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A migração para o litoral: o caso dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST)

Cláudio Luiz Zanotelli

Resumos

Trata de uma abordagem qualitativa à imigração dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica do Tubarão (CST), localizada na aglomeração de Vitória (ES). Procura compreender as trajetórias migratórias de uma parte dos assalariados até chegar à empresa e, conseqüentemente, à aglomeração de Vitória. Discorre sinteticamente sobre as origens, o capital socioeconômico e as diversas trajetórias socioprofissionais de um grupo de migrantes que acederam ao trabalho nessa empresa.

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Notas do autor

Artigo retirado da tese do doutorado intitulada O pólo de Tubarão e a expansão periférica da aglomeração de Vitória, apresentada na Universidade de Nanterre –Paris X para a obtenção e o título de doutor em Geografia e defendida em março de 1998.

Texto integral

Introdução

1No Brasil, a Nação construiu-se através das cidades localizadas na costa ou nos vales, lugares de drenagem da produção e de penetração das expedições de conquista do território. A nação consolidou-se com o controle do território exercido pelo Estado, pelos grandes proprietários e pelas empresas localizadas nas cidades. A concentração da propriedade da terra foi desde sempre o nó da questão nacional e, em conseqüência, um dos fatores centrais que influenciaram e influenciam as migrações.

2Os dominantes sempre trataram a questão da ocupação do espaço no Brasil como uma ideologia que pretendia fundar a nação através de discursos de integração do território, muito mais que através da integração dos diferentes povos que aqui viviam. Isso é uma demonstração clara da base sobre a qual (o patrimonialismo) se constituiu o Estado-Nação brasileiro. Essa apropriação indevida da terra está nos fundamentos dos clientelismos que proliferaram no Brasil e que se encontram na raiz de nossa paisagem rural e urbana.

3A citação que segue ilustra bem o desumanismo e a exclusão do lugar aos quais é relegada a parte dos « desafiliados » da sociedade brasileira, sociedade que optou pela construção do território mais que pela constituição do homem e do cidadão:

A imagem do « país em construção », com uma formação territorial ainda inconclusa, estimula em muitos expedientes de controle social. Historicamente, sempre que a população aparece como empecilho à acumulação, a solução implementada se dá pela eliminação do elemento de atrito. Até hoje se reproduzem os mecanismos, apontados por Florestan Fernandes, da « reação tribal à conquista »: aniquilamento, fuga para oeste ou submissão ao explorador. Assim, vai sedimentando-se uma ótica, ao nível das classes dominantes, declaro conteúdo anti-humano, onde o país é identificado com o seu espaço, sendo a população um atributo dos lugares. (Moraes, 1996, p. 98)

4Em função, de um lado, da forma de expansão e da integração do território brasileiro (comandada pelas cidades) e, de outro lado, da evolução contemporânea da rurbanização, as oposições entre o espaço rural e o urbano não são mais de natureza irredutível, mas de complementaridade e dependência. Depois de uma consolidação do território, efetuada pela malha de redes de comunicação, esses dois espaços se interpenetraram ainda mais.

5Na frase socioespacial brasileira, os verbos são a Casa Grande e o Sobrado e os sujeitos, a senzala e os mucambos, as favelas, as palafitas, os morros e as periferias. Para os primeiros, um sentido estrutural dominante; para os segundos, uma polissemia de lugares indefinidos.

6Essa é a matriz do controle social e político da sociedade brasileira. É sobre ela que se bordam os discursos planificadores e desenvolvimentistas, as políticas de migração e de expansão.

7Buscando uma articulação orgânica do conjunto da nação que tentasse preencher o abismo entre os dois mundos da frase socioespacial (verbos e sujeitos), desenvolveu-se uma prática discursiva sobre a unidade das diferentes classes. Essa « unidade » nasceu sob os auspícios da « identidade » regional e da aliança nacional das diferentes regiões. Mas, com o advento da modernização, essa regionalização foi apagada por meio da unificação do espaço pela mercadoria, porém ficou viva nos espíritos e nas práticas socioespaciais. Hoje, com a crise, ao contrário de ontem, os centros dinâmicos da economia do País já não mais desejam os impertinentes migrantes. A diferença antes elaboradora de uma diversidade e de um mundo da mestiçagem serve como depositário de todos os estigmas. Dispositivos discursivos que estruturam a prática da discriminação e dos ônibus abarrotados de migrantes expulsos de São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, etc. sob as ordens dos poderes constituídos.

8Os dramas das migrações e as diversas estratégias organizadas pelos migrantes são muito menos mediáticos e sensacionais do que se pode imaginar. As migrações são plurais, diversas, temporais e não unívocas. Elas se fundam sobre a solidariedade familiar e/ou de amigos, conterrâneos e companheiros de infortúnio. Calcadas sobre redes empíricas inscritas no espaço (a malha ferroviária e, sobretudo, rodoviária), elas são o efeito de um conjunto de políticas implícitas e explícitas, levadas ou não a cabo pelo Estado e pelas empresas privadas.

9As populações armam suas estratégias de maneira relativamente independente. Mas essas estratégias são sempre condicionadas pela lógica de pólos de atração que constituem as bacias de emprego e pela lógica da repulsão que constitui a mutação do espaço rural.

  • 1 IBGE. Brasil em números. Rio de Janeiro,1994. v. 3, p. 19-21.

10O deslocamento dos migrantes entre os espaços rurais e urbanos é fruto desses mecanismos descritos mais acima e do nomadismo de uma parte da população brasileira em busca permanente de um trabalho: entre 1970 e 1980, 14 milhões de brasileiros saíram do mundo rural para o mundo urbano e 2 milhões fizeram o caminho inverso. Em 30 anos, entre 1960 e 1991, as proporções da população rural e urbana se modificaram completamente no Brasil: passamos de uma situação equilibrada em 1960, quando 55% da população morava na zona rural e 45% nas cidades, a uma situação preocupante em 1991, quando 75,5% da população vivia nas zonas urbanas.1

  • 2 Santos, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 77. Ver também: IBGE. Anuários es (...)

11Com um estatuto precário, os migrantes mudam de maneira freqüente de domicílio. Isso provoca uma mobilidade demográfica importante dentro das cidades e entre as cidades. Dessa forma, 35% da população migrante de São Paulo, 31% da do Rio de Janeiro e 40% da de Belo Horizonte mudaram de domicílio num período entre 1 e 5 anos.2

12Como já dissemos, os processos migratórios são múltiplos e diferenciados. As experiências de cada migrante são singulares, porém um certo número de regularidades pode ser observado quando estudamos mais de perto certos fenômenos migratórios. Tendo tido a possibilidade de realizar um estudo qualitativo sobre os trabalhadores de uma grande empresa siderúrgica, localizada na aglomeração de Vitória, pudemos analisar as redes de migração que uma parte dos assalariados utilizou para chegar à empresa e, conseqüentemente, à aglomeração de Vitória. Assim, procuraremos discorrer sinteticamente sobre as origens, o capital socioeconômico e as diversas trajetórias socioprofissionais de um grupo de migrantes que acederam ao trabalho em uma grande empresa. A visão é parcial e limitada no tempo e no espaço.

13Não pretendemos aqui, dados os limites do trabalho, abordar o modo de inserção urbana desses migrantes, análise que remeteremos para mais tarde, de modo que, no que se segue, procuramos simplesmente entender o movimento dos migrantes em um espaço social abstrato (história e ciclos de vida) e concreto (vias de acesso, lugar de partida, lugar de chegada, atrações salariais, etc.).

A Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST)

14A CST, localizada no pólo do Tubarão, na extremidade oriental da baía do Espírito Santo, entre os municípios de Vitória e Serra, possui diversas unidades industriais e está instalada sobre uma superfície de 876 hectares. Começou a ser construída no fim dos anos 70 e foi concluída em 1983. O investimento na obra foi de 3,18 bilhões de dólares (financiada na altura de 63% por capitais japoneses, 31% por capitais italianos e somente 2% por capitais brasileiros). Os associados estrangeiros investiram na usina a fim de vender seus equipamentos e tecnologia bem como de tomar uma posição no mercado « emergente » da América Latina. A empresa era controlada pelo Estado e foi privatizada em 1992. O valor da participação do Estado – que detinha 89% do capital da empresa – foi vendido por 174 milhões de dólares, ou seja, valor equivalente ao estoque emplacas de aço que a empresa possuía na época (171 milhões de dólares).

15A operação de privatização foi um excelente negócio para os banqueiros (Bancos Bolzano-Simonsen e Unibanco) e outros acionários (principalmente a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD) que assumiram seu controle, pois o Estado absorveu praticamente toda a dívida da CST com as empresas e com os bancos multinacionais. A CST continuou vendendo bem os seus produtos (o faturamento bruto da empresa foi de 942 milhões de dólares em 1997) e, em função disso, pôde se modernizar e renovar as suas unidades industriais.

16A usina destina 90% de sua produção para mercados externos, principalmente Ásia (43%), Estados Unidos (24,4%) e Europa (10%). Produz anualmente 3,5 milhões de placas de aço bruto. Essas placas são a matéria-prima de outras indústrias siderúrgicas, que vão retrabalhá-las. O produto final é utilizado principalmente na indústria automobilística, naval, na construção civil e em tubos para gasodutos e oleodutos. Atualmente está em construção um Lingotamento de Tiras a Quente (LTQ), que fabricará aço acabado para a indústria em geral e para a indústria automobilística em particular.

17Antes da privatização, a empresa empregava 9.863 trabalhadores, dos quais 5.863 eram assalariados próprios e perto de 4 mil, trabalhadores de empreiteiras. Hoje ela emprega somente 3.348 assalariados próprios, dos quais 75%são operários (especializados e não-especializados). Quanto aos trabalhadores das empreiteiras, o número hoje é muito variável e depende das obras de construção e manutenção que a empresa realiza (podendo variar, em média, de500 a 3.000 trabalhadores). Recentemente, a CST divulgou na imprensa que estará admitindo provisoriamente 3.000 trabalhadores, para a construção e instalação da unidade de LTQ. A direção da empresa lembrou que dará prioridade aos desempregados que moram no município da Serra, provavelmente muitos ex-assalariados da CST demitidos nos inúmeros planos de « reestruturação » que a empresa realizou depois de 1992.

  • 3 cf. CST, 1992 e Morandi, 1998.

18Logo depois da privatização, parte dos operários demitidos da CST foram substituídos por trabalhadores de empreiteiras (muitas vezes ex-assalariados da CST) que atuavam diretamente na produção e/ou através de horas extras efetuadas pelos trabalhadores da própria empresa e, em parte, por estagiários e aprendizes. Para se ter uma idéia da redução do número de trabalhadores diretos e indiretos (assalariados da CST e de empreiteiras) na CST em 10 anos, basta conferir os seguintes dados: em 1989 a CST empregava perto de 12 mil trabalhadores: 6 mil assalariados próprios e 6 mil trabalhadores de empreiteiras.3

A CST e a migração na Aglomeração de Vitória

19A aglomeração de Vitória é formada por 5 municípios (Cariacica, Serra, Vila Velha, Viana e Vitória). A aglomeração tinha 331 mil habitantes em 1960, 706 mil em 1980, 1,06 milhão em 1991 e 1,182 milhão de habitantes em 1996. Em 36 anos a população foi aumentada 3,6 vezes. A superfície da aglomeração corresponde a 3,2% do território do Espírito Santo e cada município apresenta densidades variadas (Tabela 1).

TABELA 01: Superfície e densidade dos municípios da aglomeração de Vitória (1996)

TABELA 01: Superfície e densidade dos municípios da aglomeração de Vitória (1996)

Fonte: IBGE, 1996, DEE-ES, 1994
(*)1 hectare = 10.000 m
2

20A Serra, situada ao norte da aglomeração, onde se encontra a CST bem como a maior parte da grande indústria da região da capital, teve sua população aumentada 3,3 vezes em 16 anos, passando de 82 mil habitantes em 1980 a 270 mil em 1996. Um pouco mais de 39% do crescimento da aglomeração, entre 1980 e 1996, realizou-se nesse município. Porém a densidade populacional da Serra (4,9 habitantes por hectare) é a segunda menos importante da aglomeração, somente perdendo para Viana. Isso se explica pelo fato de que a Serra tem uma grande superfície (39% do território da aglomeração) e de que existem ainda vazios urbanos importantes sobre seu território, o que é motivo de especulação fundiária.

21Durante as obras de construção da CST, entre 1978 e 1983, estimou-se em 25 mil o número de operários que trabalharam nos canteiros de obras da usina (dados da CST). A maioria dessa força de trabalho era constituída de migrantes do interior do Espírito Santo e de outros Estados, porém não existem dados disponíveis que nos permitam confirmar com precisão essa observação. No entanto certos estudos realizados nos anos 80 e 90 sobre as populações que viviam nas periferias da cidade (Doimo e Banck, 1989; Mongin,1992) convergem em relação à constatação supracitada. Uma pesquisa qualitativa que realizamos com uma pequena parcela dos trabalhadores da CST confirma igualmente a origem migrante da maioria desses trabalhadores.

  • 4 Idem.

22Esses trabalhadores, acompanhados das respectivas famílias, totalizariam uma população de 100 mil pessoas, se considerássemos uma média de 4 pessoas por família (média observada à época nas famílias que viviam na aglomeração). Essa população corresponde, somente para os trabalhadores ligados à construção da CST, a 28% do crescimento da população da aglomeração nos anos 80. Se acrescentássemos a esse contingente os trabalhadores que a empresa empregou mais tarde, na época em que a CST entrou em funcionamento, chegaríamos a uma população bem mais importante (em 1986, o total dos assalariados da empresa e das empreiteiras era de pouco menos de 12 mil trabalhadores)4, mas uma parte dos operários que construíram a CST foi trabalhar em outras empreiteiras e/ou na própria CST. Isso dificulta uma estimativa da população total que se teria deslocado, na primeira parte dos anos 80, para a aglomeração, em função da CST.

  • 5 CASTIGLIONI, Aurélia. Migration, urbanisation et développement : le cas del’Espirito Santo – Brésil (...)

23O movimento de migrantes observado na aglomeração de Vitória durante os anos 70 e 80 vem corroborar as observações realizadas acima a propósito da importância da população migrante na vida do aglomerado urbano. O crescimento demográfico da aglomeração durante esse período foi influenciado diretamente pelo saldo migratório. Entre 1970 e 1980, 70% do crescimento da população da aglomeração de Vitória deveu-se à imigração: um terço dos migrantes era originário de Minas Gerais.5

  • 6 IBGE. Anuário estatístico. Rio de Janeiro, 1993.

24Durante muito tempo, o Espírito Santo forneceu contingentes migratórios a outros estados. Porém, entre 1970 e 1980, houve um equilíbrio dos fluxos migratórios em relação a outros estados, na medida em que o Estado recebeu tantos migrantes quantos perdeu.6

  • 7 CASTIGLIONI, op. cit., p.108, nota 5.
  • 8 Ibid., p.109.

25Os dados sobre essa população migrante indicam uma maior qualificação e melhores salários para os migrantes vindos de outros estados7. Entre 1970 e 1980, a proporção da população economicamente ativa dos migrantes de outros estados trabalhando na indústria de transformação ultrapassava a dos trabalhadores nascidos no Espírito Santo.8

26O canteiro de obras da CST já havia começado nesse período e evoluía o emprego de uma mão-de-obra qualificada e de uma menos qualificada para as operações de montagem industrial.

  • 9 Ibid., p.100-110.

27O fenômeno de uma qualificação mais importante conjugada a um trabalho num setor em franca expansão (indústria de transformação da celulose, de pellets e de placas de aço), que não dispunha de uma força de trabalho suficientemente qualificada no Espírito Santo, permitiu a oferta de salários mais importantes para esses operários, técnicos e engenheiros migrantes, em relação aos ativos sedentários: na indústria de transformação, no período de 1970-1980, os salários dos migrantes operários de outros estados eram da ordem de 3,8 salários mínimos em média para os homens, ao passo que, para os operários sedentários homens, essa média era de 2,3 salários mínimos.9

Os caminhos migratórios dos trabalhadores da CST

28A fim de estudar os trabalhadores da CST, conseguimos obter diversas informações da empresa a propósito do conjunto de seus assalariados, porém, no que diz respeito à origem dos trabalhadores, houve uma recusa da parte dos dirigentes de fornecer informações. Isso pode denotar uma certa apreensão da direção da CST quanto a ser acusada de responsável pela atração de migrantes para Vitória. Essa atitude indica de maneira implícita que a empresa adere aos discursos xenófobos da população local contra os imigrantes. Na realidade, o discurso xenófobo é a árvore que esconde a floresta da « desafiliação » social e que favorece a exploração dos migrantes, colocando-os numa situação de desestabilização emocional. Racismo, em parte encoberto, em que pessoas originárias de todas as partes do mundo (principalmente italianos, alemães, árabes, poloneses) desejam, consciente ou inconscientemente, ser contra aqueles que vêm de outros territórios brasileiros (caricatura das ondas fascistas européias contemporâneas). O racismo faz parte dos mecanismos de controle e submissão da força de trabalho. Os indivíduos que são vítimas desse fenômeno se sentem, às vezes, excluídos e estão prontos a aceitar qualquer tarefa e trabalhar por qualquer salário.

29Com o propósito de melhor conhecer os trabalhadores da CST e, no caso que nos ocupa aqui, conhecer suas trajetórias migratórias, realizamos histórias de vida com 33 assalariados da empresa (efetuamos, igualmente, 18 histórias de vida com trabalhadores das empreiteiras, porém não as analisaremos sistematicamente neste artigo).

30Os trabalhadores foram selecionados, de maneira aleatória, através de contatos com militantes do sindicato (Sindifer), do movimento associativo da Serra – município onde moram 36% dos trabalhadores da CST – e através de contatos com outros conhecidos que trabalham na empresa. Como não nos foi autorizado entrevistar os trabalhadores dentro da empresa, realizamos as entrevistas nos locais de residência dos mesmos.

31Por meio das entrevistas, pudemos traçar o percurso migratório dos trabalhadores de maneira detalhada. Porém, não pretendemos aqui alcançar uma representatividade estatística com esta amostra de entrevistados. Desejamos antes conhecer o perfil dos trabalhadores de maneira aprofundada e poder melhor compreender a lógica das migrações, sobretudo de trabalhadores de uma grande empresa como a CST.

32É bom lembrar, no entanto, que, segundo Bertaux (1980), as histórias de vida podem ser representativas quando, a partir de um certo número de entrevistas, o pesquisador tem a impressão de nada saber de novo sobre o objeto pesquisado. Nesse momento aparece o fenômeno da saturação. Para que isso aconteça, devemos diversificar ao máximo nossos informantes (o que acreditamos ter sido feito). Quando atingimos a saturação, temos uma base sólida para processar uma generalização. Nesse sentido, a pesquisa através da abordagem biográfica preenche a mesma função de representatividade das pesquisas clássicas.

33Para melhor compreender a imigração e as relações com o ciclo de vida dos entrevistados, utilizamos, de maneira parcial e limitada, o método de análise das relações entre ciclo devida e migrações proposto por Daniel Courgeau (Corgeau, 1984, p. 483-513).

34Esse autor criou um método estatístico com o propósito de estruturar as interferências entre os diferentes fatores (econômico, social e político) que podem provocar uma migração na vida de um indivíduo, tentando ligar o tempo de moradia de um indivíduo em uma dada localidade em função da etapa de seu ciclo de vida.

35As trajetórias migratórias foram classificadas como diretas e indiretas. As trajetórias diretas (10 migrantes) são aquelas dos trabalhadores que vieram diretamente dos municípios interioranos do Espírito Santo, a fim de morar na aglomeração de Vitória. As trajetórias indiretas (17 migrantes, sendo 1 do Espírito Santo) são aquelas dos trabalhadores que passaram por outros municípios do Espírito Santo ou de outros estados antes de se instalar na aglomeração de Vitória. Entre esses migrantes diretos e indiretos existem alguns que, depois de se terem instalado na aglomeração de Vitória, migraram novamente para outros estados e retornaram em seguida (migração complexa).

36Dos 33 entrevistados, 17 eram do Espírito Santo (6 da aglomeração de Vitória), 12 de Minas Gerais, 2 do Rio de Janeiro, 1 de São Paulo e 1 de Alagoas. Portanto, 27 dos entrevistados eram migrantes (Figuras 1 e 2).

FIGURA 01: Estados e municípios de origem dos trabalhadores da CST entrevistados

FIGURA 01: Estados e municípios de origem dos trabalhadores da CST entrevistados

Organização: Zanotelli, 1998.

FIGURA 02: Estados e municípios de origem dos trabalhadores das empreiteiras entrevistados.

FIGURA 02: Estados e municípios de origem dos trabalhadores das empreiteiras entrevistados.

Organização: Zanotelli, 1998.

37O número de postos de trabalho ocupados durante a vida ativa dos entrevistados antes de trabalharem na CST é um indicador que pode fornecer pistas a propósito das estratégias que os trabalhadores colocam em prática. Mas as declarações de empregos efetivamente exercidos são, às vezes, muito aproximativas. Diante da mobilidade dos trabalhadores brasileiros, a média que pudemos constatar de 4 postos de trabalho por entrevistado é muito baixa, o que pode significar que os entrevistados somente declararam suas principais atividades, não citando os postos de trabalho ocupados durante um curto período, bem como aqueles exercidos no mercado « informal ». A memória é seletiva e os trabalhadores, nas suas histórias devida, podem esquecer numerosos trabalhos efetuados durante a vida ativa, por causa, justamente, de sua forte mobilidade geográfica e estatutária. Desse modo, a mobilidade geográfica e profissional pode ser para esses trabalhadores muito mais importante do que deixam transparecer as declarações que eles efetuaram.

38Em sua maioria, os entrevistados tiveram uma experiência salarial antes de trabalhar na empresa, quer dizer, tiveram suas carteiras de trabalho assinadas pelo menos uma vez.

As trajetórias socioprofissionais dos migrantes

39A partir de um esquema simplificado das trajetórias migratórias pudemos identificar os principais setores de atividades e os lugares em que os entrevistados trabalharam antes de entrar na CST (Figura 3).

FIGURA 03: Esquema simplificado das trajetórias migratórias diretas e indiretas, segundo os principais setores de atividades, dos 33 entrevistados antes de trabalhar na CST.

FIGURA 03: Esquema simplificado das trajetórias migratórias diretas e indiretas, segundo os principais setores de atividades, dos 33 entrevistados antes de trabalhar na CST.

Organização: Zanotelli, 1998.

40Desses que trabalharam na aglomeração, dois terços atuaram em empreiteiras: 7 na própria CST e 4 em outras indústrias. Os demais trabalharam em outras indústrias localizadas na aglomeração. Dos entrevistados que trabalharam na aglomeração de Vitória antes de entrar na CST, um terço era originário de outros estados e a maioria já era qualificada antes de chegar à aglomeração.

41Os outros 8 entrevistados que haviam trabalhado em uma indústria e/ou empreiteira eram originários de outros estados (75% de Minas Gerais). Todos eles tinham trabalhado em uma usina siderúrgica ou em uma metalúrgica, antes de entrar na CST.

42Do que descrevemos acima pudemos concluir que a imensa maioria dos entrevistados era qualificada, tinha passado pela indústria e teve majoritariamente um emprego na indústria ou em empreiteira na aglomeração de Vitória antes de entrar na CST. Porém, mais da metade era originária de outros estados (14 sobre 26), sendo que uma parte veio diretamente da indústria onde trabalhava, em outro estado (8), principalmente da siderúrgica de Minas Gerais, para trabalhar na CST. Esses trabalhadores receberam ofertas irrecusáveis da CST que, além de oferecer salários bem mais altos do que os oferecidos pelas empresas de origem, financiou o transporte da família e a mudança para Vitória.

43A tabela 2 mostra que quase dois terços dos trabalhadores (incluindo os originários da aglomeração de Vitória) ocupavam postos qualificados na CST. A empresa teria sido, assim, de uma certa maneira, o ápice da carreira deles.

TABELA 02: Ocupação socioprofissional (OSP) dentro da CST dos 33 entrevistados.

TABELA 02: Ocupação socioprofissional (OSP) dentro da CST dos 33 entrevistados.

Ciclos de vida

44A imigração do conjunto dos trabalhadores entrevistados originários do Espírito Santo para a aglomeração de Vitória começou essencialmente no início dos anos 60 e foi até meados dos anos 70, época da grande crise do café que culminou com a destruição de 53% dos cafezais do Estado. Essa política atingiu sobretudo a região norte capixaba, região de influência da bacia do Rio Doce e do rio São Mateus, território de origem da maior parte dos entrevistados migrantes do Espírito Santo. Podemos supor, assim, que uma parte das famílias dos trabalhadores foi forçada a abandonar o campo por causa da reconversão em pasto e em monocultura de eucalipto das zonas plantadas em café, o que teve como conseqüência um processo de concentração fundiária acentuado no mesmo período.

45Contrariamente aos entrevistados migrantes do Espírito Santo, os migrantes de outros estados vieram para Vitória na época da implantação dos chamados « grandes projetos », sobretudo no fim dos anos 70 e a partir de 1983, época em a CST entrou em funcionamento.

46A média de idade dos imigrantes dos municípios do interior do Espírito Santo era de 10anos e a dos imigrantes de outros estados era de 25 anos. Isso indica as diferentes estratégias dos migrantes. Os originários do Espírito Santo imigraram cedo para a aglomeração juntamente com suas famílias e utilizaram solidariedades locais para se inserir no tecido urbano. Uma maioria era ainda criança quando imigrou. Puderam se adaptar à demanda local de uma força de trabalho qualificada, orientada para a siderurgia. Já os imigrantes de outros estados vieram em busca de um trabalho qualificado quando do desenvolvimento industrial da aglomeração. Por isso mesmo, a metade destes últimos já era casada quando veio para Vitória. Pudemos constatar, desse modo, uma coincidência entre ciclo de vida (idade, situação familiar) e trabalho. A propósito do casamento, verificamos que a quase totalidade dos entrevistados era casada (32); a maioria se casou na aglomeração e, principalmente, depois de ter sido admitida na CST. Isso pode nos levar à interpretação de que conseguir um trabalho estável, naquela época, era um dos fatores determinantes na decisão de contrair matrimônio.

A herança do capital cultural e econômico dos entrevistados

47A origem rural e urbana dos entrevistados foi analisada, em parte, a partir das atividades profissionais dos pais, para que se pudesse identificar o capital econômico e cultural de que cada um dispunha de início.

48As atividades agrícolas predominavam no conjunto das famílias (13 pais de entrevistados). Porém alguns pais possuíam uma certa experiência em profissões mais urbanas (perto de 6 tinham sido assalariados da CVRD nos setores de usinas e de manutenção de estradas de ferro). Os pais dos trabalhadores originários de outros estados, principalmente de Minas Gerais, haviam ocupado atividades mais variadas e mais urbanas que os pais dos trabalhadores do Espírito Santo, o que pode ser explicado por um tempo de experiência em zonas urbanas industriais mais importante desta população. Vale mencionar que o capital de experiência operária legado pelos pais a seus filhos parece ser limitado nos dois casos. No total, somente 8 pais tiveram uma experiência na indústria.

Considerações finais

49A existência de uma ligação ferroviária e rodoviária entre o vale do aço (vale do Rio Doce em Minas Gerais) e a aglomeração de Vitória favoreceu o deslocamento dos trabalhadores dessa região e a emergência de uma bacia de emprego.

50Antes de entrar na CST, praticamente todos tinham experiência no mercado de trabalho e a maioria, na indústria. Um rápido olhar sobre a profissão dos pais dos entrevistados mostrou que muitos eram camponeses e que os filhos, nesse sentido, incorporaram, como pudemos constatar, à cultura operária, elementos de uma cultura rural.

51A qualificação profissional dos migrantes foi decorrente dos diferentes ciclos de vida deles e das diferentes oportunidades de trabalho ofertadas. Os migrantes do Espírito Santo eram jovens, os de Minas Gerais mais velhos e qualificados.

52Produto de uma asserção contraditória do movimento do real, os migrantes de outros estados serviram de catalisadores de uma nova fase de aprendizagem técnica no Espírito Santo: novos cursos técnicos de nível médio (Senai, Escola Técnica) e universitários (diversas especializações em engenharia e administração) foram criados para responder à demanda de uma força de trabalho qualificada. Porém, essa nova etapa não favoreceu a consolidação de uma aglomeração industrial importante e a criação de postos de trabalhos significativos em outras empresas. Hoje encontramos trabalhadores qualificados (demitidos da CST) exercendo a função de vendedores ambulantes e aguardando a volta ao estatuto dourado do mercado de trabalho formal.

53A qualificação dos trabalhadores de outros estados, principalmente de Minas Gerais (vale do Rio Doce), superior àquela dos migrantes do Espírito Santo, contribuiu para que lhes fossem oferecidos melhores salários e assim abandonassem os postos de trabalho que eles tinham nas indústrias siderúrgicas e metalúrgicas do Vale do Aço. A CST desenvolveu uma política de recrutamento agressiva e de incentivo à migração de uma boa parte de seus trabalhadores qualificados.

54Os estatutos e salários diferenciados entre trabalhadores de Minas Gerais e do Espírito Santo foi, inicialmente, um motivo de atrito na luta por lugares dentro da empresa. Porém essas diferenças se reduziram com o tempo.

55A princípio, os gerentes (mineiros) eram ex-chefes e herdeiros de métodos de gestão da Usiminas, construída por japoneses no fim da década de 50, adotavam uma política de gestão centralizadora e autoritária, principal objetivo de críticas dos trabalhadores. Pelo fato de a maioria dos gerentes ser mineira (hoje a realidade não é mais a mesma) os trabalhadores originários do Espírito Santo, excluídos das promoções ou demitidos, culpavam os « mineiros » pela sua desgraça. Os entrevistados lançavam mão dos discursos xenófobos, que buscam justificar as situações sociais de desamparo, lançando a culpa sobre o Outro e não sobre a organização social. Eles aderem inconscientemente aos dispositivos discursivos dos dominantes.

56O método de gestão da CST é hoje um híbrido, inspirado ao mesmo tempo em mecanismos de controle da força de trabalho instaurados na Usiminas (centralizadores e autoritários) e de métodos ditos « modernos » ou toyotistas, de estímulo à participação dos trabalhadores, de flexibilidade e polivalência no exercício das tarefas de trabalho. Isso instaurou uma competitividade dentro da usina e, com a redução de efetivos, provocou uma precarização importante no estatuto dos trabalhadores, tanto dos originários de Minas Gerais como dos do Espírito Santo.

57A mobilidade geográfica e salarial é, antes de tudo, conseqüência de estratégias abertas nas quais os migrantes tentam colocar todas as chances a seu favor, o que em boa parte do tempo não conseguem. Isso é conseqüência de situações macrossociais, macroeconômicas e espaciais, provocadas pelas eternas crises conjunturais e estruturais do país.

58A fratura do espaço social no Brasil, pela qual os contingentes de migrantes traçam rotas, é também uma fratura do espaço geográfico. Os diferentes graus de possibilidades de ascensão ou de deslocação social fazem parte de um jogo cujo resultado é incerto. Nele entram em linha de conta as diversas dimensões socioespaciais do território brasileiro: possibilidades de deslocação, meios de deslocação, locais de recepção e relações nos pontos de chegada dos migrantes, políticas públicas, programas econômicos de desenvolvimento, etc.

59As possibilidades de trabalhos e de trajetórias múltiplas são uma ilusão de liberdade. Em numerosos casos, os trabalhadores estão numa situação de ascensão social e, repentinamente, por causa de crise ou de mudança dos paradigmas produtivos, encontram-se sem trabalho e desclassificados socialmente.

60O desejo de se encontrar algo melhor faz parte do imaginário que é estruturante e permite aos indivíduos se encontrarem em posição de linguagem. O imaginário abre o corpo do mundo dando à verdade tão sonhada (um trabalho estável e uma « nova » vida em um lugar distante) uma visão relativa, deixando a impressão de que « um dia a vida vai melhorar ». Esta peregrinação através do imaginário oferece a possibilidade da sedução de um espaço outro (um espaço fora do lugar), onde se possa encontrara felicidade, mesmo que ela seja sempre empurrada para mais distante, pois sempre se encontra a prova pelo real da impossibilidade de se encontrar o objeto no qual « acreditamos ». Como diz o poeta: tristeza não tem fim, felicidade sim!

61Acreditar em uma mobilidade social e em um movimento contínuo em direção de uma fronteira em expansão permanente (concreta e imaginária) é uma maneira de significar o impedimento de alcançá-la e de « não morrer de viver ». Como a Fênix que renasce de suas cinzas, os migrantes recomeçam sempre um novo ciclo com novas esperanças.

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Bibliografia

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Notas

1 IBGE. Brasil em números. Rio de Janeiro,1994. v. 3, p. 19-21.

2 Santos, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 77. Ver também: IBGE. Anuários estatísticos. Rio de Janeiro, 1993. p. 2-4.

3 cf. CST, 1992 e Morandi, 1998.

4 Idem.

5 CASTIGLIONI, Aurélia. Migration, urbanisation et développement : le cas del’Espirito Santo – Brésil. Bruxelles: Ciaco Editeur, 1989. Ver também: IBGE. IX Recenseamento do Brasil, . Rio de Janeiro,1980. v. 1, tomo 47, n. 17, Espirito Santo, p. 71-111.

6 IBGE. Anuário estatístico. Rio de Janeiro, 1993.

7 CASTIGLIONI, op. cit., p.108, nota 5.

8 Ibid., p.109.

9 Ibid., p.100-110.

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Índice das ilustrações

Título TABELA 01: Superfície e densidade dos municípios da aglomeração de Vitória (1996)
Créditos Fonte: IBGE, 1996, DEE-ES, 1994(*)1 hectare = 10.000 m2
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/23717/img-1.png
Ficheiro image/png, 28k
Título FIGURA 01: Estados e municípios de origem dos trabalhadores da CST entrevistados
Créditos Organização: Zanotelli, 1998.
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/23717/img-2.png
Ficheiro image/png, 124k
Título FIGURA 02: Estados e municípios de origem dos trabalhadores das empreiteiras entrevistados.
Créditos Organização: Zanotelli, 1998.
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/23717/img-3.png
Ficheiro image/png, 116k
Título FIGURA 03: Esquema simplificado das trajetórias migratórias diretas e indiretas, segundo os principais setores de atividades, dos 33 entrevistados antes de trabalhar na CST.
Créditos Organização: Zanotelli, 1998.
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/23717/img-4.png
Ficheiro image/png, 149k
Título TABELA 02: Ocupação socioprofissional (OSP) dentro da CST dos 33 entrevistados.
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/23717/img-5.png
Ficheiro image/png, 20k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Cláudio Luiz Zanotelli, «A migração para o litoral: o caso dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST)»Geografares [Online], 1 | 2000, posto online no dia 01 junho 2000, consultado o 22 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/23717

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Autor

Cláudio Luiz Zanotelli

Prof. Dr. no Departamento de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo

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