Navegação – Mapa do site

InícioNuméros4HomenagemHomenagem a Octavio Ianni

Homenagem

Homenagem a Octavio Ianni

Thimóteo Camacho

Texto integral

1O Brasil perdeu o seu mais importante sociólogo em atividade e a esquerda se vê privada de um dos mais coerentes intelectuais socialistas: vitimado por um câncer, morreu em São Paulo, aos 77 anos, Octavio Ianni. Crítico contumaz da atual conjuntura sociopolítica brasileira, o professor Ianni foi um dos poucos representantes da intelectualidade nacional que levantou a voz contra a incorporação do país ao modelo neoliberal de adesão à globalização.

  • 1 Entrevista concedida a Regis Mallmann para o jornal A Notícia, Florianópolis.

2Como um dos principais estudiosos e intérpretes do Brasil, Octavio Ianni ensina em seus livros que o país ainda é marcado por resquícios de escravagismo, mantendo um sistema de superexploração e de concentração da renda em que as classes dominantes, agrárias e urbanas (burguesia latifundiária, industrial e financeira) mantêm privilégios em detrimento da grande maioria da população. A superação dessa situação só será possível em torno de um projeto nacional, como o que ocorreu em 1930, interrompido pela ditadura de 1º de abril de 1964. « A ditadura literalmente degolou lideranças e organizações políticas comprometidas como projeto nacional. Dois exemplos são Juscelino Kubitschek e Celso Furtado, grandes símbolos do projeto do capitalismo nacional que foram cassados… Fernando Henrique Cardoso, quando deixar o poder, pode escrever um novo livro, « Teoria da dependência perfeita », como responsável por ter realizado o desmonte final do projeto nacional que vinha sendo desenvolvido havia décadas. »1

  • 2 Leandro Konder, Jornal do Brasil, 10/4/2004.

3A ditadura militar, especialmente o « golpe no golpe » e sua criatura mais nefasta, o AI-5, causou grandes estragos em todos nós brasileiros. Muitos migraram da esquerda para o centro (e alguns até para a direita). Muitos desanimaram. Octavio Ianni não vacilou; permaneceu na linha de frente do combate à ditadura, fiel a seus princípios, coerente com suas convicções políticas. « Num tempo como este, em que estamos mergulhados, agora, convivendo com procedimentos científicos que se pretendem ‘neutros’, ‘assépticos', ele, com certeza, vai fazer muita falta. Resta-nos a esperança de que a sua lição de inconformismo, de rebeldia e de combatividade não venha a ser esquecida. »2

4Octavio Ianni graduou-se pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), onde obteve o grau de mestre, em 1956, com a dissertação Raça e mobilidade social em Florianópolis. Obteve o título de doutor defendendo a tese O negro na sociedade de castas, em 1961. Apresentou atese de livre-docência na USP, em 1964, com a pesquisa « O Estado e o desenvolvimento econômico no Brasil ».

  • 3 Folha de S.Paulo, 5/4/2004.

5Discípulo de Florestan Fernandes, Octavio Ianni é, juntamente com o mestre e Caio Prado Jr., um dos pioneiros da utilização do método dialético na análise dos fenômenos históricos e na interpretação da realidade política, social e econômica do Brasil. Pertenceu a uma geração de professores da USP que foi decisiva na consolidação dos estudos sociológicos e dos problemas brasileiros. Em 1969, foi aposentado compulsoriamente pelo AI-5. Lecionou na PUC-SP e na UNICAMP, universidade onde trabalhou até poucos dias antes de morrer. « Ultimamente andava muito animado. Deu uma aula inaugural belíssima na Filosofia (USP) », disse José de Souza Martins3.

  • 4 Organizado por Thimoteo Camacho (Vitória: EDUFES, 1993).

6Entre os seus livros publicados, pode-se destacar: O colapso do populismo no Brasil (Civilização Brasileira, 1968); Ensaios de sociologia da cultura (Civilização Brasileira, 1993); Teorias da globalização (Civilização Brasileira, 1999); A formação do Estado populista na América Latina (Civilização Brasileira, 1975); Teorias da estratificação social (Editora Nacional, 1978); O ciclo da revolução brasileira (Vozes, 1984); Estratificação e desenvolvimento social no Brasil (Civilização Brasileira, 1963); Teorias de estratificação social: leituras de sociologia (Editora Nacional, 1978); Sociologia da sociologia latino-americana (Civilização Brasileira, 1971); Revolução e cultura (Civilização Brasileira, 1983); Florestan Fernandes (Ática, 1986); Enigmas da modernidade-mundo (Civilização Brasileira, 2000). Publicou também um grande número de artigos e capítulos de livros, entre os quais Raízes da violência, um dos últimos e talvez o seu último trabalho publicado4.

O mundo depois de 11 de setembro de 20015

  • 5 Anotações de Thimoteo Camacho da Conferência pronunciada pelo Professor Octavio Ianni na SBPC, em G (...)

7Vou fazer uma análise científica dos acontecimentos de 11 de setembro que não tem medo das implicações políticas.

8Trata-se de um acontecimento excepcional. Esse acontecimento excepcional permite uma reflexão científica para entender o mundo em que vivemos e também projeta a compreensão para o futuro. O acontecimento do dia 11 de setembro indica que o futuro já está presente, bem como lembra acontecimentos do passado remoto e recente.

9É importante porque põe em causa a globalização. Nós, nas ciências sociais, não temos laboratório, mas acontecimentos como esse são o nosso laboratório.

10Vamos aos fatos: foi um « ataque terrorista » que fez desabar o World Trade Center e também um ângulo do Pentágono, que foi reduzido a um « quadrilátero » (sic!). É também significativo o fato de que até hoje não se sabe quem foi ou quais foram os responsáveis pelo ato. Foi planejado na Alemanha? Não se sabe. Talvez as autoridades norte-americanas saibam, mas não revelam.

11Além de um ato « terrorista », foi também um ato POLÍTICO. Na perspectiva do governo norte-americano, também terrível e perigoso, o que justifica a implantação da JUSTIÇA INFINITA. A partir de então todos hoje estamos em guerra. Vale a pena reconhecer que se tratou de um ato terrorista/ato político e que desencadeou uma desordem mundial.

12Da perspectiva da geopolítica norte-americana são elaborados planos de retaliação. Mas os jornais já dizem e diziam que o plano para atacar o Iraque, por exemplo, já está montado. O ato de 11 de setembro veio a fortalecer esse plano.

13A geopolítica e a postura da retaliação inventaram o EIXO DO MAL. Será que nós somos do bem ou do mal? Eu não sei. Vocês sabem?

14Outra lição que podemos tirar do acontecimento é o fato de que a maior potência imperialista mundial é vulnerável. Isso foi constatado de forma incontestável. Por isso podemos considerá-lo também um ato REVOLUCIONÁRIO. Desmontou o mito da inviolabilidade e invencibilidade no seu próprio território e partir do seu próprio território.

15Por isso, podemos considerar como fundamentalmente três os significados do 11 de setembro:

  • Ato terrorista

  • Ato político

  • Ato revolucionário

16Faz tempo que a supremacia norte-americana tem estabelecido para o mundo como o mundo deve se organizar e funcionar, tanto econômica, como politicamente. E os métodos usados são tanto legais como ilegais. Por exemplo, quem derrubou o governo legítimo de João Goulart no Brasil em 1964? Quem derrubou o governo da Guatemala em 1954? Foi a CIA, com a colaboração de forças e organizações internas. Quem derrubou o governo de Sukarno na Indonésia em 1965? Foi a CIA, assumidamente. Quem acabou com a história de uma das páginas mais bonitas da América Latina, como a experiência chilena do governo Allende? Foi a CIA, sob a inspiração de Henry Kissinger.

17Faz tempo que a geopolítica norte-americana tem agredido todas as tentativas de alternativas do mundo que não se enquadrem nas suas imposições.

18Então somos obrigados a reconhecer que os acontecimentos do 11 de setembro não significam uma loucura. Significam sim a reação ao dilapidamento de muitos projetos autônomos.

19Observamos no ambiente terrorista da geopolítica norte-americana e de seus aliados da Europa Ocidental e parte da Ásia, em especial o Japão, uma ação sistêmica e em rede. O que aconteceu no dia 11 de setembro de 2001 tem a ver diretamente com a Guerra do Oriente Médio e também tem a ver com os Chiapas mexicanos.

20Um argumento que se tem usado até cansar na mídia é o chamado « choque de civilizações »: o « obscurantismo » do Islão, por exemplo. Isso não significa nada mais do que a derivação de um antigo elemento da ideologia norte-americana que opõe Ocidente a Oriente. Trata-se de escolher um novo inimigo. As elites e a maioria da população norte-americana teleguiada sabem quem é esse inimigo: os terroristas, o terrorismo.

21Também o atual governo da Venezuela do presidente Hugo Chaves está sendo satanizado pelos Estados Unidos e pela imprensa dos países « aliados », como a « nossa » grande imprensa, por propor um projeto nacional e não-alinhado.

22O ato de 11 de setembro pode ser, também, entendido como mais um capítulo da revolta contra o « Ocidente ». O que foram as lutas pela independência das nações latino-americanas senão uma revolta contra o « Ocidente »? Então, o ato de 11 de setembro é mais uma manifestação da revolta contra o « Ocidente ». Mao, Fidel, Mandela e outros tentaram achar lacunas para um desenvolvimento do tipo nacional. Do mesmo modo, Tupac Amaru, Sandino.

23Ocorre que a luta e a resistência não se restringem ao Ocidente, que é uma civilização muito rica, mas ao Ocidente capitalista. As torres gêmeas e o pentágono foram atacados por serem símbolos do capitalismo e não do Ocidente.

24Pensemos nisso: todos nós somos órfãos de uma experiência lindíssima que ia se desenvolvendo no Chile de Allende e na Nicarágua Sandinista. E quero ir mais longe: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que foi derrotada é aquela que estava preparando uma nova experiência de democracia socialista. E devemos lembrar o assassinato de Lumumba pela CIA. A « guerra fria » nos levou a frustrações. Só a resistência é a alternativa para viver e pensar outros modos e não apenas o neoliberalismo.

25Acho que já podemos pensar que está em causa o declínio da supremacia norte-americana. Os europeus já estão inquietos. Há um profundo mal-estar na Europa em função do início desse declínio. A própria Arábia Saudita, que tem o apoio norte-americano, também já se inquieta.

26As tensões se multiplicam. É preciso desmentir: não é verdade que o mundo está em guerra. É mentira: a humanidade não está ameaçada! Não existe ou só existe na criação artificial dos norte-americanos a idéia de EIXO DO MAL. A humanidade não está ameaçada. Ou melhor: tem estado ameaçada, mas exatamente pela geopolítica dos Estados Unidos.

27E há um elemento novo: as fraudes e as quebradeiras. Mais um escândalo está em curso nos Estados Unidos, envolvendo o próprio presidente da república e seu vice. Isso é mais uma prova de que o capitalismo está sendo posto em causa. Uma supremacia que explode devido aos seus excessos, devido à arrogância.

28Parte do que falei hoje está baseado em argumentos críticos dos próprios norte-americanos, como Chomsky e Fulbright. Este último, nos anos 1960, já criticava a arrogância norte-americana como uma espécie de subproduto do « espírito puritano ». A « Cruzada Puritana », no seu entender, tinha muito a ver com os acontecimentos trágicos da vida norte-americana.

Topo da página

Notas

1 Entrevista concedida a Regis Mallmann para o jornal A Notícia, Florianópolis.

2 Leandro Konder, Jornal do Brasil, 10/4/2004.

3 Folha de S.Paulo, 5/4/2004.

4 Organizado por Thimoteo Camacho (Vitória: EDUFES, 1993).

5 Anotações de Thimoteo Camacho da Conferência pronunciada pelo Professor Octavio Ianni na SBPC, em Goiânia, em 11/7/2002.

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Thimóteo Camacho, «Homenagem a Octavio Ianni»Geografares [Online], 4 | 2003, posto online no dia 30 setembro 2003, consultado o 18 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/22820

Topo da página

Autor

Thimóteo Camacho

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFES e membro do Conselho Editorial da Revista Geografares

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search