Navegação – Mapa do site

InícioNuméros4ArtigosA política educacional brasileira...

Artigos

A política educacional brasileira e os novos desafios da formação do professor em geografia

William Rosa Alves

Resumos

O texto se quer uma contribuição para o entendimento da condição de professor de Geografia na contemporaneidade, o que requer reflexões sobre a reprodução social e não só sobre a dimensão empírica de tal presença. Assim, parte da localização da política educacional como elemento das políticas sociais em geral, passa pela suas indicações para o « ser professor », portanto qual formação que o faz corresponder como agente para a consecução dos desígnios requeridos pela sociedade brasileira postos por meio do Estado, e ainda qual a relação entre os imperativos pedagógicos da afirmação do modo de educação demandado na sociedade brasileira e as tradições e práticas identificadas como Geografia no Brasil. A argumentação se desenvolve com a premissa da evidência de dois projetos principais de sociedade que polarizam o debate desde a concepção até a execução da política educacional no Brasil atual, que mesmo não confluindo para um sentido único desenvolvem práticas com semelhanças e fusões que tornam complexo o entendimento das motivações, dos processos e dos rumos dos expedientes aí mobilizados. Procura verificar se divergem quanto à concepção do papel – e daí dos modos com seus princípios e das formas com seus expedientes – da educação na formação social brasileira, considerando a demanda pelo professor instrutor da produção e, portanto, agente estatista da cidadania produtiva. Ruma-se para a discussão da avaliação como intervenção na Geografia (no nível epistemológico), a fim de identificar e situar, a partir do que se insinua como « novos desafios » na formação do professor de Geografia no Brasil, uma abordagem para entender a(s) tendência(s) do debate com vistas à previsão e à intervenção qualificada em razão de um projeto afim da emancipação humana.

Topo da página

Notas da redacção

Texto apresentado na mesa redonda Política educacional brasileira e os novos desafios da formação do professor de Geografia, no 7º Encontro Nacional de Prática de Ensino de Geografia (Vitória, setembro de 2003).

Texto integral

« A cidadania é uma forma específica de convivência contraditória das classes, forma pela qual a classe dominante/hegemônica é capaz de absorver, total ou parcialmente, a sociedade »

(Edmundo Fernandes Dias, 1996).

Introdução

  • 1 Texto elaborado para exposição e debate na Mesa Redonda de mesmo nome no 7º. Encontro Nacional de P (...)

1O título desta mesa1 sugere, além dos elementos explicitados como termos e expressões, uma seqüência para refletirmos sobre o sentido da nossa presença dita como de professores de Geografia. Assim, o percurso desta exposição parte da localização da política educacional como elemento das políticas sociais em geral, passa pelas suas indicações para o « ser professor », portanto qual formação que o faz corresponder como agente para a consecução dos desígnios requeridos pela sociedade brasileira postos por meio do Estado, e ainda qual a relação entre os imperativos pedagógicos da afirmação do modo de educação demandado na sociedade brasileira e as tradições e práticas identificadas como Geografia no Brasil.

2A argumentação se desenvolve com a premissa da evidência de dois projetos principais de sociedade que polarizam o debate desde a concepção até a execução da política educacional no Brasil atual, que mesmo não confluindo para um sentido único desenvolvem práticas com semelhanças e fusões que tornam complexo o entendimento das motivações, dos processos e dos rumos dos expedientes aí mobilizados. Resta saber se divergem quanto à concepção do papel – e daí dos modos com seus princípios e das formas com seus expedientes – da educação na formação social brasileira. O objetivo último é o de identificar e situar, a partir do que se insinua como « novos desafios » na formação do professor de Geografia no Brasil e em alguma medida entender a(s) tendência(s) com vistas à previsão e intervenção qualificada em razão de um projeto a fim da emancipação humana.

3A título de provocação, um episódio nos chama apensar sobre o que se vive como professora(e)s de Geografia: uma amiga professora, enquanto gestante, instintivamente rumava às geladeiras em busca de algo que nunca descobriu por si própria. Olhava o aparelho com a porta aberta por vários minutos e, com a consciência de tal perplexidade, irritava-se e chorava. Foi assim até que uma amiga comentou que, quando grávida, chupava gelo compulsivamente. Foi o suficiente para a professora acorrer com freqüência aos refrigeradores para « descontar o tempo perdido » sem o seu « delicioso » gelo. Superou assim alguns dos vários períodos de depressão emocional.

4Qual(is) o(s) sentido(s) de nossa inserção como docentes de Geografia? Quais os vetores que impelem nossos fluxos ou movimentos? Somos inerciais ou irruptivos perante, por exemplo, a ignorância dos nossos próprios desejos e/ou vontades e/ou anseios? Quais as contradições entre as imposições como profissão e as necessidades e os ímpetos de liberdade como pessoa e cidadã(o) nos termos do mundo moderno?

Política educacional no brasil como política social

  • 2 É imprescindível o esclarecimento do percurso entre a abstração positiva – as bandeiras da modernid (...)

5Um apontamento inicial, geográfico por sinal, se refere à amplitude das definições que aparecem como política educacional em qualquer nacionalidade no mundo contemporâneo. Assim como a modernidade é prometida como universal, a modernização, tal como realizada pelo desenvolvimento do capital, é necessariamente total – o que não quer dizer absoluta, ou seja, que elimine todos os seus contrários ou exclusos. A concretização de tal processo é grosso modo chamada de urbanização, que, se de início coincide com a afirmação pelo crescimento e pela intensificação da presença, da influência e até da imponência das cidades como comunidades políticas sustentadas por algum desenvolvimento econômico, com a totalização de um urbano de talhe industrial passa a fragilizar e até esboroar identidades e condições fundamentais de convivência – chamadas modernamente de civilidade e, mais precisamente, de cidadania2. O acirramento de tais contradições foi enfrentado modernamente pela ampliação e intensificação da presença do Estado como instituição-mor da sociedade, resultando nos vicejos de « estadania » em detrimento da cidadania. A antecedência das chamadas políticas econômicas acompanhou a doutrina liberal proclamadora do mecanicismo na relação economia–sociedade, ou seja, as « políticas » de Estado priorizam o crescimento e o desenvolvimento econômico para alcançar os resultados sociais da prosperidade: trata-se de primeiro « fazer o bolo crescer para depois dividi-lo ».

  • 3 Para as reflexões propulsoras de práticas que contribuem para o esclarecimento e a superação de tai (...)

6Assim, se as « políticas sociais » têm – quiçá são –algum contraponto ao liberalismo por meio da afirmação da necessidade de proteção das frações da sociedade vulneráveis à expropriação das condições de vida, não se libertaram da promoção das condições requeridas pelo próprio desenvolvimento do capital. São, portanto, composição e reposição das condições gerais de produção, mantenedoras dos elementos da reprodução social nos âmbitos do trabalho – a educação e a saúde como fornecedoras de trabalhadores individual e socialmente em condições mentais e físicas para assumir com disposição e entusiasmo o trabalho: trata-se da servidão voluntária. Mas a virtualização –os projetos – e a consecução – os programas – de tais « políticas » concretizaram condições para o desenvolvimento do capital em sua reprodução ampliada, pois forneceram, a título de realização de uma divisão técnica do trabalho – a educação como qualificação e especialização para o trabalho industrial, não somente fabril –, os meios para uma presença positiva pela produção, mas também propiciaram alguma contrariedade emersa da consciência da importância do trabalhador como indivíduo e como classe. Acredita-se então na possibilidade de a educação, ao lidar com a consciência do mundo em que se vive, mesmo pela negação dos conteúdos escolares legitimados pelos desígnios gerais da sociedade, contrariá-los e possibilitar algum entendimento das tramas reprodutivas mais profundas, que constituem a exploração e a dominação do trabalhador3. O conteúdo almejado para a existência social brasileira é então o da cidadania produtiva, ou seja, aquela em que a presença de cada um e de todos corrobora para a – e é condição da – integração à produção dos meios vistos como necessários à vida.

7Enfim, as políticas sociais são âmbito da sociedade em que se disputam projetos em condições desiguais, donde se extrai que só há superação dos constrangimentos da realidade por meio da luta que irrompa os esquadros da hegemonia vigente, o que implica a compreensão da amplitude e complexidade da realização da abstração ordenada no nível do Estado e sua virtualização e concretização como práxis. Há que se entender nas políticas sociais as praxeologias – modos, normas e formas – propostas e impelidas por cada agente histórico.

  • 4 Sobre imposição da representação dos interesses dos dominantes no Brasil, veja-se Marilena Chauí (2 (...)

8Cabe então ainda um apontamento acerca das « políticas sociais » em geral: na tradição da sociedade brasileira, nota-se a permanência – e daí é necessário veras formas e o modo da manutenção – da « política » como algo circunscrito, consoante e destinada à realização do mundo centrada no Estado. Em verdade, em prol das elites assume-se a exclusividade do Estado, desde a concepção até a execução operacional, como o único continente de racionalidade social suficiente para conduzir – até no sentido das « mudanças » – o conjunto social4. Entre os aspectos centrais que conformam a sociedade brasileira, destaca-se a ausência de uma horizontalização nas relações sociais para algum vicejo de relações políticas, pois a classe dominante, como elite exclusiva, impõe normas que lhe são favoráveis para o conjunto da sociedade sem mediações para alguma alteridade – consideração do outro como sujeito, como partícipe das concepções e decisões que formam e consecutem a própria vida. Assim, a classe dominante mantém o Estado como aparente demiurgo acima das classes, e assim a hegemonia institui um Estado interveniente – mesmo que por meio da ausência – em toda a sociedade. Com o fim último da realização da mercadoria, o Estado no Brasil promove avassaladoramente o privado, asfixiando as posições antagônicas à guisa de eliminação do público. Destarte, o desenvolvimento desta sociedade se aninha no caráter pastoral – antipolítico – das relações sociais, em que o « outro » é visto com desprovido de qualquer substância humana e seus elementos constituintes. Daí o prefixo « sem » para pretensamente representar a qualidade da existência social da maioria, a ponto de categorizá-la como « excluída ». Não estando em condições de opinar e/ou decidir, a relação deve se constituir a partir do pólo racional e esclarecido – competente – da sociedade, e não da « massa » amorfa que não detém os meios de participação nos rumos da vida social. Ora, trata-se então de gestão, e não de política social.

9Neste sentido, a educação não é vista em geral como necessidade humana coletiva – o que a requereria como direito genérico e irrestrito desde a participação na concepção até sua execução –, mas é demandada como condição e meio de virtualização e concretização das condições para a perpetuação desta forma social, desta história dos entes humanos ordenados nesta sociedade. No sentido geral para a realização do segundo rumo – a reprodução – a educação deve ser uma atualização permanente à divisão do trabalho nas suas dimensões técnica e social. No esteio da técnica, a educação tende a corresponder às formas fordistas-tayloristas de ordenação do trabalho, impulsionadas para a especialização das tarefas numa perspectiva sistêmica. O positivismo e sua definição instituída – a chamada « escola tradicional » – constituem predominantemente a práxis da educação brasileira atualmente, haja vista a incompletude das formas de reprodução do capital que por aqui vigem – chamadas de « sub-desenvolvimento », « periferia » e similares. Tal referência compele à representação social da educação brasileira como meio para alcançar um lugar no escopo do trabalho assalariado como condição real para a subsistência e a possibilidade de melhoria das condições devida. Mas, como constituinte virtual e real da sociedade, requer-se da educação instituir a adequação da vida às normas que não só regulam, mas mantêm e perpetuam tal sociedade. Em suma, a educação é sobretudo imposição de uma postura de obediência aos princípios, fundamentos e termos da reposição permanente destas condições, cabendo alguma ampliação da vida apenas como progresso, grosso modo chamado « ascensão social », que corteja constritamente o crédito no indivíduo como plenitude do ser humano.

  • 5 Na contracorrente das teses sobre o deperecimento do trabalho como centralidade da vida humana, Ric (...)

10Porém, num contexto em que se apresenta a redução das condições desta reprodução, evidenciadas pela virtualização do trabalho assalariado – reconhecível por tal aumento do desemprego do trabalho vivo a ponto de adjetivá-lo como « estrutural »5 – e crise das formas e dos modos de regulação social – observáveis a partir do crescimento e do recrudescimento da chamada « violência » –, pergunta-se sobre a utilidade da educação para a inserção no chamado « mercado de trabalho » e para a integração à civilidade – a convivência pacífica e harmônica nos densos espaços da presença humana, mormente os maiores centros do mundo contemporâneo, as metrópoles.

11Na busca de soluções para tal problemática, vê-se que nos discursos prepondera inconteste a reafirmação da centralidade do professor como agente de transformação social, o que significa algum reconhecimento do caráter humano, antimaquínico, da Educação. Porém, mediante a crise contemporânea do desenvolvimento da sociedade capitalista, em que as instituições sociais perdem força de constituição de formas e modos de promoção e regulação social para uma mínima convivência, e em que a escola é reconhecida como um dos últimos espaços potencialmente públicos para a provocação no sentido de alguma coletividade civilizada, os agentes centrais da escola, os professores, devem garantir o aprendizado e a execução das práticas que não incorram na autodestruição ou na destruição mútua dos indivíduos que aí se encontram, além de promover modos que garantam a manutenção ou até a emancipação da vida. Daí a necessidade de se pensar o que a política educacional requer do professor.

Política educacional e formação do professor

  • 6 Marshall Bermann (1998, p. 91 ss.) relaciona a modernidade e a modernização à celebração da vida ac (...)

12Diversas interpretações sobre a trajetória da política educacional brasileira confluem para a afirmação de que há mudanças das formas e quiçá do modo de inserção – e daí a promoção desde a concepção até a operacionalização – da educação brasileira, e indicam que sua finalidade deva ser a de conformar – no sentido conformista? – uma cidadania dita ativa para a construção de uma nação efetiva, ou seja, em que haja coincidência entre a representação – identidade formal, instituída – e os conteúdos sociais para cada um e para todos6. O meio e o modo de tal realização é atribuído ao trabalho, em princípio considerado como ontológico ao ser humano, mas contextualizado historicamente em razão do reconhecimento da diversidade – e da desigualdade – desde os problemas até os fins e sentidos da existência contemporânea. Assim, a necessidade do caráter ativo da presença no mundo acompanha o sentido com que a burguesia realiza a modernidade, nos limites a seu proveito: a produção. Assim, a representação genérica – como utopia moderna – para orientar e mesmo instituir socialmente os ímpetos práticos deve ser a cidadania produtiva. Ora, a produção contemporânea se desenvolve como fragmentação das tarefas tal como requerem o detalhamento e a especialização do processo de produção da mercadoria. Desde a interpretação da realidade à sua realização, teoria e prática devem ser arrastadas e redefinidas com parâmetros outros que não as macroidentidades da modernidade –por exemplo, a indissociabilidade entre igualdade, fraternidade e liberdade, enquanto substância, síntese–, mas agora com adjetivações imersas no enquadramento da própria produção. Trata-se de constituir e instituir a educação como « permanente » e « flexível », para manter a disposição em servir obediente e voluntariamente aos desígnios dispostos a cada momento, adaptando-se às « novidades » vistas como única forma de avanço para a vida – e contra as tradições e identidades resistentes à sua própria dissolução. A representação da contrariedade ao positivismo amalgamou parcialmente as posições no âmbito do discurso e da prática – e assim constitui uma « práxis »? – que informam as correntes « mudanças » de política educacional.

13Todavia, o debate resulta em algum dissenso quando necessita aclarar os meios de alcance dos objetivos e das metas anunciadas. E por aí algumas discordâncias aparecem em razão dos interesses dos envolvidos em condições de classe distintas. Falta saber e refletir se inconciliáveis, pois um dos traços principais do confronto entre as posições de interpretação, proposição, intervenção por meio das « políticas » sociais, educacionais aí inclusas, é o pretenso ecletismo, ou seja, a sanha em selecionar elementos vistos como positivos em processos vigidos ou vigentes alhures, e compor uma unidade programática prática como se o resultado de uma matriz só fosse possível com o exato trajeto das operações das variáveis (des)envolvidas. O expediente categórico da atualização das « políticas educacionais » é o da adaptação, haja vista o estreito horizonte de contribuição desta dimensão da vida na sua consecução mais ampla e livre. A forma da presença dos espaços educacionais estatistas – universidade e escola – na sociedade é a « organização » e não a instituição, o que implica a radical mudança na perspectiva de sua inserção social no Brasil, pois se perde o escopo da totalidade – para além da divisão do trabalho imposta até então – e o sentido da universalidade – no rumo da sua superação (Chauí, 2003). Daí o caráter de focalização nas/das políticas educacionais atualmente. Tendo-se já definidos os limites da atuação – implicando mesmo o ativismo, ou seja, atividade ritualística, excluída e excludente da reflexão –, a formação do professor pode ser substituída pelo treinamento – alcunhado de « capacitação », « reciclagem », « atualização » –, ou seja, sem transubstanciação do conhecimento, e muito menos qualquer alteridade na relação instituída. Vê-se aí mais um engodo no próprio nome do conjunto de expedientes da política educacional. Há claro rebatimento das perspectivas de mudanças da objetividade da Educação no Brasil nos projetos educacionais, corroborando o sentido geral de intervenção nos meios e princípios a partir dos fins prefigurados para realizá-la como formação de capital.

  • 7 A matriz das habilidades e competências constitui o todo do trajeto das políticas educacionais do p (...)

14Desse modo, as Licenciaturas, como esteio da formação do professor, vêm sendo modificadas no todo pela ação do governo federal no bojo da Reforma de Estado pós-1990 – chamada comumente de « neoliberal » e inaugurada pelo staff de Fernando Collor de Mello como presidente do Brasil. A fim de corresponder aos apontamentos mais gerais referentes ao(s) sentido(s) aqui reconhecido(s) para a educação brasileira, destaca-se que na dinâmica impelida para o período da Licenciatura Plena – no âmbito da Graduação, também chamada de « formação inicial » – são instituídos como praxeologia a ampliação e a flexibilidade das funções do professor os fundamentos do percurso « habilidades-competências »7, ditos em geral como o único correto para consistir o sentido – o produtivo, como dito há pouco – de tal formação. Tendo chegado às Licenciaturas, fontes de inspiração e orientação essencial da formação dos professores, cabe perguntar: quais implicações na formação ocorrem quanto às relações históricas entre a especificidade das áreas do conhecimento que conformam os conteúdos ditos escolares e as referências gerais para a atuação do professor no Brasil?

A formação do professor de geografia no contexto atual

  • 8 Gaudêncio Frigotto (1996) analisa amiúde a pretensa fundamentação da educação brasileira a partir d (...)

15No contexto da polarização dos projetos educacionais para o Brasil, o escopo apresentado acima (des)encontra-se com a tradição e a perspectiva do ensino de Geografia em todos os níveis. Nosso foco aqui é o próprio fulcro epistemológico do ensino de Geografia na instrução regular – escolar – tal como vigente no tempo de acirramento da luta pela « educação pública, laica, de qualidade », lançado à discussão e à prática como projeto empenhado pelos movimentos sociais críticos à jornada pela « modernização conservadora » em que a educação brasileira foi encaminhada8. Os contrapontos continentes da luta pela libertação da educação brasileira em relação aos interesses mais obtusos para o desenvolvimento do capital são heterogêneos, pois que não só resultantes das trajetórias da inscrição acadêmica organizada em torno da pedagogia como praxeologia, mas em razão da própria fusão entre as idéias e as práticas –no contexto capitalista, decerto a captura das primeiras pelas segundas – houve reestruturação epistemológica que chegou ao nível do ensino com as achegas do « movimento de renovação pedagógica » e o surgimento e o desenvolvimento das chamadas « ciências da educação ». O afã pelas mudanças da educação brasileira, por esse lado, abriu intenso debate com vistas à provocação e até o avanço em cada área específica do conhecimento em que vigorava francamente a hegemonia do positivismo.

  • 9 A partir das provocações do debate na própria referência principal da geografia brasileira, a Franç (...)

16Porém, também as áreas de conhecimento viviam críticas próprias. No caso da Geografia, desde os finais dos anos 1980 já se insinuava o « movimento de renovação do ensino de geografia »9, que alcançou desdobramentos teóricos e epistemológicos graves nos anos 1990. Entre os aspectos da relação entre Geografia e Educação no Brasil, destacamos a questão da identidade da geografia no contexto educacional pensada a partir do ensino regular, por vezes apresentado como « geografia escolar ». Os apontamentos que refletiram o movimento do real ao possível e do possível ao real adentraram a sala de aula não com uma pretensa substituição do ensinar desde a dimensão filosófico-teórica até um roteiro procedimental, uma praxeologia, mas em grande medida introduziu experiências que, malgrado a precariedade de teoria e método, insinuaram aberturas mesmo a partir de pequenas insurreições. Daí desdobraram-se temáticas que inovaram – e em parte renovaram – em vários aspectos da relação de ensino como momento da elaboração da geografia, incluindo na pauta do debate questões mais próprias da organização do conhecimento geográfico a ser desenvolvido na escola, como a interdisciplinaridade, a pertinência teórica do que de início se apresenta como modelo de interpretação e pragmatismo, bem como fomentou desacordos particulares e até utopia contra a ordenação geral da educação brasileira. Os enfrentamentos que rogavam autonomia no ensino – o de geografia incluso – viram os termos e elementos teóricos e práticos cultivados capturados nos documentos oficiais federais a partir de meados dos anos 1990, processo já acionado em algumas unidades federadas brasileiras, como estados e municípios governados por outros críticos à « escola tradicional », ao positivismo e ao pragmatismo. Anunciantes de uma difusa referência da « cidadania » como inspiração e sua construção como finalidade da educação brasileira, os ideólogos da política educacional recente informaram concepções abstratas quanto à espacialidade e à territorialidade para (re)definir a geografia a ser ensinada em todos os níveis e modalidades das instituições educacionais (Alves, 2003).

17Tal processo guarda semelhança com sérias mudanças no ensino de geografia quando da implantação –termo que já indica o autoritarismo da relação – de uma « política educacional » modernizadora da sociedade brasileira com o Golpe de 1964, como nos lembra Rui Campos (2002). Observadores atentos já viam nos confrontantes àquele processo mais traços de ojeriza ao professor com um status profissional equivalente ao do cientista aninhado nas universidades do que alguma radicalidade do conhecimento desde o nível teórico (Vesentini, 2002). Ou seja, mesmo nos momentos mais flagrantemente redutores das possibilidades do conhecimento como liberdade em entender e praticar a transformação do mundo, na geografia brasileira não houve uma defesa convicta de alguma autonomia desta área de conhecimento, o que revela uma insuficiência quanto à afirmação e à consolidação de um projeto de ciência, parcelar que seja, mas com estatura de debater no nível epistemológico para (des)alinhar-se com outrem da seara científica, artística, político-social, cultural ou qualquer que se insurja radicalmente contra a dominação.

18Tal frouxidão de projeto – com sua contradição entre discurso e prática, seu apego à institucionalidade e sua submissão e dependência da lógica formal (Santos, 1995) –, mantém uma vulnerabilidade confortável em tempos de condução hegemônica ou de crítica abrangente. Neste contexto comumente chamado de « neoliberal », ou de « consenso », vale refletir sobre a necessidade do « ajuste intelectual » para preparar ou mesmo corrigir as condições de totalização das formas inovadoras da exploração do trabalho vivo pelo capital (Arantes, 1995-1996). Entendido por aí, não se estranha a vaguidade do escopo da própria Geografia como um todo. Contudo, há novidades a ser desvendadas neste trajeto.

19Uma evidência da extensão do vão da profissão de professor de Geografia, que começa interferir sobremaneira no escopo do próprio conhecimento geográfico, é impelida pela ponta das determinações instituidoras do fazer geográfico. A avaliação, como construção de uma visibilidade para a gestão da Educação – estatista portanto – vista como investimento da sociedade através do Estado, achega à condição de indutora e normatizadora da atividade profissional, pois que vislumbrada como a legitimação da qualidade dos(per)cursos da instrução regular – escolar e universitária. Tal inversão é flagrante por exemplo nas Diretrizes para a Elaboração do Exame Nacional de Cursos –o « Provão » –, que determinam dimensões externas ao desenvolvimento do próprio conhecimento para compor um espectro – fantasmagórico mesmo – constituinte da educação como relação social. A requisição de posturas de « solidariedade » e « empreendedorismo » revelam submissão aos desígnios nascidos fora da Geografia e mesmo da sua relação histórica com a sociedade, pois que não consideram o debate próprio de tal conhecimento específico nas suas inserções assumidas no contexto social brasileiro (Alves, 2003). Trata-se de evidência da transformação em « organização » dos meios institucionais da formação, da Universidade, enfim. Aparentemente, por enquanto significa uma totalização da opacidade política do(s) processo(s) educacional(is), haja vista a imposição total – embora nada para o ser humano seja absoluto – de uma racionalidade determinante no nível da norma para instituir definitivamente o próprio modo de ser professor.

Considerações finais

  • 10 O conceito de « classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho » foi desenvolvida a fim de tornar mai (...)

20Não faltam exemplos para se refletir acerca do imbroglio em que a Geografia se encontra. Porém, acompanhando os alertas dos mais atentos aos sentidos da política educacional vigente, cabe uma alusão à questão que tem significado o extremo da intervenção de Estado na educação brasileira: a avaliação. Considerando que os expedientes estatistas rumam para conduzir autoritariamente o todo da sociedade – e não « prepará-la » para a jornada da democracia –, há que se entender não só os meios pelos quais se impõe um projeto de disciplina científica e escolar, mas seus fins. Na fase crítica do capitalismo real, vê-se que o aumento e a intensificação da excludência – evidência da proletarização capitalista – corroem as bases sociopolíticas dos movimentos sociais mais críticos e combativos devido ao temor da perda dos mínimos acessos aos meios e à precária inserção nos elementos do mundo moderno (Frigotto, 1996; Gentili, 2002). Daí a aceitação dos termos impostos pelos (des)mandos do desenvolvimento do capital, que dividem o trabalho e por conseguinte quebram as identidades históricas na/da classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho agora em « novas » bases, mais profundas e mesmo totais aponto de se arvorarem em única racionalidade viável no que se (re)conhece como mundo contemporâneo10. Apesar da permanência da Educação como formação de capital – um continuum do mundo dito moderno –, residem na totalização do trabalho abstrato que virtualiza a vida – e assim pretende para a educação e a Cultura – as « novidades » nos/dos desafios da formação do professor de geografia, e é precisamente daí que devemos refletir sobre o que queremos como entes humanos a se tornarem seres, sem nenhum constrangimento de qualquer ordem, sem nenhum medo da própria emancipação.

21Se por enquanto fica a ignorância quanto à relação– o desejo – do invisível, que o gosto pelo gelo – representado como inodoro, insípido, transparente, e daí não ser reconhecido de imediato – faça alguma diferença no sortilégio de coisas que se apresentam nesta geladeira em que se tornou o mundo contemporâneo.

Topo da página

Bibliografia

ALVES, William Rosa. Encruzilhadas para a Geografia como conhecimento superior. Revista de Geografia, Dourados, MS, ano IX, n. 17, p. 23-28, jan./jun. 2003.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 3 ed. São Paulo: Boitempo, 2000.

ARANTES, Paulo. O ajuste intelectual. Entrevista concedida a Fernando Haddad e Jorge Almeida. Teoria & Debate, São Paulo, n. 30, p. 69-76, nov./dez. 1995– jan. 1996.

BERMANN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

BRITO, Alexsandro de Souza. O crescente interesse do Banco Mundial pela educação no Brasil: razões explicativas. Universidade e sociedade. São Paulo, ano XI, n. 26, p. 83-96, fev. 2002.

CAMPOS, Rui Ribeiro de. O golpe nas ciências humanas: 1964 e os estudos sociais. Geografia, Rio Claro, v. 27, n. 3, p. 29-70, dez. 2002.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000. (História do Povo Brasileiro, 1)

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 9a. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

CHAUÍ, Marilena. A Universidade pública sob nova perspectiva. Conferência de Abertura do Encontro Anual da ANPEd, Poços de Caldas, 5 out. 2003. (inédita)

DIAS, Edmundo Fernandes. Cidadania e racionalidade de classe. Universidade e Sociedade, São Paulo, ano VI, n. 11, p. 130-139, jun. 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 14ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. (O Mundo Hoje, 21)

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1996.

GENTILI, Pablo. Três teses sobre a relação trabalho e educação em tempos neoliberais. (Estudo Três) In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval; SNAFELICE, José Luís (orgs.). Capitalismo, trabalho e educação. Campinas: Autores Associados/Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil – HISTEDBR, 2002, p. 45-59. (Coleção Educação Contemporânea)

LACOSTE, Yves. A geografia – isso serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988.

LEFÈBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.

LEFÈBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

PLANO Nacional de Educação: proposta da sociedade brasileira. Belo Horizonte, 1999.

SANTOS, Douglas. Conteúdo e objetivo pedagógico no ensino da Geografia. In: Dossiê Geografia e Ensino. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 17, p. 20-61, jul. 1995.

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: Hucitec, 1979.

SOUZA, Maria Inês (org.). Paulo Freire: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2001.

VESENTINI, José William. A formação do professor de Geografia – algumas reflexões. In: PONTUSCHKA, Nídia Nacib; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (orgs.). Geografia em perspectiva: ensino e pesquisa. São Paulo: Contexto, 2002.

Topo da página

Notas

1 Texto elaborado para exposição e debate na Mesa Redonda de mesmo nome no 7º. Encontro Nacional de Prática de Ensino de Geografia (7o. ENPEG) ocorrido em Vitória, ES, de 14 a 18 de setembro de 2003; agradeço o convite da Comissão Organizadora e os diálogos com partícipes da Comissão de Ensino da AGB-BH e em especial a Maria de Fátima Almeida Martins. Acrescentei algumas reflexões a partir dos debates atinentes à Docência na Geografia da UFMG – inclusive com aportes críticos da companheirança do movimento docente de alhures no Brasil – e à militância na Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – em Belo Horizonte e os laços por aí mantidos.

2 É imprescindível o esclarecimento do percurso entre a abstração positiva – as bandeiras da modernidade – e a sua realização negativa – a reiteração da divisão do trabalho centrada na industrialização –, que em nome do « progresso » secundariza e até reduz a possibilidade de socialização daquelas (Lefèbvre, 1999 e1991).

3 Para as reflexões propulsoras de práticas que contribuem para o esclarecimento e a superação de tais condições, tendências e sentidos da educação, é mister o (re)conhecimento da obra de Paulo Freire (Freire, 1985; Souza, 2001).

4 Sobre imposição da representação dos interesses dos dominantes no Brasil, veja-se Marilena Chauí (2000).

5 Na contracorrente das teses sobre o deperecimento do trabalho como centralidade da vida humana, Ricardo Antunes (2000) afirma que não há como o capital se reproduzir sem a mais-valia, ou seja, sua existência depende imprescindivelmente do trabalho vivo, dos entes humanos. Assim, o malfadado « desemprego » é até condição para o acirramento da exploração daqueles que estão empregados, pois estes lidam com a ameaça de dispensa da condição que lhes significa a manutenção da vida numa sociedade totalmente monetarizada.

6 Marshall Bermann (1998, p. 91 ss.) relaciona a modernidade e a modernização à celebração da vida activa postulada contra o antigo regime e pelo « progresso », por meio do axioma de que « a atividade humana é capaz ».

7 A matriz das habilidades e competências constitui o todo do trajeto das políticas educacionais do período recente, a partir dos acordos e feições das políticas educacionais em todo mundo lastreadas pelos desígnios impingidos pelo Banco Mundial. No caso brasileiro, encontra-se nos documentos de Estado-nação para as « mudanças » na educação em todos os níveis e modalidades, fato observável nos diversos Parâmetros Curriculares Nacionais e Diretrizes Curriculares Nacionais.

8 Gaudêncio Frigotto (1996) analisa amiúde a pretensa fundamentação da educação brasileira a partir das elaborações centradas na « teoria do capital humano ». Uma síntese acerca das determinações econômicas para as « políticas educacionais » brasileiras encontra-se no Plano Nacional de Educação: proposta da sociedade brasileira (1999), e uma crítica a tais determinações podem ser vistas em Alexsandro Brito (2002).

9 A partir das provocações do debate na própria referência principal da geografia brasileira, a França, a recepção das obras de Yves Lacoste (1988) e Milton Santos (1979) animou intensa crítica à trajetória e às perspectivas da geografia e seu ensino, visíveis panoramicamente na revista Terra Livre n. 2 (1987).

10 O conceito de « classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho » foi desenvolvida a fim de tornar mais preciso e quiçá eficaz na compreensão das relações ditas genericamente como « mudanças no mundo do trabalho », « sociedade pós-trabalho » e quejandos. Contribui, por exemplo, para a superação dos limites da expressão adjetivizadora « classe trabalhadora », quase sempre apropriada no sentido da moral e assim com os riscos da insuficiência de entendimento da totalidade social e da antipolítica (Antunes, 1995).

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

William Rosa Alves, «A política educacional brasileira e os novos desafios da formação do professor em geografia»Geografares [Online], 4 | 2003, posto online no dia 30 setembro 2003, consultado o 11 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/22775

Topo da página

Autor

William Rosa Alves

Mestre em Geografia; Professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IGC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Coordenador da Comissão de Ensino da Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Seção Local de Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search