1A escolha da mesa-redonda Organização da pesquisa em ensino de Geografia no Brasil para abrir o 7º. Encontro Nacional de Prática de Ensino de Geografia – « Novos desafios na formação do professor de Geografia » – é, certamente, um indício da importância do ensino de Geografia no interior de nossa ciência. Mas, ao mesmo tempo, um sinal de que há problemas em relação à formação de professores, inclusive no ensino superior. Em outras palavras: até que ponto os programas de pós-graduação em Geografia strictu sensu, reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (27Mestrados e 12 Doutorados, hoje), consideram, efetivamente, o ensino de Geografia como uma linha de pesquisa, que tem necessidades específicas, e coadunam ensino e pesquisa? Além disso, no mundo em que vivemos, aí incluídas as questões que caracterizam a sociedade brasileira, cumpre indagar: qual é o papel do ensino de Geografia?
- 1 A propósito do ensino de Geografia: em questão, o nacionalismo patriótico, na Universidade de São P (...)
- 2 La formation d’un grand Etat et la construction de l’unité nationale du Brésil, na Université Paris (...)
- 3 Geografia Crítica, com José William Vesentini, Editora Ática, São Paulo.
2Registro, rapidamente, que no início de minha carreira (1973) fui professora (contratada, depois efetiva) da Rede de Ensino Público do Estado de São Paulo, dos então Primeiro (5ª./8ª. séries) e Segundo Graus, entre outras experiências. Na Universidade Federal de Uberlândia a partir de 1985, fui, durante alguns anos, responsável pela Prática de Ensino em Geografia, após a conclusão de um mestrado em ensino de Geografia1 (1988). A realização de um doutorado em geopolítica2 (1997) não me afastou do ensino, pelo menos por dois motivos: sou co-autora de uma coleção de livros didáticos3, e oriento dissertações de mestrado e teses de doutorado em ensino de Geografia no Programa de Pós-Graduação em Geografia (além de pesquisas em geografia política, geopolítica, teoria e método). Devo assinalar que o ensino de Geografia vem se desdobrando em outras linhas de pesquisa, como educação ambiental, formação de professores, ensino de cartografia, linguagens, em decorrência da necessidade de um maior aprofundamento dessas questões, o que é também um importante indicador de sua dinâmica… mesmo se, salvo melhor juízo, o ensino de Geografia ainda não constitui uma área de concentração dos programas de pós-graduação estabelecidos. Finalmente, continuo lecionando na graduação (História do Pensamento Geográfico e Geografia Política, nos primeiro e quarto períodos, respectivamente), porque acredito indispensável investir na formação dos Novos…
3A institucionalização do ensino de Geografia por meio da pós-graduação é um fato que se encontra em processo no Brasil desde as duas últimas décadas do século XX, ainda que de maneira incipiente. De qualquer maneira, isso é extremamente importante. Porquê?
4Não se pode esquecer que a institucionalização da Geografia foi precedida pelo papel político-pedagógico de seu ensino nas escolas primária e secundária, na Europa Ocidental e mesmo no Brasil, onde se destacam, pelo menos, os seguintes personagens: Manuel Said Ali Ida (mais conhecido como M. Said Ali), Carlos Miguel Delgado de Carvalho e Everardo Adolpho Bachkeuser.
5Entendendo a Geografia como « disciplina da nacionalização », esses personagens conseguiram, cada um a seu modo, valorizar o ensino de Geografia na escolarização de crianças, adolescentes e jovens, animando uma importante discussão teórico-metodológica, seja em escolas, seja em associações, pois interessava-lhes introduzir a geografia científica no Brasil das duas ou três primeiras décadas do século XX. Por sinal, realizaram este objetivo antes da institucionalização dessa ciência (é o seu maior mérito!), que ocorreu apenas a partir de 1934, quando se iniciou o primeiro curso superior de Geografia, na Universidade de São Paulo.
6A meu ver, na pós-graduação, o ensino de Geografia apresenta a mesma trajetória. Isto é, no contexto de uma reavaliação daquilo que se chama de Geografia Tradicional, e, paralelamente, de uma luta pela eliminação dos Estudos Sociais, que descaracterizaram a Geografia (e a História) durante o regime militar (1964-1985), alguns professores dos então Primeiro e Segundo Graus, que atuavam nas redes pública e privada (sobretudo na primeira, cuja qualidade degringolava),voltaram à universidade para, de uma maneira geral, repensar a Geografia e (re)avaliar suas próprias práticas pedagógicas, quase sempre inovadoras, e alternativas ao que a burocracia impunha de cima para baixo nas escolas. É bom que se diga que, muitas vezes, suas dissertações de mestrado e teses de doutorado não abordaram o ensino de Geografia propriamente dito. Porque, se estavam engajados no combate contra as limitações da Geografia Tradicional, se queriam a eliminação dos Estudos Sociais e lutavam pela (re)democratização do Brasil?
7É esta a questão que norteia a minha intervenção, e dá sentido à minha presença nessa mesa-redonda. Quem me conhece sabe que tudo aquilo que é/está ligado às interfaces entre o teórico-metodológico, o político e o ensino de Geografia me interessam profundamente.
- 4 Felizmente, essa tendência se firmou nos anos 1990, e hoje se diversifica.
8Assim, a questão de saber por que professores de geografia dos atuais ensino fundamental e médio, entre outros interessados, começaram, timidamente ao longo da década de 1980, a escolher o ensino de Geografia como objeto de pesquisa4 remete, a meu ver, a uma concepção de mundo, de ciência, de educação que deve ser revista; aliás, está sendo revista há algum tempo.
9Em poucas palavras, é preciso rever a concepção do pensamento científico clássico, cujos princípios básicos são a separação – conhecer a partir do exame das parcelas – e a redução – organizar o pensamento do mais simples para o mais complexo. Ao aplicá-los de maneira restrita, a ciência acabou passando por cima do fato de que o simples é complexo (no propósito de explicar fenômenos e processos, reduziram-se a sua essência, o seu movimento, as suas relações, complementares e/ou contraditórias, com as partes e/ou o mais amplo). Além de o conhecer a partir do exame das parcelas se desconectar do mais amplo, a separação disjuntou o sujeito do conhecimento e o seu objeto de estudo, e isso explica, pelo menos em parte, por que durante muito tempo a nossa prática pedagógica não foi sequer considerada um objeto de estudo. Dado que se separou ensino e pesquisa, pesquisa e ensino, mais uma dicotomia se estabeleceu!
10Certamente, nós mesmos contribuímos para tal situação, tão forte era (ou é?) essa compreensão de ciência, de educação, de mundo. O mundo era concebido, fundamentalmente, como o teatro das ações humanas, no contexto de uma sociedade que entendia o homem, enquanto indivíduo e grupo, como « amo e senhor da natureza », cabendo-lhe estabelecer, por meio da ciência, baseada na razão, a ordem do mundo que, pressupunha-se, existia.
11Hoje, ainda vivemos as conseqüências dessa concepção. Aos poucos, porém, está ruindo o pressuposto da ordem do mundo. A própria ciência mostra que a ordem e a desordem não se excluem, apontando, assim, para a valorização da complexidade do mundo em seus estudos. Ademais, ao sugerir que não podemos mais fugir de sua complexidade, admite que, no limite, a ciência, na perspectiva clássica, teria sido o instrumento utilizado para simplificar o que é complexo. Isso não significa que o complexo não possa se tornar inteligível! Quanto à ciência, ela está sendo repensada. Exemplificando: cabe-nos formar cidadãos não apenas na escala local, mas, igualmente, para uma sociedade mundial. Esta precisa ser construída, pois, se vivemos em um mundo aparentemente globalizado, ele não é integrado. Tal complexidade exige uma reforma do pensamento, da ciência, da educação.
12Continuando com a globalização (mundialização, para os franceses), gostaria de registrar que a lógica do território, que caracteriza o Estado-nação, passou a conviver com a lógica das redes, por sinal por ele viabilizadas desde o final do século XIX, que desenvolveram a instantaneidade e a simultaneidade do (e no) mundo atual. Tal convivência evidenciou a complexidade do mundo, expôs as suas peculiares imprevisibilidade, incerteza, instantaneidade e simultaneidade.
13Considerando as profundas transformações que estamos vivendo desde as duas últimas décadas do século XX – crise do Estado-nação, queda do Muro de Berlim, atentados terroristas inclusive nos Estados Unidos –, pergunto se tais acontecimentos, entre outros, não estariam anunciando um « mundo novo », no sentido de que não mais podemos ignorar a sua complexidade.
14Por sua vez, essa concepção de « mundo novo » levanta várias questões, tais como:
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que conceituação de tempo e espaço permite apreender a sua complexidade?
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que geometria(s) pode(m) traduzir os fenômenos geográficos, se a distância não se reduz mais ao(s)espaço(s), e, por conseguinte, se eles não se restringem a uma representação cartográfica de base euclidiana?
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como evitar os fundamentalismos (e eles são de natureza política, econômica ou cultural-religiosa), isto é, as tentativas de se compreender o mundo a partir de uma leitura redutora de uma doutrina qualquer (o islamismo, ou o Consenso de Washington, por exemplo), se não se conhece, profundamente, a si mesmo (o que é indissociável do olhar do Outro), e se se desconhece o Outro?
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que educação se impõe em face das redes que atravessam alegremente as fronteiras colocadas pelo espaço e pelo tempo, exprimindo a instantaneidade e a simultaneidade do mundo, bem como a permanência das desigualdades reais, mesmo se a distância espacial e temporal tende a se tornar virtual?
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que ensino de geografia se impõe a uma sociedade que vive um processo de globalização sem precedentes, e um aumento de reivindicações por parte de comunidades que se definem a partir de sua pertença a um grupo étnico, de sorte que, em crise, a identidades e coloca como uma questão fundamental, que precisa ser (re)construída?
15Estes são alguns dos novos desafios que temos de enfrentar na formação do professor de Geografia, em todos os níveis.
16Como enfrentá-los sem admitir que, mais do que conhecer o mundo e recompor suas unidade e diversidade, é preciso mobilizar a sua dinâmica? Mobilizando na acepção do apreender e compreender a vida das sociedades humanas e do próprio planeta, podemos, por meio de um pensamento crítico e não fechado aos sentimentos humanos, reunir o que é/foi criado conjuntamente, e reconhecer o todo e as partes, explicando como entram em relação, e configuram o que estou chamando de « mundo novo ».
17Entendo que a análise dos dramas atuais da humanidade, qualquer que seja a sua origem (política, geopolítica, ambiental, cultural, econômica, militar), não pode prescindir de um ensino de geografia em que o aprender a aprender se realiza na sala de aula. Em outras palavras, o professor ensina seus alunos, e, simultaneamente, aprende com a vivência deles, o que pode levá-lo a transformar a percepção intuitiva dos alunos, acerca de um tema que os excita, em um problema de pesquisa. Afinal, a pesquisa não é, ou não deveria ser, estranha ao processo de ensino–aprendizagem!
18Na medida em que o local (ou o nacional) está ligado, de uma maneira ou de outra, ao global, a complexidade do mundo não seria mais acessível aos estudantes se estimulados a identificar um problema do (no) meio em que vivem e a propor soluções? Na interface entre ensino–aprendizagem e pesquisa, as relações entre o local (ou o nacional) e o global seriam, certamente, apreendidas durante a realização de atividades como essa na aula de geografia!
19Na qualidade de mediadores(as) entre os alunos e o saber, cabe-nos, como professores(as), entre outros, definir ou redefinir:
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a abordagem metodológica do ensino de geografia que norteará o trabalho em sala de aula;
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os conteúdos curriculares, atentos(as) às mudanças e inovações do (e no) mundo;
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os recursos (a começar pelo livro didático) e os procedimentos de ensino para utilizá-los de maneira criativa;
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as atividades extraclasse, que variam desde a ida ao cinema ao estudo do meio na comunidade (ou região);
20e valorizar a linguagem dialógica, pois é no diálogo entre professor e aluno que se processa a troca entre o aprender e o ensinar, de sorte que o aprender a aprender insere ambos na investigação do « mundo novo » que se delineia nesse início do século XXI.
21É importante assinalar que o aprender a aprender nega a razão enquanto o princípio único do saber. A consideração dos sentimentos das pessoas permite evitar os exageros da razão instrumentalizada da modernidade.
22Entretanto, isso não significa a negação da razão. Alguns pensadores críticos da modernidade, independentemente de se apresentarem como pós-modernos ou não, sugerem que a razão deve ser entendida como um meio para se aprender a aprenderem uma sociedade cuja dinâmica:
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decorre da tensão entre o local e o global, que reclama um diálogo político entre culturas fragmentadas e « fechadas », e um mercado globalizado e « aberto »;
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demanda, às pessoas, uma atitude receptiva a toda sorte de inovações, o que lhes permite se transformar rapidamente, no espaço privado e no espaço público, se atualizar e aprender a cada momento, em diferentes instituições (e não apenas na escola) e situações;
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está associada à flexibilidade que, hoje, caracteriza as coisas; os meios que veiculam o espaço e o tempo se tornaram « imateriais », leves, flexíveis e acessíveis;
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desafia as pessoas a (re)construir a sua identidade (individual e coletiva).
23A última questão, de natureza política por excelência, remete à necessidade de resgate de um ator: o político, que se institui nas relações que os homens estabelecem uns com os outros, o que assinala o caráter instituinte, fundador, indeterminado da coisa política.
24Conduzindo o trabalho pedagógico por meio do aprender a aprender na sala de aula, o professor permite a integração dos educandos ao mundo, a partir da escala local. Essa integração, porém, depende da conquista incessante de direitos, pois só há cidadania plena quando o cidadão assume o seu fazer histórico como uma de suas tarefas, está preparado para tal e age para atingir esse objetivo. No Brasil, porém, o grande desafio da educação no início do século XXI é a disseminação do sentimento, entre todas as crianças, de que têm direito à cidadania, em primeiro lugar. O ensino de geografia, por sua vez, pode contribuir efetivamente para formar cidadãos, plenos e ativos, explorando mais a imprevisibilidade do mundo, isto é, mostrando que a integração entre a natureza e a sociedade não cessa de se modificar, e sempre coloca desafios novos, de maneira que nós, professores(as), pesquisadores(as) e alunos(as), somos chamados a assumir o fazer histórico da educação na sociedade brasileira do século XXI de maneira inovadora. Paralelamente, a cidadania deve se tornar cosmopolita, um imperativo que se coloca ao planeta Terra nesse início do século XXI, dado que a continuidade da vida no planeta vivo, e da vida, depende das relações e inter(intra)-relações sociais e naturais, locais (ou nacionais) e mundiais.
25O « mundo novo », delineado no início do século XXI, exige uma reforma do pensamento e uma reforma da educação. Nesse sentido, o ensino de geografia adquire uma importância ainda maior do que aquela que desempenhou como uma das disciplinas da « nacionalização »: cabe-lhe articular o local e/ou o nacional ao mundial, algo indissociável da formação de cidadãos plenos e atuantes.
26O exercício dessa cidadania pode começar, e/ou se desenvolver, na escola, na medida em que os alunos, sob a mediação do professor, são co-sujeitos do processo de ensino–aprendizagem. O mestre ensina, mas, igualmente, aprende com os alunos, valorizando suas experiências de vida como uma das dimensões do saber. Tal atitude favorece, de um lado, a aprendizagem escolar propriamente dita, e pode ensejar uma iniciação da pesquisa científica, de outro lado. Em outras palavras, é por meio da interface entre ensino–aprendizagem e pesquisa que o conhecimento se realiza nasala de aula como (re)descoberta e (re)construção dos alunos, simultaneamente, e essa é a razão de ser do ensino, em qualquer nível.
27Afinal, como as crianças, os adolescentes e os jovens podem assumir a responsabilidade pelo devenir se não forem estimulados a fazer coisas novas, a utilizar a criatividade e a crítica no olhar que nos dirigem, e ao mundo, desde a sala de aula? Algumas vezes, a priori rejeitamos esse olhar, tão imprevisíveis nos parecem suas hipóteses e proposições. Mas a imprevisibilidade não é apenas um dos traços do nosso « mundo novo »? O aprender a aprender na aula de geografia estimula a curiosidade acerca da imprevisibilidade, da incerteza, da instantaneidade, da simultaneidade – em uma palavra, da complexidade desse « mundo novo » –, cuja apreensão não depende apenas dos recursos definidos pela ciência clássica com base na razão instrumentalizada da modernidade, poiso ser humano é, a um só tempo, razão e emoção, matéria e espírito, corpo e alma, sujeito e objeto (do conhecimento, do saber, da política), território e rede, contradição e complementaridade, tradição e modernidade, simples e complexo, local (nacional) e mundial…
28A consolidação do ensino de Geografia como linha de pesquisa nos programas de pós-graduação e um forte intercâmbio com os professores de Geografia dos ensinos fundamental e médio, a meu ver, são alternativas profícuas para se eliminar o fosso entre ensino e pesquisa, pesquisa e ensino que, até o presente, se reflete no frágil comprometimento de tais programas com a formação de professores; dos atuais 27, cerca de 10 contemplam o ensino. E, como resultado de uma mudança efetiva do pensamento e da educação, o ensino de Geografia poderia se transformar em área de concentração!