ser chamado de « poder compartilhado », em que todos os participantes possuem a capacidade de determinar a nómos. Nesse sentido, Souza (2009, p. 69) afirma que
Em tais circunstâncias, indivíduos e grupos são influenciados uns pelos outros, na base da persuasão, mas não dominam uns aos outros sob a cobertura de estruturas assimétricas. Cada um dos participantes, uma vez tendo possuído uma chance aproximadamente igual de modelar o processo (o que pressupõe que as condições materiais e o acesso a informações não sejam díspares a ponto de criar uma clivagem nítida entre indivíduos e grupos no que tange à referida chance), se verá obrigado, moralmente, a respeitar as regras de cuja construção ele participou livremente, mesmo que suas posições não tenham sido vitoriosas. Cada um dos participantes, por conseguinte, está submetido a um poder – o poder que emana, legitimamente, da coletividade.
20O tráfico de drogas é uma prática criminosa revestida de poder, constituindo-se num indutor de outros processos que geram a criminalidade violenta. As cidades são grandes centros consumidores, que possuem uma estrutura logística favorável ao mercado do tráfico, estabelecendo, como destaca Francisco Filho (2004), uma rede de fornecimento altamente organizada, no qual o fluxo do produto vai do produtor ao consumidor, obedecendo aos mesmos princípios que regem a circulação de um produto de alta demanda. Neste caso, a ausência do Estado é preenchida por uma
[...] estrutura de dominação que visa o comércio através de regras próprias, fazendo uso da força e da intimidação com o objetivo de garantir o território e, portanto, a perpetuação do processo produtivo em que o tráfico está inserido. (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 29, destaque do autor).
21A criminalidade violenta não possui um espaço próprio dentro da estrutura urbana, mas desenvolve-se em todos os seus estratos como uma forma humana de resolver os conflitos entre indivíduos e grupos. Assim, como declara Francisco Filho (2004, p. 32), « Os indivíduos lutam para manter seu território e sua posição de bem-estar, os grupos lutam para manter seu status quo, seu território e garantir sua sobrevivência ». Afirma-se, portanto, que a violência se expressa territorialmente de duas formas: em ações isoladas, não articuladas e destituídas de disputa territorial e em ações organizadas, cujo território exerce um papel essencial tanto como substrato para a ação criminosa, quanto como um local seguro, longe da ação da lei.
22Francisco Filho (2004) comenta que nessa última modalidade de violência, os indivíduos envolvidos com o crime se organizam em uma estrutura funcional, caracterizados por uma hierarquia bem estabelecida e com normas próprias de conduta, que tanto servem para o benefício quanto para a punição de quem está envolvido. Além disso, dentro do território urbano, essa organização tende a ocupar espaços que possam garantir sua ação. Assim,
Estabelece-se uma rede em que cada agente possui uma função definida dentro da estrutura criminosa. No tráfico, por exemplo, a venda de drogas está organizada em uma rede que vai dos grandes traficantes internacionais, responsáveis pelo abastecimento no atacado de grandes regiões, aos aviões, que distribuem a droga a varejo (FRANCISCO FILHO, 2004, p. 33).
23O tráfico de drogas também funciona como um mecanismo de segregação dos indivíduos diretamente envolvidos com ele, pois na divisão de trabalho estabelecida dentro desse tipo de organização, existem os mentores da ação criminosa, os que apoiam a sua execução e os que colocam em prática as estratégias estabelecidas para manter o tráfico. E cada uma dessas ações apresenta remuneração diferenciada. A esse respeito, Souza (2000, p. 57) declara:
As quadrilhas que operam no varejo no Rio de Janeiro, comumente apoiadas logisticamente em espaços segregados tais como as favelas, apresentam uma hierarquia e uma divisão do trabalho típicas, envolvendo diversos atores sociais. O chefe local é « dono », o qual controla diversos pontos de venda de tóxicos (« bocas-de-fumo »). Uma vez que os donos cada vez menos moram em favelas e sim no « asfalto » (ainda que tenham origem favelada), quem responde pelo negócio em um dado local é o « gerente », o qual realiza uma contabilidade, supervisiona o pessoal da segurança e realiza diversos contatos em nome do « dono ». Além do « dono » e de seus « gerentes » há os « soldados », que são aqueles indivíduos que, fortemente armados, garantem a segurança do negócio, impondo a « ordem » na favela e defendendo os pontos de venda de um « dono » contra tentativas de captura realizadas por outras quadrilhas. Há, também, os « olheiros », que são aqueles que avisam sobre a proximidade da polícia ou de « alemães » (estranhos, inimigos), e os « aviões » e « aviõezinhos », que entregam drogas aos clientes, os quais muitas vezes aguardam na entrada da favela dentro de seus carros. Há, finalmente, as pessoas que trabalham na embalagem da droga a ser comercializada.
24Dessa prática criminosa advêm outras ações violentas estabelecidas para manter os territórios do tráfico e a dinâmica dos negócios. Daí surgem as guerras do tráfico, perpetradas entre quadrilhas e os assassinatos de indivíduos que não cumprem a lei que rege tais espaços e negócios. Geralmente, nas grandes cidades brasileiras, as favelas são os territórios por excelência do tráfico de drogas, sobretudo pela morfologia que facilita a fuga e permite os esconderijos. São, portanto, locais estigmatizados por uma elevada parcela da sociedade. Já em outras cidades, são os bairros periféricos, cujos moradores apresentam uma renda menos elevada, onde os traficantes atuam preferencialmente. Neste caso, não se beneficiam da mesma estrutura apresentada pela favela, caracterizada por « becos » e emaranhados de moradias justapostas. Em tais locais, o gerenciamento do tráfico se estabelece de outra forma: em muitos casos, os pontos de preparo e comercialização são flutuantes, técnica utilizada para não levantar a suspeita dos policiais. Caracterizam-se, portanto, como territórios cíclicos e móveis, apesar de se constituírem em redes que se desfazem rapidamente, conforme a necessidade.
25São muitos os estudos geográficos voltados para análise dos territórios do crime. Um deles, desenvolvido por Zanotelli (2001) para a cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, identificou que essa cidade possui um tráfico de drogas intenso. E um dos fatores que contribui para o seu desenvolvimento está vinculado à presença de diversos postos marítimos por onde transitam um volume importante de carga e onde o tráfego de navios é muito acentuado. Como consequência disso, o Estado do Espírito Santo tornou-se um lugar privilegiado de passagem de drogas e de tráficos diversos. Ele diz, ainda, que não existe uma fiscalização sistemática pela Polícia Marítima e Federal nos espaços costeiros, contribuindo, dessa forma, para a propagação desse tipo de crime no estado.
26O referido autor constatou, ainda, que a aglomeração de Vitória, composta por cinco municípios, naquela época, era considerada a mais violenta do Brasil, em se tratando dos homicídios proporcionais à população. Em 1997, a região metropolitana de Vitória foi considerada a mais violenta do país, com 84 homicídios por 100 mil habitantes. Dados sobre o sexo e a faixa etária acometida confirmam a tendência nacional para vítimas do sexo masculino, com idades entre 20 e 29 anos. Em 1998, 70% das vítimas eram do sexo masculino e a maioria das vítimas residia em bairros periféricos.
27A relação entre tráfico de drogas e homicídios é um fator recorrente em diversos estudos, tendo, inclusive, esse destaque para as vítimas do sexo masculino. Um estudo desenvolvido por Carvalho (2011) para a cidade de Londrina-PR teve essa constatação, já verificada para outros levantamentos desenvolvidos no Brasil. Sobre essa relação, a referida autora declara que
O aumento crescente do número de mortes entre jovens do sexo masculino é uma variável que geralmente traduz a forma mais extrema da violência. A inserção da cidade na rede de atividades ilícitas, em especial o tráfico de drogas, é uma referência importante no estudo da violência urbana, em especial da criminalidade urbana. As relações de poder e políticas devem ser levadas em conta para a compreensão desses fenômenos. (CARVALHO, 2011, p. 31).
28Citando uma reportagem de jornal local, Carvalho (2011) comenta que a formação de gangues e os confrontos resultam, em sua maioria, da disputa de território nos bairros, e que a mobilidade dos jovens no território urbano potencializa a ampliação da esfera da violência tanto no espaço quanto no tempo. Além disso, a autora ressalta que os grupos estruturados nos setores da cidade se vingam sucessivamente, como é o caso de gangues rivais dos bairros Jardim Nossa Senhora da Paz, Rua Pantanal e Jardim Leste-Oeste, todos localizados na Zona Oeste, onde já se comprovou tráfico de drogas por apreensões e situações de conflito desencadeadas pelo controle do território.
29Percebe-se, portanto, que o tráfico de drogas é uma prática criminosa que provoca outros crimes violentos como forma de manutenção da modalidade de crime. Isso faz com que essa categoria de crime se torne uma prática difícil de ser combatida e/ou controlada pelas instituições de segurança pública. Juntamente com esse fator, destaca-se o controle e coação que o tráfico de drogas estabelece sobre a população territorializada, o que impede, inclusive, as denúncias por parte dos moradores. Sobre isso, Santos (2013) apresenta em sua tese uma série de comentários pertinentes.
30A referida tese de doutorado realizada na cidade de Uberlândia-MG e orientada por Julio Cesar de Lima Ramires na linha de pesquisa « Geografia da Saúde » no Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, constatou que, em 2010, os criminosos de um território urbano da referida cidade, dominado pelo tráfico de drogas, o bairro Morumbi, perpetraram atos criminosos em protesto à ação de combate ao tráfico realizado no local pela Polícia Militar, que cumpriu 21 mandatos de busca e apreensão em diversas casas e estabelecimentos comerciais (BARBOSA; TIAGO, 2010). Na ação da polícia no local, foi realizada a prisão de pessoas envolvidas com o tráfico, a apreensão de drogas, armas, munições e produtos de roubo, além de valores em dinheiro. Esse conflito no bairro Morumbi iniciou-se depois de desavenças entre grupos de traficantes que buscaram o controle do tráfico de drogas no Setor Leste da cidade, e que incidiu na morte de dois traficantes de ambas as facções. Os demais integrantes do grupo impuseram o luto de um dos membros da organização criminosa, morto no bairro, e, por meio de intimidações, obrigaram os proprietários de estabelecimentos comerciais a fecharem as portas, e impediram a realização da feira-livre, que acontece todas as quartas-feiras no local.
31A pesquisa de Santos (2013) ressalta que o discurso dos moradores demonstra o poder que esses criminosos possuem, além do medo que eles têm de se tornarem vítimas da criminalidade violenta presente no bairro. As falas apresentadas a seguir foram extraídas da reportagem de Barbosa e Thiago (2010), e refletem o pavor dos moradores frente aos acontecimentos presenciados: « Na verdade, esses garotos estão cumprindo ordens dos cabeças que mandam no bairro. Temos que cumprir o que eles mandam, pois, se não obedecermos, o que era ameaça vira verdade ». (Comerciante). De igual modo, observa-se o temor na fala que se segue: « Aqui todos são cegos e mudos. Se você abre a boca, no outro dia amanhece morto. Por isso, cada um cuida da sua vida e segue como se não tivesse vendo ou ouvindo nada ». (Morador).
32Os moradores são intimidados e orientados a permanecerem calados, pois sabem que sofrerão retaliações por parte dos traficantes, caso a « lei do silêncio » seja quebrada, pois conforme destaca Santos (2013), os moradores já presenciaram esse fato, quando o presidente da Associação de Moradores do bairro foi assassinado por ter dado uma entrevista a uma rede de televisão da cidade falando sobre as mortes ocorridas no local (CALIL, 2009). Diante disso, constata-se que
O tráfico de drogas gera a violência para defender seu negócio, no varejo e no atacado. Arma seus exércitos. Mata-se pela disputa de pontos de venda no varejo. A corrupção se amplia para permitir o negócio e a cooptação torna-se maior (FERREIRA; PENNA, 2005, p.165).
33Entender como o tráfico de drogas se estabelece no espaço urbano permite compreender, também, o seu funcionamento. Tais elementos são o pré-requisito para se elaborar estratégias de intervenção sobre as áreas onde a sua incidência é mais acentuada. Sobre isso, Santos (2013) destaca que em diversos locais da cidade de Uberlândia, os traficantes utilizam determinadas estratégias, como o estabelecimento de « comércios de fachada » ou de outras atividades que denotem, exteriormente, a realização de uma prática legal, quando, por traz disso, estrutura-se o tráfico de drogas, por meio da apropriação de um espaço legalmente organizado. É importante considerar, ainda, quando da elaboração e execução de ações de combate ao tráfico, que os limites dos territórios de ação dos criminosos são flexíveis, e, portanto, dinâmicos. Neste caso, essas estratégias devem, igualmente, ser compatíveis com o modo pelo qual o tráfico se estrutura e se manifesta na cidade. Além disso, não se deve descartar o fato de que os territórios do crime estabelecidos no espaço urbano criam condições para que essa prática ilícita se mantenha e se fortaleça no local onde se encontra estabelecida.
34As relações de poder que se estabelecem na prática do tráfico de drogas conduzem ao estabelecimento de microterritórios no espaço urbano. As práticas que envolvem esse fenômeno, por vezes violento e complexo, cria uma rede de outras ações violentas, tais como os homicídios, que atingem sobretudo adolescentes e jovens do sexo masculino.
35Os territórios do crime, estabelecidos a partir do tráfico de drogas, apresentam uma complexidade tal que dificulta a atuação das instituições de segurança pública, com vista à manutenção da ordem e à minimização dos atos violentos decorrentes de sua atuação. Esses territórios, constituídos sobretudo no espaço urbano dos municípios, estabelecem-se a partir da interligação de elementos cuja natureza é similar, embora o seu enraizamento em um dado local seja mais intenso do que em outro, devido a fatores que permitem a prevalência da prática criminal. Daí a importância do planejamento de ações inter-setoriais, baseadas não apenas no assistencialismo ou no pragmatismo de intervenções pontuais.
36Qualquer atuação pública, privada ou estabelecida a partir de organizações não governamentais ou de movimentos sociais deve reconhecer que a criminalidade violenta não se combate, controla ou previne interferindo-se apenas sobre a minimização das situações que favorecem a sua ocorrência. Identificá-las é importante para se fundamentar intervenções que venham a diminuir a vitimização no local; todavia, elas são apenas a manifestação do problema, cujas causas são constituídas de um emaranhado de outras questões estruturais. É justamente sobre estas que se devem planejar ações por meio de políticas sociais, de saúde e de segurança pública com vistas à prevenção das ocorrências em outros espaços que ainda não se constituíram em áreas de risco à violência ou não se estabeleceram como territórios dominados pela criminalidade violenta.