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Geomorfologia: abordagem sistêmica em uma microbacia

Lindinalva Mamede

Resumos

O trabalho discute inicialmente questões que envolvem as bases teóricas e conceituais da Geomorfologia. Posteriormente, ponteia alguns tipos de trabalhos desenvolvidos, considerando questões relacionadas com as bases metodológicas. Finalmente, discorre sobre os fundamentos teórico-metodológicos.

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Bases conceituais

1Os trabalhos clássicos de Davis (1894) e Penck (1953), representantes das escolas norte-americana e germânica, respectivamente, permitiram o lançamento sucessivo dos dois pilares da Geomorfologia: o conceitual e o metodológico.

2Na postura davisiana, o relevo seria decorrente da estrutura geológica, dos processos operantes e do tempo. Tal postura valorizava muito o aspecto histórico, sistematizado na obra Geographical Cycle.

3As forças internas determinariam a estrutura; a forma da superfície seria consonante com seu arranjo interno; a altitude dependeria da intensidade do soerguimento; o ataque dos processos externos às rochas implicaria, com o tempo, mudanças da forma inicial; e a velocidade dos processos seria inicialmente moderada, passando a rápida, até o máximo, decrescendo lentamente até o mínimo, resultando assim nas fases:

  • curta juventude – relevo com rápido aumento dos processos;

  • maturidade – relevo forte a moderado com maior variedade de formas – transição;

  • senilidade – relevo fraco com mudanças excessivamente lentas.

4O paradigma penckiano preocupava-se essencialmente com três elementos: os processos exogenéticos, os endogenéticos e os produtos de ambos, os quais foram chamados de feições morfológicas reais.

5Sobre este último aspecto, Penck (1953, p. 4) acrescenta que:

as feições morfológicas reais podem, como os processos exogenéticos, ser observadas sendo, portanto, objeto de pesquisa indutiva. Entretanto, seus limites precisam ser bem mais estendidos, mas não significa que é o bastante para determinar e caracterizar as formas de denudação como elas realmente se apresentam em variadas combinações.

6Admite ainda que as relações estratigráficas dos estratos correlatos formados simultaneamente, sua espessura e a forma como foram depositados representam registros que têm significados muito importantes tanto para a Geologia, fornecendo evidências dos movimentos diastróficos, como para a Geomorfologia, formalizando o conceito de depósitos correlativos na análise das formas de relevo.

7A proposta penckiana foi retomada posteriormente por grandes pesquisadores, como, por exemplo, Gerassimov & Mescherikov (1968), citados por Abreu (1983), que a utilizam como base conceitual para análise da morfoestrutura e da espacialização dos fatos geomorfológicos.

8Tais concepções marcam, ainda hoje, a maioria dos trabalhos e servem de base às interpretações feitas, sobretudo a respeito da evolução geomorfológica das paisagens. Tornaram-se assim dois paradigmas relativamente consagrados, embora alguns pesquisadores se ressintam de uma reflexão epistemológica e, principalmente, metodológica mais discutida (Abreu, 1978, 1982), já que conceitos teóricos e métodos têm uma relação direta (Christofoletti, 1971).

9No Brasil, Ab’Saber (1969) sugeriu nesse sentido três níveis de tratamento para a pesquisa geomorfológica, com o objetivo de estabelecer suas bases. O primeiro nível compreende a compartimentação topográfica regional, a descrição e a caracterização dos modelados; o segundo relaciona-se à estrutura superficial da paisagem, que corresponde às observações dos depósitos, às feições pretéritas de relevo (« superfícies de aplanamento, residuais » etc.) e às feições recentes (« vertente, terraços » etc.); o terceiro nível corresponde à fisiologia da paisagem, compreendendo os processos morfoclimáticos e pedogenéticos atuais.

10Tal sugestão de tratamento das paisagens envolve uma proposta metodológica que pode ser aplicada em diferentes escalas, principalmente no que se refere a escalas regionais ou maiores e ao princípio relativo à compartimentação dos modelados, seus componentes e sua dinâmica nas paisagens. Essa proposta marcou profundamente a Geomorfologia brasileira, sobretudo como base operacional do trabalho. Contudo, as interpretações decorrentes de processos e inter-relações entre os componentes das paisagens ainda carecem de maiores e melhores sistematizações, muito embora Tricart (1982) tenha, muito apropriadamente, considerado que a visão de paisagem, atrelada a concepções como as que acabamos de destacar, de base « penckiana », na análise dos processos tenha sido muito importante para entender a complexidade e a evolução conceitual da Geomorfologia.

11O grande impulso nas últimas décadas, decorrente da incorporação das imagens produzidas por sensores (fotos aéreas, imagens de radar e satélite) e da demanda de soluções para questões ambientais, embora muito tenham contribuído para os registros sobretudo cartográficos das paisagens, ainda carece de significativa discussão epistemológica.

12De acordo com Tricart (1982), a revisão de conceitos apoiada na visão de paisagem e na análise dos processos morfogenéticos foi importante para entender a complexidade e a evolução conceitual, que, por sua vez, foi embasada na concepção de sistemas.

13O autor argumenta que a teoria dos sistemas forneceu importante embasamento teórico aos estudos geomorfológicos, estimulando a revisão das concepções nesse campo do conhecimento. Com esse enfoque, observa os fatos geomorfológicos sob dois pontos de vista: o do Sistema Fechado e o do Sistema Aberto, embora Navarra (1973) admita que a conceituação de sistemas fechado e aberto fora da termodinâmica não seja muito precisa. Os sistemas são fechados em relação a uma variável, enquanto os sistemas abertos permitem trocas de matéria-energia com o exterior. Sob essa perspectiva, a análise geomorfológica e os modelados estão ajustados aos fluxos de matéria e energia que circulam pelo sistema, sendo importante assinalar as relações entre os componentes e o ambiente circunvizinho. O conceito de paisagem como sendo constituída por um conjunto coerente em que as formas e processos estão ligados entre si, dependem uns dos outros e condicionam-se reciprocamente.

14O termo paisagem tem sua origem no francês – « paysage » – que significa o espaço do terreno que nossa vista alcança. O termo também tem fortes ligações artísticas desde épocas bastante remotas. Adquiriu significado científico no século XIX, com os naturalistas alemães, transformando-se em conceito geográfico (Mendonça & Venturi, 1998). Na França, Tricart (1982) utilizou a concepção de paisagem sob o enfoque sistêmico. Os próprios Tricart, Monteiro (1974) e outros pesquisadores passaram a adotar a paisagem como categoria de análise. Desse modo, foram criadas várias unidades de paisagem em função dos objetivos da pesquisa, e o termo foi transformando-se em orientação metodológica.

15Coimbra & Coltrinari (1998) analisam o conceito de paisagem de Boesch & Carol (1956), que a definem como espaço tridimensional onde são sintetizadas as manifestações dos componentes bióticos e abióticos da geosfera. Admitem a necessidade da abordagem metodológica, relacionando a paisagem como unidade, estudando os elementos que a compõem e suas contribuições para a elaboração dos traços gerais e particulares que se percebem. Acrescentam, ainda, que o

uso da abordagem sistêmica na Geografia Física (Christofoletti, 1990) e na Geomorfologia (Chorley & Haggit, 1975) deve levar em consideração a necessidade de superação das divisões clássicas do trabalho científico que fragmentam os objetos de estudo em partes componentes sem, no entanto, recompô-los posteriormente para o entendimento do todo (Coimbra & Coltrinari, 1998, p. 648).

16A microbacia do córrego Taquara, localizada no Distrito Federal, escolhida como unidade de análise representativa da paisagem dos « chapadões », constitui uma referência espacial caracterizada por uma associação de geoformas, solos e comunidades vegetais que interagem. Visto assim, tem-se a idéia de paisagem e unidade de paisagem, e sob este enfoque, as geoformas seriam apenas um dos elementos da paisagem.

17Bertrand define paisagem como

uma porção do espaço caracterizada por um tipo de combinação dinâmica, portanto, instável, de elementos geográficos diferenciados (físicos, biológicos e antrópicos), que reagem dialeticamente uns sobre os outros, fazendo da paisagem um conjunto geográfico indissociável que evolui em bloco, sob efeito das interações de seus elementos e dinâmica própria de cada um (Bertrand, 1968, p. 250)

18A definição de paisagem de Bertrand apóia-se no conceito de paisagem total, integrando todas as implicações, inclusive as antrópicas.

19Na linha do pensamento de Cholley, citado por Tricart & Kilian (1979), essa definição corresponde a um sistema. Esses autores caracterizam o sistema natural como uma estrutura própria, que coincide com uma rede de interações (combinação dos fatores geomorfológicos, pedológicos, geológicos e climáticos). Nesse sentido, podemos perceber uma paisagem e mapeá-la.

  • 1 Geoformas são formas da superfície da terra concebidas como setores ou entidades do espaço, as quai (...)

20Do ponto de vista geomorfológico, uma unidade simples de paisagem coincide geralmente com uma geoforma. Segundo Ruhe (1969), citado por Sánchez (1991), as geoformas1 são conceituadas como indivíduos em uma população, e as paisagens, como população de unidades de paisagem ou geoforma. Assim, na região Centro-Oeste, o chapadão corresponde a uma paisagem. Esta compreende um conjunto de unidades de paisagem que conformam a estrutura geomórfica da paisagem. No estudo do chapadão, constituído por uma sucessão de chapadas interligadas por vertentes e vales, os interflúvios, as vertentes e os vales são geoformas diferentes que, assim como a paisagem, não têm ordem de grandeza fixa.

21As aplicações desses conceitos são flexíveis e dependem do nível de percepção e da escala de mapeamento. É importante salientar que, à medida que os estudos passam da escala regional para escala de detalhe, o nível de percepção é mais exigido, conduzindo à idéia de paisagem. Com aproximações sucessivas, partindo do geral para o particular, chega-se a grandes níveis de percepção e abstração, descendo, portanto, à heterogeneidade interna da paisagem até chegar a uma simples unidade de paisagem, com inter-relações mais uniformes e mais contínuas, como deve ser o procedimento metodológico adotado para a pesquisa em uma microbacia com área inferior a 5.000 ha. Dentro dessa visão paisagística e integradora, assumida pela maioria das escolas européias, são destacados alguns princípios que estimularam a evolução de idéias introduzidas em nossa pesquisa: o estudo dos fluxos de energia dentro do sistema, que participam da dinâmica do meio físico; as mudanças do meio natural (interfácie litosfera-atmosfera, conforme Tricart & Kilian, 1979), destacando-se o conhecimento dos diferentes graus de equilíbrio dinâmico do meio natural.

22Para o estudo integrado, após a de limitação do perímetro de uma microbacia revelado pelos seus divisores internos, conseguidos através das curvas altimétricas, é necessária a ordenação dos canais e a densidade de drenagem, pois os canais que seccionam a paisagem fornecem dados de fluxo importantes, que contribuem para compreender a hidrodinâmica do seu interior. Só a partir desses conhecimentos é que podem ser realizadas as análises geomorfológicas, geológicas, pedológicas, climatológicas e fitofisionômicas. Essas avaliações realçam as relações de interdependência entre os componentes, contribuindo para o entendimento dinâmico da bacia. A respeito dessa dinâmica, Tricart (1977) classifica o meio natural em diferentes graus de estabilidade, em função do conjunto de fatores morfogenéticos: energia de relevo, forças endogenéticas (terremotos, vulcanismo, etc.), influências climáticas diretas e indiretas (direta: tipo de energia potencial dos agentes geomorfológicos; indireta: características dos solos e da fitofisionomia). Baseado nesses critérios, o autor classifica os meios naturais como estáveis, instáveis e de transição ou intergrade. Nos meios estáveis, as formas de relevo evoluem lentamente, os processos mecânicos são escassos, os transportes de materiais detríticos são reduzidos, os fluxos de matéria estão associados às lixiviações verticais e laterais de materiais em solução. Nos meios instáveis, a morfogênese é intensa, ou seja, os fluxos de matéria são mais freqüentes e o relevo sofre modificações com ritmos mais freqüentes, devido a condições climáticas mais agressivas, e/ou a declives acentuados, e/ou à geodinâmica intensa e recente. Nos meios de transição ou intergrade, há um balanço entre morfogênese e pedogênese. Sob esse aspecto, Tricart (1977) e posteriormente Tricart e Kilian (1979) analisam apenas os processos de agradação e degradação das formas de relevo, junto aos processos pedogenéticos, sem valorizar a cobertura vegetal. Já Sanchez (1991) argumenta que a estabilidade da superfície geomórfica está condicionada às características intrínsecas do regime climático e principalmente à estrutura e à fitofisionomia. Os estratos e a tipologia da formação vegetal desempenham papel importante na estabilidade da superfície.

23Ressalte-se que a estabilidade de uma superfície é muito relativa, pois não se conhecem exatamente as derivações do clima atual, em função das múltiplas atividades geodinâmicas ainda não totalmente contempladas pela geomorfologia.

Bases teórico-metodológicas

24Ao analisar a produção científica voltada para o campo da Geomorfologia, Abreu (1983, p. 5) mostra que a teoria geomorfológica tem suas raízes em duas escolas que « evoluíram paralelamente e que nas três últimas décadas convergiram para uma conceituação mais global ». Contudo, alguns trabalhos produzidos mostram a falta de conhecimento dos princípios e dos fundamentos já existentes que, por sua vez, decorrem da variedade de posturas ao longo da evolução do conhecimento científico e que têm gerado indefinições conceituais. Vários pesquisadores têm-se preocupado com esse fato, o quede certa maneira justifica a « ineficiência » na concepção metodológica. De acordo com o autor, a incoerência nos paradigmas existentes tem dificultado a pesquisa geomorfológica, pois « os conceitos emitidos não revelam claramente as propostas teóricas e metodológicas e, via de regra, teoria e método se confundem » (Abreu, 1983, p. 5).

25A maior parte da produção científica realizada não apresenta fundamentos teóricos consistentes e muitas vezes apresenta deficiências na abordagem. Os métodos dependem da fundamentação teórica e, se a teoria não está bem fundamentada, tornam-se frágeis e pouco eficientes, o que se reflete na estruturação metodológica (Reynaud, 1971, apud Christofoletti, 1971).

26É possível que as indefinições da abordagem geomorfológica estejam vinculadas às preocupações de cada país, conforme assinala Dury (1972), citado por Garner (1974, p. 26): « América se preocupa com processos, França e Alemanha com denudação – cronologia, Polônia com a dominância dos efeitos pleistocênicos, Rússia com a Geomorfologia Aplicada e assim por diante... ».

27Com a intensificação da evolução do conhecimento científico nesse campo nas últimas décadas, foram descartados os conceitos fisiográficos anteriores conduzidos por contestações e revisões de conceitos. Nestas três últimas décadas, surgiram técnicas e métodos que conduzem a uma visão dinâmica, decorrente dos processos de degradação e agradação que esculpem as formas de relevo em diferentes graus e em períodos de tempo variados. Desse modo, os mecanismos e os diferentes graus de operação devem ser entendidos de maneira que a evolução possa ser explicada, e uma evolução futura possa ser prevista (Chorley et al., 1984).

28A grande complexidade e a diversidade das características do meio natural têm levado a diferentes abordagens no estudo das formas de relevo. Para explicar essa complexidade e a evolução conceitual, vários paradigmas surgiram e, em decorrência disso, a Geomorfologia passou por uma revisão de conceitos, apoiada na visão de paisagem e na análise dos processos morfogenéticos (Tricart, 1982). Essa visão foi embasada na concepção de sistemas.

29A noção de sistema constitui um paradigma muito importante nas ciências físicas, biológicas e humanas. Na Geomorfologia, tornou-se um instrumento para entender as relações de interdependência entre os elementos constituintes dos sistemas e as interações fora dos limites dos sistemas. Essa noção, embasada na Teoria Geral dos Sistemas, cujas raízes se encontram na termodinâmica, emergiu na última metade do século com a sistematização e conceituação de ecossistema por Tansley (Tricart, 1977). Essa concepção foi ampliada para outras ciências, como a Geografia, a Pedologia, a Geomorfologia.

30No ramo da Geografia, com o surgimento de novas técnicas de observação do espaço, surgiram vários paradigmas. Mesmo assim, segundo Mendonça & Venturi (1998, p. 65),

« a base metodológica continuou sendo a mesma, já que a visão sistêmica não colocou em xeque a concepção positivista da realidade, porém o emprego de novas técnicas derivou um avanço técnico e metodológico que gerou o neopositivismo ».

31Esses autores acrescentam que houve apenas um avanço tecnológico em relação à geografia tradicional.

32A noção de sistemas, aplicada tanto à Geografia como à Geomorfologia e a outras ciências, pressupõe uma estrutura dinâmica onde se dá a troca de matéria e energia. Nessa perspectiva, constitui-se como um referencial teórico e metodológico para o conhecimento das relações de dependência mútua entre os seus elementos, pois um sistema define-se como « um conjunto identificável e coerente de elementos que interagem coesivamente, onde cada elemento pode ser um sistema » (Maffeo, 1982, p. 47-48). Entretanto, segundo Howard (1965), citado por Garner (1974, p. 26), a teoria de sistemas é mais uma « coleção de conceitos que uma teoria » e alguns pesquisadores acham que o seu uso em Geomorfologia é uma complicação desnecessária, embora para outros satisfaça certas necessidades.

33No campo da termodinâmica, são reconhecidos os sistemas fechados e sistemas abertos. Os sistemas fechados são constituídos por uma quantidade de energia fixa inicial que é gradualmente usada ao longo do tempo. Tal sistema caracteriza-se pela diminuição da energia disponível. Na Geomorfologia, o « Ciclo Geográfico » é tratado como tal. No sistema aberto, os elementos interagem sob o mecanismo de fluxo de massa e energia, e qualquer estimulação em qualquer elemento do sistema afetará os demais elementos devido ao intercâmbio entre eles. Portanto haverá sempre uma relação de causa e efeito entre os diferentes componentes do sistema. O sistema reagirá sempre globalmente a qualquer estímulo produzido em qualquer unidade. Nesse sentido, as paisagens e as bacias de drenagem são consideradas como sistemas abertos.

34Os sistemas geomórficos estão relacionados aos sistemas naturais que formam as paisagens, no sentido restrito. Constituem-se de um complexo integrado de formas de relevo que operam segundo características discerníveis (Chorley & Hagget, 1975). Podem ser subdivididos em subsistemas, como, por exemplo, as bacias hidrográficas, e ainda em outros elementos. Quando se trabalha em escalas regionais, o conjunto de formas de relevo forma supersistemas que são decompostos em sistemas e subsistemas, de acordo com os parâmetros escolhidos. Alguns pesquisadores que trabalham em escala pequena enfatizam os sistemas denudacionais, estruturais, subdividindo-os em sistemas de aplanamentos, dobrados, falhados, de acumulação fluvial (Latrubesse et al., 1998).

35Quando se trabalha em escala grande, em que objetivos são mais científicos do que técnicos, as observações são mais freqüentes e os níveis de percepção são mais acentuados. Em uma microbacia hidrográfica, as operações são detalhadas e podem até ser substituídas por métodos experimentais, como sugere Chorley & Hagget (1975). Nesse caso, um trabalho em microbacia pressupõe o aprofundamento das investigações sob enfoque sistêmico, tentando mostrar as interações das variáveis geradoras da superfície geomórfica que Tricart & Kilian (1979) denominam de interface litosfera-atmosfera (Figura 1), que faz parte de uma organização do conjunto paisagístico. Nesse sentido, a inter-relação dos elementos geomorfológicos e seu funcionamento definem um sistema. A figura 1 dá idéia dessas interações proporciona das pelas forças endógenas e exógenas, das quais resulta a superfície geomórfica (interface litosfera-atmosfera). De um lado, têm-se as forças endógenas, representadas por vulcanismo e movimentos tectônicos que, aliados à constituição litológica, formam as morfoestruturas. Do outro lado, têm-se as forças exógenas que, comandadas pelo clima, interagem com os fatores bióticos (biosfera), gerando os variados tipos de modelados sobre diferentes conjuntos litoestruturais (Figura 1).

FIGURA 01: Interação dos fatores intervenientes da superfície (Tricart & Kilian, 1979)

FIGURA 01: Interação dos fatores intervenientes da superfície (Tricart & Kilian, 1979)

36O conceito de sistema aplicado à Geomorfologia por Chorley et al. (1984) é definido como uma estrutura de processos interativos, na qual as formas de relevo funcionam individualmente e em conjunto para formar um complexo de paisagens. Portanto, uma forma de relevo faz parte de um sistema menor que constitui os modelados. O sistema é então constituído por modelados, material e fluxo de energia que não podem ser compreendidos sem o domínio da complexidade das formas individuais. Portanto, a inter-relação dos elementos morfológicos, de energia e fluxo de material formam o sistema geomorfológico. As formas de relevo resultam de uma funcionalidade muito abrangente que envolve uma atuação conjunta dos fatores climáticos com o relevo, o solo, as rochas e a estrutura.

37Chorley (1975), citado por Coimbra & Coltrinari (1998, p. 648), afirma que a aplicação da teoria geral dos sistemas à Geomorfologia

fundamenta-se na perspectiva de que a pesquisa (do meio físico e a apreensão dos mecanismos que regem seus processos), pode ser melhor realizada pela dissecação da estrutura do problema geomórfico em suas partes supostamente componentes, de modo que o funcionamento de cada parte e as interações, entre elas possam ser examinadas convenientemente, levando a uma síntese completa dos componentes num todo funcional.

38Coimbra & Coltrinari acrescentam que não há antagonismo entre essa abordagem e a abordagem holística, já que a intenção é compreender o todo, objetivando a análise geomorfológica. Com essa visão apreende-se que o enfoque holístico-sistêmico é um instrumento lógico para a percepção das relações que se processam em cadeia entre os componentes dos subsistemas.

39Segundo Garner (1974), deve-se considerar, em um sistema geomórfico, que os limites são impostos pela natureza na crosta da terra; as partes que interagem não podem ser estudadas isoladamente, sejam elas processo ou produto; são historicamente predispostos: um sistema pode ser seguido por outro sistema alterado; o sistema evolui: as mudanças ocorrem ao longo do tempo em relação à modificação interna gradual de suas partes e em relação às variações em formas de energia externas e quantidades; o sistema converte matéria e energia: a energia externa entra e flui através do sistema geomórfico e, no processo, a energia de um tipo é convertida em energia de outro. No ponto em que energia afeta a matéria há mudanças de formas de relevo, de consistência do material e de comportamento. Desse modo, as partes do sistema tendem a responder ao princípio de entrada, pois, quando são excedidos certos níveis de energia ou quando são criadas certas relações físicas, são alcançados efeitos especiais de um sistema geomórfico.

  • 2 Paisagem: « Uma porção do espaço perceptível a um observador onde se inscreve uma combinação de fat (...)

40Entretanto, para Bertalanffy (1950), citado por Penteado (1985, p. 126), « distinguir um sistema dentro do universo é um ato mental, cuja ação procura abstrair o referido sistema da realidade envolvente ». Isso significa que para se distinguir um sistema será necessário distinguir seus elementos, suas relações e funcionalidade. Quando esses elementos e suas relações começam a se descaracterizar, têm-se aí os seus limites, chamados de fronteira conceitual. Os elementos que compõem o sistema são identificáveis e não têm dimensão definida. Nesta abordagem, é possível trabalhar com a dinâmica e as interações das variáveis e dos indicadores geomorfológicos, buscando-se dentro deste enfoque uma estruturação metodológica envolvendo distribuição espacial dos resultados, observações qualitativas da paisagem, estrutura, dinâmica e análise dialética da paisagem. A adoção dessa abordagem deve levarem conta a noção de sistemas abertos (entrada– transformação – saída) e de abordagem dinâmica (processo dinâmico de interação) e, nesse sentido, a idéia de paisagem2, em face do inter-relacionamento dos diversos componentes que a constituem.

41No caso da microbacia do córrego Taquara, escolhida pela autora como uma unidade de pesquisa, a abordagem sistêmica tornou-se indispensável, uma vez que se trata de estudo de detalhe. A sistematização dos dados relativos aos componentes dos sistemas geomorfológicos permite que eles possam ser agrupados e hierarquizados de modo a se obter uma compreensão global da gênese, evolução e comportamento atual da microbacia hidrográfica, como representativa do Planalto do Distrito Federal, o qual constitui um sistema natural. O resultado do estudo poderá ser extrapolado para as bacias vizinhas, contribuindo assim para a compreensão do próprio planalto (chapada); este, uma paisagem.

42Com essa abordagem, tornou-se necessário definir os sistemas geomorfológicos contidos na bacia hidrográfica, seus componentes, os atributos (variáveis) e indicadores que os caracterizam, com vistas a entender sua funcionalidade, sem descartar o aspecto evolutivo da sua história geomorfológica, na medida em que seus testemunhos permitem entender os modelados e as formas herdadas de processos pretéritos, de certo modo impressos no relevo atual.

43As observações e técnicas utilizadas permitiram a elucidação de questões relacionadas aos processos morfogenético, pedogenético e geoquímico presentes nas feições do relevo através da identificação das formas de relevo e de seu funcionamento, que formam conjuntos de formas que apresentam filiações genéticas decorrentes da dinâmica dos processos geomorfológicos. Esses conjuntos puderam ser hierarquizados e diferenciados entre si, em função da prevalência de causalidade e dos padrões de forma de relevo. Sob essa perspectiva foram considerados alguns critérios de hierarquia, uma vez que, por definição, os sistemas geomorfológicos são constituídos por componentes interligados que se modificam ou reagem diante de uma excitação externa e compartilham de uma mesma estrutura e de uma relação genética (modelados planos, de dissecação e de acumulação).

44As variáveis são os elementos do relevo que caracterizam os modelados (as variáveis que caracterizam o relevo são: as formas, a drenagem, as formações superficiais). Os indicadores são variáveis específicas inseridas na rede hierárquica, definidos por parâmetros que caracterizam os conjuntos. Por exemplo, na rede de drenagem os indicadores são: a incisão/aprofundamento, a forma de vale, a largura, a densidade, o padrão e a ordem dos canais; nas formas de relevo são a altimetria, a declividade, a feição de topo e de vertentes; nas formações superficiais são a espessura, a morfoscopia, a textura, a permeabilidade, a porosidade, a estratigrafia. Esses indicadores revelam um conjunto de feições que caracterizam o nosso planeta, juntos formam a superfície da terra.

45Essas feições ou formas de relevo são produtos de erosão, de deposição ou de atividades endógenas que se apresentam na paisagem deformas variadas. Portanto a paisagem é formada por uma série de formas de relevo que respondem ao ambiente no qual elas existem. O meio físico bem como o meio biótico são influenciados pelo clima e se transformam ao longo do tempo. Essas transformações, analisadas de modo sistêmico, ajudam a entender o sistema natural. Nesse sentido, as feições e materiais do presente e do passado contribuem para estimar possíveis transformações futuras.

46As interações das variáveis e indicadores acima apontados ocorrem em uma microbacia e, em função da escala, podem ser estudadas em profundidade numa perspectiva de conjunto integrado ou sistêmico.

47As bacias hidrográficas são estudadas sistemicamente em função da noção de conjunto e das interações que se manifestam entre as variáveis que as compõem. Esses estudos permitem o entendimento de interdependência dos fluxos de energia e possibilitam « uma crescente abstração dos níveis de detalhe, permitindo um enfoque mais abrangente, sem perda da noção de conjunto » (Resende, 1995, p. 214).

48Resende acrescenta, ainda, que na microbacia podem localizar-se, de forma natural, os problemas de conservação dos recursos naturais, em decorrência da apreensão clara de interdependência dos fatores bióticos e abióticos inseridos no seu interior. De fato, as pequenas bacias são unidades naturais básicas, constituídas por uma área para a qual as águas das chuvas fluem em direção a um único canal de drenagem, separadas das demais por divisores. O conceito de microbacia é o mesmo de bacia hidrográfica, ou seja, « a área drenada pelas águas de chuvas que, através de ravinas, canais e tributários convergem para um canal principal, desaguando diretamente no mar ou em um grande lago » (Rocha, 1997, p. 6). Acrescente se que o deságüe na microbacia se dá em outro rio, e que sua dimensão areal é inferior a 20.000ha (Rocha, 1997).

49Assim, uma microbacia hidrográfica constitui obviamente uma unidade básica para o desenvolvimento de programas de pesquisas em escala de abordagem detalhada, sendo importante identificar-se as variáveis dos fatores bióticos e abióticos (vegetação, geologia, geomorfologia, solo e clima) para se conhecer o comportamento e as relações de interdependência do meio natural, dentro dessa unidade base.

50Com o detalhamento e aprofundamento das observações é possível investigar-se quais os processos atuantes que ocorrem simultaneamente nos diversos sistemas, em função das propriedades das rochas e dos solos nesse contexto, como a cobertura vegetal age para inibir o desencadeamento dos processos erosivos, e qual o papel da estrutura geológica na disposição do relevo atual e na rede de drenagem.

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Notas

1 Geoformas são formas da superfície da terra concebidas como setores ou entidades do espaço, as quais possuem certa geometricidade própria.

2 Paisagem: « Uma porção do espaço perceptível a um observador onde se inscreve uma combinação de fatos visíveis e de ações das quais, num dado momento, só percebemos o resultado global » (J.P. Deffontaines, 1973 adaptado por Tricart, 1982).

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Índice das ilustrações

Título FIGURA 01: Interação dos fatores intervenientes da superfície (Tricart & Kilian, 1979)
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/23771/img-1.png
Ficheiro image/png, 32k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Lindinalva Mamede, «Geomorfologia: abordagem sistêmica em uma microbacia»Geografares [Online], 1 | 2000, posto online no dia 01 junho 2000, consultado o 10 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/23771

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Autor

Lindinalva Mamede

Doutora em Geografia Física pela Universidade de São Paulo e pesquisadora-titular do IBGE (GO)

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Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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