« O mais difícil, mesmo, é a arte de desler »
(Mário Quintana)
1Antes de tudo, ao ensino há que corresponder uma aprendizagem. Então, o foco dessa reflexão é ocuparmo-nos das possibilidades em que o(s) exercício (s) das distintas leituras contribuam para a aprendizagem e promovam a compreensão da geografia do mundo.
2Por que esse tema se justifica?
3No exercício de ensinar Geografia e educar espacialmente crianças, jovens e adultos é importante dar atenção e lugar às múltiplas linguagens e distintas leituras que o mundo permite, que a sociedade criou e requisita de nós.
4Para isso, cremos, é preciso em primeiro lugar atitude: de estranhamento e curiosidade, de abdicar do lugar-comum, seja no « chão da escola » básica, seja na Universidade e seus institutos, departamentos e laboratórios. Ser leitor! (Lajolo, 1994). Escapar ao espontaneísmo, que é licencioso (Freire, 1993, p. 25). É opção política.
5Em seguida, um conjunto de aspectos conceituais e práticos deveriam ser enfrentados, esclarecidos e colocados em movimento. Eis o que pensamos, inspirados na prática docente e em alguns estudos e conversas:
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compreender e assumir uma concepção do que seja leitura;
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indagar-se sobre a possibilidade de uma leitura da espacialidade do mundo e da vida;
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pensar/estabelecer um pensamento sobre a finalidade da leitura;
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fazer opção do que se faz necessário ler para interpretar e compreender o mundo;
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conhecer as possibilidades e desafios da própria escola, dos alunos e não se satisfazer com a leitura, tornar-se também um produtor junto com os educandos.
6O ato de ler é mais do que o mecânico ato de decifrar códigos, ele preexiste à leitura da palavra e à leitura escolar. Lemos desde nossos primeiros contatos com o mundo. No entanto, o ato de ler não é natural, ele depende da articulação entre as condições subjetivas e objetivas em relação aos indivíduos – isto exige compreender as barreiras com as quais nos deparamos quanto ao exercício da leitura, sejam de ordem pessoal ou coletiva (Martins, 1991).
7« Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive » (Lajolo, 1994, p. 7). Aprendemos várias leituras no mundo das coisas para além da escola, na espiral das idéias e da vida! Nisso tudo é difícil precisar a fronteira entre a leitura do mundo e o mundo da leitura, entrelaçados que estão na vida real. Então, por que a escola, a academia, nos fraciona tanto?
8Uma definição de leitura que nos contempla é considerá-la « como um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas, não importando por meio de que linguagem » (Martins, 1991, p. 30). A idéia de compreensão supera a mera decodificação da escrita formal, além disso nos oferece a riqueza das múltiplas linguagens, nem sempre dominadas ou conhecidas por nós, nem promovidas no ensino escolar.
9« Linguagem e realidade se prendem mutuamente » (Freire, 1993, p. 11). O contexto do texto (paisagem/fenômeno) proposto encontra-se inevitavelmente articulado à leitura feita e refeita. É importante que a leitura da palavra não signifique uma ruptura com a « leitura » do mundo (Freire, 1993, p. 15). Então, os conteúdos geográficos não podem arrancar o educando do seu mundo, mas ao contrário deveriam revelá-lo tornando-o acessível. Não a revelação como visão metafísica, mas uma descoberta da geografia do mundo por meio da observação curiosa, do estudo efetivo, da compreensão dos agentes produtores do espaço e das relações entre eles estabelecidas.
10Uma compreensão mais ampla da leitura pressupõe transformações na visão de mundo e da cultura(abrindo questionamentos diversos). Isto significa que mesmo nós, educadores, enfrentamos limitações inevitáveis para uma atitude de ruptura com a nossa prática, naquilo que ela possui de herança cultural, escolar, ideológica e teórica. É impensável que nos seja possível escapar por inteiro, prescindir da formação que tivemos. Isto quer dizer que nossa capacidade de romper, de transformar, em algum momento estanca, refreia-se. Tal reconhecimento parece-nos salutar para evitarmos o imobilismo, para acolher a novidade no lugar do conformismo.
11Na compreensão de leitura que temos, sim. Pelo já exposto, concordamos que a « mensagem » inscrita no espaço, seja ela histórica, estética, econômica – em formas fluxos e fixos –, não está naturalmente dada. Portanto, pede um trabalho de desvendamento próprio da Geografia, mas que a transcende enquanto disciplina escolar.
12É uma idéia que nos persegue (aos educadores geógrafos) desde muito.
13O professor Geraldo Sampaio, em um texto de 1967 intitulado « A leitura no processo da aprendizagem da geografia », nos oferece os primeiros elementos. Em que pese nossa discordância com algumas idéias e resguardadas as limitações de seu tempo, tiramos dali algumas lições: a necessidade do interesse do professor (p. 118),o bom uso do livro didático, a leitura de mapas, de gráficos e tabelas, de gravuras, de fotos e esquemas. Estas práticas e estes recursos, entre outras coisas, compõem o conjunto de atitudes e instrumentos que podem viabilizar a ação pedagógica efetiva e os passos dos educandos para o conhecimento e a descoberta.
14A idéia de que é possível uma « alfabetização geográfica » nos remete para uma outra dinâmica. Toma-se a necessidade – e a possibilidade – de ensinar-aprender a interpretação da paisagem, dos lugares, bem como as formas de representação. Katuta e Souza (2001, p.130) vão além e propõem a leiturização, acrescendo questionamentos, visto que esse trabalho deveria resultar em uma atribuição de significado, pelo leitor, em relação à escrita, transcendendo a alfabetização. Esses autores sustentam que
« o clareamento desses conceitos é relevante porque é a partir de nosso entendimento do que vem a ser alfabetização e/ou leiturização que podemos ensinar a ler mapas ou apenas decodificá-los ».
15É uma idéia que se aproxima, parece-nos, do conceito de letramento, definido por Magda Becker Soares (2003) como
« resultado da ação de ‘letrar-se’, se dermos ao verbo ‘letrar-se’ o sentido de ‘tornar-se letrado’. Resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais ».
16Outros autores também sinalizam, explicitam desafios recentes, indicando que a leitura espacial se insere na realização do papel social da escola. Leitura geográfica que requer do professor um redirecionamento do seu olhar para o olhar do aluno e da escola, que « surge como caminho para buscar, organizar e interpretar informação » sobre o lugar, o momento, a vida. Ouso acrescentar que a promoção da leitura geográfica na escola justifica, em grande medida, a função social da própria Geografia no currículo escolar, lhe conferindo status e dimensão do fazer pedagógico e do fazer político.
17Algumas possibilidades de respostas:
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Para decifrar com o aluno a lógica que orienta a produção, a organização e a distribuição dos fenômenos.
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Da resposta anterior um desdobramento se faz necessário: saber o tipo de aluno que desejamos formar.
« O papel da Geografia, no ensino fundamental e médio, deve ou deveria ser o de ensinar ao aluno o entendimento da lógica que influencia na distribuição territorial dos fenômenos. Para isso faz-se necessário que o discente tenha se apropriado e/ou se aproprie de uma série de noções, habilidades, conceitos e valores, atitudes, conhecimentos e informações, básicos para que o pensamento ocorra ou para que o entendimento e o pensamento sobre o território ocorra. Esse conjunto citado é pré-requisito para que o aluno construa um entendimento geográfico da realidade. É preciso ter clareza, no entanto, sobre o tipo de aluno que queremos formar, por quê e para quê. É um função dessa reflexão que, posteriormente, devemos fazer nossas opções sobre os conteúdos a serem trabalhados junto aos alunos » (Katuta e Souza, 2001, p. 50).
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Desejar a formação de agentes políticos. « O mundo tornou-se muito complicado e é preciso uma explicação mais sistêmica [...]. Opor-se à crença de que se é pequeno, diante da enormidade do processo globalitário, a certeza de que podemos produzir idéias que permitem mudar o mundo » (Santos, 2000, p. 56).
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Ainda inspirado em Milton Santos: para desmistificar o espaço para o homem, desmascarando a lógica que tudo tem transformado em mercadorias (locais de viver!). Para anunciar e perseguir um espaço verdadeiramente humano! Não um espaço receptáculo, a-histórico e amorfo.
« Só o estudo da história dos modos de produção e das formações sociais nos permitirá reconhecer o valor real de cada coisa no interior da totalidade. A totalidade, objeto de nossa pesquisa, é algo muito diferente de uma universalidade parcial, sistema de privilégio e privilegiados que, para se imporem à humanidade, deve antes demais nada adormecê-la. Essa universalidade não é a verdade que a Filosofia esperava da Natureza » (Santos, 1997, p. 25).
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Uma de nossas finalidades deve ser ensinar uma geografia que transcenda os limites de escola. Dizemos isso confiando numa contribuição de Emília Ferreiro, para quem a escrita é um objeto social, mas a escola transformou-a em um objeto exclusivamente escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extra-escolares.
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Para o aluno ler, escrever e dizer o mundo (Kaercher, 1999). Superar a aparência. Três atitudes, três passos que conduzem à autonomia e à valorização do sujeito humano.
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Saber como a Geografia que se ensina afeta o pertencimento dos indivíduos sem ressignificá-lo. É fundamental enfrentar isso! Em nossas aulas não damos notícias sobre o mundo. Enquanto transmitimos o conhecimento produzido e provocamos, ainda que timidamente, indagações novas, estamos instituindo verdades – queiramos ou não. Estamos conformando identidades, personalidades e a visão de mundo dos educandos. Nesse sentido, as leituras a ser promovidas na escola carecem de sensibilidade e clareza quanto ao pertencimento que os alunos trazem consigo. A leitura geográfica praticada na escola (não só ela!), ao se sobrepor à leitura anterior do mundo, conflita como lugar inicial dos indivíduos, avaliando-os exclusivamente pelos novos conteúdos, quase nunca conferindo a aquisição de nova linguagem. Como esse educando retorna e se situa em seus espaços depois da escola?
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E uma outra insistência, não a última, para esse conjunto de respostas: Zeca Baleiro, na canção « Musak », diz um recado que vale insistir: « tudo que se vê pra que crê/tudo que se crê pra que crer/ tudo que se tem pra quem? » Então é preciso indagar-se, inconformar-se com a aparência das coisas e das intenções.
18Este elenco de possibilidades não esgota nossa procura, mas sugere algumas das motivações que valorizamos e perseguimos como resultados. São efeitos desejados, outros nem tanto assim, que fazem parte dessa prática!
19Partindo de conceitos para interpretar o real: paisagem, lugar e território. Acreditamos que tais conceitos possibilitam que elejamos conteúdos e objetivos escolares que conduzem a uma leitura sistematizada, sem a fragilidade do senso comum e suas « cortinas ». Ter a maior clareza possível sobre os conceitos orientadores, sobre os respectivos conteúdos e o suporte metodológico para não ficar no saber do aluno.
20Reconhecer formas, dinâmicas e fluxos. Em seguida compreendê-los, localizá-los. Educar o olhar para a estética e a diversidade contida na paisagem, bem como para o que nela há de subjetivo – o que depende das condições e do empenho do leitor.
21Ler o mapa e as distintas formas de representação, tornando o aluno parte do que ele vê e interpreta. Não basta colorir o papel e ler o mapa alheio, mas experimentar sua produção e aplicação.
22O caso da escola de uma periferia metropolitana.
23Estamos em andamento com um trabalho, o trabalho de leitura da paisagem com alunos do Ensino Fundamental (7a. série). Consiste numa proposta de interpretar na paisagem do município (Itaboraí) elementos constituintes do processo de humanização/des-humanização das paisagens cotidianas daquele lugar. Estamos orientados pelos conceitos de lugar, paisagem e trabalho para desenvolver os conteúdos: problemas ambientais urbanos: qualidade de vida, meio ambiente e cidadania. A intenção é chegar à produção de materiais (textos, vídeos, desenhos) em que os alunos revelem suas pesquisas, perguntas e respostas alcançadas com a orientação dos professores (Geografia, História e Língua Portuguesa).
24É fundamental que da leitura geográfica resulte uma produção, o « texto » geográfico do aluno. Também do professor! A não-realização disso é aprendizagem inconclusa. Ainda mais no mundo atual, repleto de tecnologias e possibilidades.
25Por meio desse instrumento discursivo, dizer o próprio mundo – o lido e o desejado – e reconhecer-se na relação com seu lugar, com seus pares. Ensinante e aprendiz, conforme suas capacidades, tornando-se copartícipes dessa responsabilidade que é escrever o espaço geográfico em linguagens e ações.
26Analisar e procurar soluções para alguns problemas fundamentais do país, como o da desigualdade e o da pobreza (Andrade, 1999, p. 13). É um resgate constante da instância política do conhecimento geográfico, a sua marca para além da epistéme, porque é um saber conseqüente. Provavelmente a melhor contribuição e justificativa para a nossa presença curricular na escola.
27Vale retornar à idéia de letramento, explicado como « o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais » (Soares, 2003). Se isto significa tornar a escrita própria, em nosso caso, nosso objetivo é tornar o espaço próprio.
28Benjamin, em sua crítica ao « progresso como cegueira », alerta que é preciso novamente escapar ao fetiche. Então, inspirado nele, uma expectativa que nutrimos há algum tempo é que nos eduquemos a todos. Ele escreveu: « Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém ». Em outro texto nosso, dissemos que nessa idéia há um recado objetivo
« aos educadores que insistem em possibilitar a cada educando ser um produtor de sentido para a história humana, e não formar intermediários da história dos dominados. Não emudeça o clamor dos derrotados. Fique claro que esse clamor, apesar da possível melancolia, precisa ser potencializado para resgatar a sua luta. Essa educação estará em parte nas atitudes de confiança, solidariedade, de astúcia e firmeza em defesa da liberdade e do prazer de aprender e ensinar » (Santana Filho, 1999, p. 28).
29De alguma maneira, defrontamo-nos com um desafio: buscar a autoria das propostas de leitura, hoje a cargo de editoras, livros didáticos, planejadores, capacitadores. Escapar de um receituário.
30Afinal, se o que propomos não dá sentido ao mundo, não tem sentido algum. Cabe-nos pensar, planejar e reivindicar a autoria dos nossos planejamentos, conteúdos e atividades escolares. As nossas aulas, as nossas dinâmicas e os nossos eventos estão desafiados por isso.
31É importante que nossos exercícios de leitura dêem lugar para se ler a ambigüidade, o lúdico, o meio-tom, a conotação e menos a técnica. Estamos nos referindo a uma prática não dissociada das idéias e do embasamento teórico-metodológico, procurando sempre exercitar cada passo na direção de um conhecimento que antepõe o humano à mercadoria, um conhecimento com sujeito.
« A pessoa só conhece um lugar uma vez que o tenha experimentado em tantas dimensões quantas possíveis. Para possuir um lugar é preciso se aproximar pelos quatro pontos cardeais e, inclusive, é preciso sair dele a partir desses pontos. De outro modo, este pode inesperadamente cruzar seu caminho, três ou quatro vezes antes que você se prepare para topar com ele » (Dialética do olhar – Benjamim e o projeto das passagens, por Susan Buck-Morss, p. 50).