LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
O artigo resulta da conferência de abertura da Semana do Geógrafo, ocorrida em 1999, na Ufes, Vitória (ES). Apresenta primeiramente discussão sobre a urbanização no Brasil e em seguida discute o homem urbano e a natureza para, finalmente, apontar considerações sobre a natureza natural do mundo.
Conferência de Aberturada « Semana do Geógrafo », realizada na Universidade Federal do Espírito Santo, em 1999, Vitória (ES).
1Abordarei o tema decompondo-o. Iniciando pela urbanização, passo em discussão a questão do movimento que separa/fragmenta as relações, as instituições, a natureza, o espaço, na tentativa de superar o tema como naturalidade dada. Interessa-nos o enigma da natureza social do mundo aparecendo como natureza natural.
2Neste momento, perto de 80% da população é urbana. Nas grandes aglomerações, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, aparecem com veemência os dramas cotidianos do processo que nas últimas décadas vêm colocando, sem cessar, contingentes expressivos depopulação do campo nas cidades. A impulsão interna desse processo, o seu motor, é a industrialização. Foi através de uma concepção geral de sociedade e de Estado levada a cabo, inicialmente, por uma burguesia industrialista, associada desde a origem a empresas de capital estrangeiro que, mediante seus papéis históricos, metamorfoseou a riqueza. De mercantil e escravista assumiu a condição de industrial e rentista em meio a contradições internas.
3Os espaços nacionais foram sendo redefinidos. Assim, cresceram as cidades, estabeleceram-se novos e incisivos recortes regionais que logo estavam sendo submetidos às lógicas reprodutivas de um capital de base nacional. Conseqüentemente, a concentração dos investimentos produziu seus efeitos em termos de processos socioespaciais, resultantes de determinações gerais do processo de reprodução do capital industrial. A concentração urbana, a formação das metrópoles nacionais, das vastas periferias estavam assim associadas ao esvaziamento do campo. Esse processo de concentração industrial colocou, desde a origem, na ordem do dia, o problema do espaço. O Estado seria o gestor da urbanização.
4O Estado entrou na gestão da urbanização. Foi até o presente o outro de uma relação que teve, durante as décadas de 1970 e 1980, os movimentos sociais como motor. Em verdade era o caminho de socializar custos de urbanização. Isso porque, a partir de um certo momento, colocou-se para a indústria o problema da sua reprodução, qual seja, como integrar a custos compatíveis força de trabalho e meios de produção, máquinas e matérias primas, quando o sobre produto dessa indústria tinha reproduzido o trabalho num nível que ela não pagaria se quisesse continuar operando. Resultado: a mobilidade geral do trabalho no Brasil, no interior dos movimentos migratórios nacionais, permitiu que a indústria fosse incorporando trabalho com menos valor. Esse foi um recurso eficiente até o ponto em que o trabalho necessariamente teria que ser mais qualificado, mesmo quando o custo da urbanização limitou esse processo. O Estado entrou em cena para criar e manter condições gerais e sociais de reprodução das empresas e com isso socializar os custos de reprodução do capital – assunto que foi suficientemente discutido por Jean Lojkine em O Estado e a urbanização capitalista1. Então, a cidade e a indústria foram sendo transformadas em estreita simbiose sob a salvaguarda do Estado.
5O crescimento do emprego industrial, a diversificação crescente dos setores industriais como conseqüência da prioridade de investimentos na indústria desencadearam uma redefinição estrutural e espacial do trabalho no Brasil, com enorme mobilidade do trabalho.
6Nas áreas de concentração de indústria, logo onde estava a conformação dos mercados de trabalho, foram se formando as grandes, enormes periferias, como na metrópole de São Paulo. A cidade não suportou esse processo.
7Trabalhos importantes mostraram aquilo que fora ocorrendo com o crescimento de São Paulo. São Paulo chegou aos seus 16 milhões de habitantes e, para atravessar a área metropolitana, é necessário percorrer 80 a 90 km. O padrão periférico de crescimento, processo pelo qual áreas rurais foram sendo sucessivamente incorporadas à textura urbana, acabou formando um enorme tecido urbano sempre em expansão, no qual se sucedem loteamentos/ônibus/fábricas/trens/bairros operários... depois COHABs, metrô... Produzir a cidade foi também um caminho de especulação, de enriquecimento pela definição das rendas fundiárias como estratégias de reciclagem e salvaguarda de posições históricas e sociais das elites tradicionais; os velhos proprietários aos quais se juntaram modernos especuladores atuaram como parte integrante desse mecanismo de formação da periferia.
8Produzir materialmente a cidade foi e tem sido um grande negócio. O centro e os velhos bairros, os novos loteamentos misturam-se, em extensão e profundidade, em outras formas de uso do espaço.
9Quem diz parcelado e hierarquizado, fragmentado, homogêneo e quebrado fala do espaço, das camadas sucessivas que o espaço da cidade, transformando-se em espaço da metrópole, contém.
10A cidade, originalmente, tem um centro que é ao mesmo tempo uma unidade simbólica e operativa para a comunidade citadina. Essa comunidade pode estar dispersa, até estar a longa distância do centro, habitando bairros da cidade. Fala-se de cidade porque há nessa relação cidade–bairro uma valoração subjetiva que funda sentimentos de pertencer a um lugar, no caso ao bairro.
11Até o advento da indústria, o comando visível e invisível dos ritmos e sentidos vividos nessas áreas de cidades no Brasil vinha das práticas religiosas, inscritas no calendário santificado pela igreja católica. A igreja hegemônica no Brasil, Católica Apostólica Romana, adotou procedimentos de afirmação com o advento da República, procedimentos conhecidos por processo de romanização. Nos subterrâneos da ordem foi ficando o popular expurgado da igreja, que seria, em grande parte, tratado mais tarde como folclore. O catolicismo atuou como uma força monolítica na fase urbana do Brasil que antecedeu o advento da indústria. A passagem do sino das igrejas aos apitos das fábricas constituiu um capítulo quase não explorado. As cidades em geral não suportam a industrialização. A metropolização é a implosão-explosão da cidade histórica, é um fenômeno reconhecido/empírico, pois que resultou nas grandes metrópoles.
12As metrópoles são uma vasta extensão urbanizada que no tempo, às vezes em curto tempo, configuram-se sobre espaços já urbanizados nos quais tinham vigência formas pretéritas de partição do território de uso público e privado, tinham vigência estruturação e parcelamento do solo na forma jurídica da propriedade territorial. Ora, as propriedades estabelecem-se no nível do direito e inscrevem-se no espaço da cidade e nesse espaço é sobejamente conhecida a hierarquia de usos possíveis em função das equivalências que a propriedade guarda numa estrutura social dada. Parcelado e hierarquizado é sobretudo o espaço da cidade pré-industrial. O espaço metropolitano é uma sucessão de homogeneidades e de fragmentos dispersos. É sobretudo formado por sistemas funcionais justapostos. Veja-se, o aeroporto é um espaço de grande homogeneidade, é um sistema integrado perfeito. Ao sair do aeroporto, passa-se para sistemas de vias expressas, por fragmentos de velhos bairros.
13A industrialização como processo, com todos os fenômenos que lhe são correlatos, os quais volto a lembrar: imigração, especulação fundiária, infra-estrutura de transporte e comércio, tem o Estado como suporte.
14Trata-se na verdade de compreender o movimento que articula a produção do espaço (estruturação-desestruturação-reestruturação) com as formas como se produz e reproduz a riqueza social, os valores que circulam como bens úteis para consumo; de compreender a dialética entre aquilo que no espaço se imobiliza para compor uma estrutura e os conteúdos que realizam a função da forma. Pode-se concluir então que essa produção-reprodução implica continuamente a funcionalização-refuncionalização do espaço, porque os conteúdos têm o seu movimento, e a forma tem o seu próprio movimento. Adequar o conteúdo à forma exige refuncionalizar constantemente o espaço.
15A ação do Estado tem muitas direções, mas sempre visa a essa adequação. No que concerne à materialidade do espaço, vê-se a infra-estrutura sempre em processo, num fazer e refazer sem fim, vêem-se as políticas de habitação. É tão avassalador esse processo que todas as iniciativas ficam pequenas.
16Enfim, o Estado atua produzindo o espaço sobre uma base já dada – histórica, e o faz, só o faz, por « pacotes »: os grandes projetos, sejam eles de milhares de casinhas ou prediozinhos, sejam eles, ainda, de grandes, largas, imponentes e muitas vezes horrorosas avenidas e auto-estradas, que atravessam áreas antes urbanizadas. Assim, na atualidade, como necessidade da modernização/industrialização e da fragmentação do espaço, segue-se produzindo homogeneidades que quebram as formas e estruturas pregressas. Por esse caminho pode-se abordar, sem medo, uma história do espaço.
17As homogeneidades assim produzidas realizam estratégias, refuncionalizam o espaço, dando-lhe outra direção e sentido. Estabelecem-se como um sistema, tal como foi pensado para ser experimentado, vivido. É por isso que à pesquisa em Geografia cabe indagar como o morador percebe e vive tais produções.
18Como estrutura, o espaço urbano é acumulação de tempos. O tempo está no movimento da técnica; é quantidade que mede a riqueza da sociedade por comparações, igualações formais; é função da lógica; processo social que abriga particularidades dos conteúdos e que se realiza, inscrevendo-se no e com o espaço, delimitando territórios urbanos. Do ponto de vista da materialidade urbana, vão sendo produzidas configurações, estruturas formais, que em lapsos cada vez mais curtos tornam-se obsoletas. Trata-se em verdade de processo contínuo, incessante, contraditoriamente necessário de adequação da forma espacial ao funcionamento da sociedade.
19Reestruturações do presente visam adequarem termos funcionais os espaços urbanos aos ditames, às necessidades do progresso técnico, identificado com o desenvolvimento da telemática neste período técnico–informacional. Essas reestruturações projetam na textura urbanizada das metrópoles objetos urbanos que há bem pouco tempo pertenciam à ficção científica: são grandes e numerosas torres, imensos aeroportos, shopping-centers, parques de diversão numerosos e gigantes, salões de grandes feiras, auto-estradas, estádios... enfim, grandes objetos urbanos.
20Mas para os fins que nos interessa discutir é necessário destacar o papel da técnica, das inovações que vão penetrando o corpo social pela via da indústria. As inovações técnicas, como objetivação de uma ordem, sucedem-se, traduzindo uma razão aprimorada e eficaz. O conhecimento científico está no fulcro dessa seqüência sem fim de racionalidade aprimorada que atua no sentido de novas produtividades. Atua no sentido de transformar o já existente e de criar sem cessar inovações na base técnica. No espaço, a técnica redefine a forma; na sociedade, muda conteúdos: hábitos, valores e comportamentos.
21No âmbito dos fluxos internos, nas empresas ou nos setores da indústria, como se sabe, as inovações chegam a redefinir a estrutura empresarial, levando a processos de fusão, descentralização no nível da empresa, à concentração e até à desconcentração espacial, como nessa fase do capitalismo de organização. O importante a considerar é que, na mesma medida em que inovações técnicas repercutem seriamente no nível da empresa, repercutem no corpo social, alterando hábitos, costumes, porque, em geral, quando assim acontece, há a indução de necessidades novas. Até o presente, a produção de uma necessidade com a criação de um nexo-sentido de valorização para satisfazê-la implica a redefinição do tempo. Os exemplos são por demais numerosos e, só para instigar, por que não lembrar das creches, da escola de natação para crianças, da roupa de ginástica, do telefone celular.
22O homem moderno é um ser de necessidades ampliadas, renovadas, monetarizadas, para quem o tempo é dinheiro, para quem o tempo como espontaneidade, como vazio que tudo pode, já não existe. Não se trata de opção, mas de uma lógica histórica, a do desenvolvimento e das metamorfoses da natureza natural do mundo (tempo–espaço como dádiva) em uma natureza de ordem social, a segunda natureza, cujo sentido é o da produção de uma sociabilidade abstrata.
23Discutirei agora a fragmentação, refletindo sobre o homem moderno, em cujas relações estão os conteúdos das formas descritas.
24O homem urbano realiza o indivíduo ideal que desde o século XIV começou a ser representado nas artes do Renascimento. Em verdade essa possibilidade de emergência e realização do indivíduo só foi possível a partir do movimento prático que o comércio exigia; é quando então o indivíduo nasce para a história. Até então, a comunidade de sangue, ou seja a grande família, a comunidade de lugar reunindo mais de uma família atravessou séculos de história no ocidente. Com essa pesada estrutura que garantia a sua reprodução, em luta muitas vezes surda pela salvaguarda de posições históricas das quais era herdeira, manteve-se até pouco tempo. E permanece em algumas áreas no oriente sobre a base histórica que lhe é própria.
25Lewis Mumford, em Cidade na história2,informa-nos sobre a milenar cultura de aldeia, com suas hierarquias, costumes, mando, dominação, valores, e sobre como lenta, mas muito lentamente, foi atravessando o tempo e construindo uma história. Chega ao renascimento do comércio, indicando nas suas extraordinárias metamorfoses como as novas representações do mundo faziam destacar o indivíduo. Amais notável das emergências, o indivíduo, parece ser a síntese teórica e prática do possível, daquele possível.
26Os saberes, a filosofia, a arte em geral, o renascimento do comércio e das cidades, a divisão do trabalho vão permitindo a configuração do indivíduo.
27Por muito tempo, ou até a modernidade, o indivíduo como sujeito histórico desfrutará de uma sociabilidade enriquecida. A vida urbana chegou a congregar de modo pleno conteúdos significativos imediatamente práticos, ou seja, inseridos numa prática concreta, na elaboração de produtos e obras. Eram as artes e os ofícios do medievo. Eram as corporações de ofícios.
28Mas o indivíduo das artes e dos ofícios está ainda preso aos estamentos a que pertence. Ligeiramente falando, terá que dar novos passos. Porém se concretizará como tal quando as suas relações com o trabalho e com o mundo em geral forem mediatizadas pelo dinheiro; quando estiver inserido produtivamente na sociedade. Emprega-se aqui a noção de trabalho produtivo, aquele que produz valor.
29Com as noções de trabalho, de dinheiro, experimentará o nosso indivíduo o universo de relações abstratas e avançará no sentido de uma sociabilidade abstrata.
30O homem moderno pode, graças ao desenvolvimento da técnica, da indústria e das trocas, viver a sociedade como abstração, alienar-se da sociedade e do social. Entre esse homem e a natureza se interpôs um universo de mediações, e o dinheiro é o mais impositivo. Mas, contraditoriamente, esse homem praticamente aparece na crise da modernidade como sendo monetarizado sem dinheiro. Mas continua tendo que realizar-se como homem, como indivíduo social e particular, e isso só é possível numa luta aberta que faça valer atributos individuais. E quando tais atributos não se realizam como sociais, a humanidade é rebaixada ao irrisório. Sob certas circunstâncias, o homem vira coisa, é coisa qualquer. Vira um número no exército de desempregados. Vira um transeunte, um telespectador passivo ... assim por adiante.
31A humanização e a desumanização caminham juntas num processo reconhecido e discutido já nos clássicos do século XIX. No presente, já se avaliou, o processo está travado pelas suas contradições. Em Habermas, vê-se que o processo do moderno, que impulsiona a modernidade, já não consegue modernizar a modernização, entrando então no campo do reiterativo, do repetitivo... enfim, naquilo que Robert Kurzchama de colapso da modernização.
32A tudo isso Guy Debord, filósofo e político, denominou sociedade do espetáculo, para quem a grande conquista seria poder viver a vida, porque a vida assim vivida não é vida.
33A resposta do artista, como, por exemplo, Siqueiros, no México, foi decidir pintar painéis, murais, pois as telas são de consumo particularizado e, afinal, qual a importância das telas na sociedade dos grandes números? qual a importância das telas para a sociedade de massas?
34Enfim, guardemos o fato de que a funcionalização e a refuncionalização do espaço integram os mecanismos e a lógica abstrata da reprodução social. E esse processo, agora, mais que em outro momento da história, configura-se como irreversível, pois os grandes números, as grandes massas resultam do fato de que as transformações na indústria alcançaram a agricultura, promovendo em poucas décadas enormes concentrações urbanas. Assim, a urbanização contemporânea apresenta um quadro de irreversibilidades. A clássica oposição campo-cidade vai sendo desfeita, não porque o campo é invadido por casario contínuo como em geral se representam as cidades, mas porque a sociedade de mercado generaliza um modo de vida: « o urbano como modo de vida ».
35Enfim, o mundo vai sendo colonizado por objetos, vai produzindo a colonização do tempo e da vida na cotidianidade. O cotidiano tecnificado como modelo impõe-se para o alto e para o baixo, em todos os níveis da vida social. Isso vai do simples fogão-a-gás à Internet.
36A natureza, ou naturalidade do mundo cósmico, dádiva, entra na história humana através de particularidades, atributos que lhe permitem ser força produtiva. Reconhecer uma particularidade, fazê-la integrar a dialética da História é uma atividade humana. Assim, conhecida, revelada, potencializada para o usufruto das possibilidades humanas, a natureza vai redefinindo as possibilidades de estar no mundo. Vai sendo compreendida, desvendada, lentamente, e nesse movimento integra em fragmentos a dialética do mundo. As ciências físicas e naturais desvendam suas leis, descobrem seus mecanismos de reprodução e experimentam sem cessar as formas de recriar, metamorfoseando essa base cósmica, originalidade dada, mas já como exterior ao humano propriamente dito. Pode-se dizer que o pensamento, pensando o mundo como externo a si mesmo, deixa nascer a natureza. O mundo em grande medida já é um artefato.
37Esses desvendamentos estão na ponta, no « front » avançado do saber científico e técnico. Há muito, a prática científica adquiriu um caráter instrumental. A partir dos núcleos de pesquisa científica e técnica difundem-se esses saberes, e por percursos, às vezes longos mas certos, vão compor a base técnica produtiva da sociedade. Aí então materializam-se nos produtos e nas coisas. No mundo dos objetos, permanecem como fundamento escondido.
38Há imensa dificuldade em aceitarmos que a natureza se explicita pela história. É difícil seguir esse caminho, até porque vamos no sentido de compreender a natureza natural do mundo como exterior e independente do mundo humano. Em verdade, como fragmento, a natureza integra o mundo humano. Há que desnaturalizar essa relação e começar a compreender que, por esse processo, exatamente o contrário se realiza, vai-se definindo uma natureza social do mundo.
39Fazer o caminho invertido, descobrir o que e como é a síntese contraditória dos objetos, dos produtos e das coisas revela-se uma necessidade, porque é o único caminho que permite escapar da armadilha da reiteração daquilo que se quer negar como princípio. Afinal, queremos negar o progresso que deteriora os meios para a vida, o solo, a água, o mar, queremos negar que seja necessário, porque sem saída, que os jovens da favela tenham que morrer aos 20 anos. Na Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro, o jovem que passar dos 20 ou 21 anos já é tido por homem maduro. Morre antes disso.
40Senão vejamos:
41A armadilha está exatamente em apreender, compreender e, conseqüentemente, abordar os problemas pelas suas manifestações mais superficiais; em situá-los no nível da superfície da sociedade e do social sem alcançar as cadeias ou nexos que produzem os fenômenos concretos. Sem alcançá-los, operamos com problemas sem (des)problematizá-los. Um bom exemplo é o lixo urbano. Tanto que se fala na educação ambiental como remédio para a perda de qualidade de vida. Isso constitui uma armadilha: o cidadão não tem educação, por isso perde qualidade de vida, quando, em verdade, agrande questão é a do modo de vida, que tem por centro novas e complexas indústrias de descartáveis. Essa indústria vai da embalagem à refrigeração.
42A reação contra as usinas termonucleares não ficou na superfície, exatamente porque o trágico pôs a descoberto todo o processo da tecnologia termonuclear com os problemas de Chernobil.
43No caso do assalto do automóvel sobre as cidades, é preciso compreender todo o sistema que ele sintetiza e logo se chega ao mundo devida, ao automóvel associado. No mais, as multas, rodízios não desfazem esse nó, postergam a superação de problemas, administram-nos, mas, ao que tudo indica, sem superar contradições de fundo que irremediavelmente acabam por ganhar realidade.
44É a maneira, afinal, pela qual na superfície da sociedade e do social são apresentados problemas e proclamada a sua solução. As enchentes em São Paulo, por exemplo não podem ser compreendidas como problema dos rios. Nada há de mais evidente daquilo que quis transmitir do que aquelas enchentes. Pensando o crescimento da cidade que virou metrópole, é fácil ver como a água do Tietê virou energia para as indústrias, para as casas; como as areias e as argilas foram materiais básicos na construção/edificação da cidade.
45A natureza entrou em fragmentos como parte dos objetos sociais. Com ela, estabeleceu-se um mundo que socializou abstratamente os homens. Por isso permanece a ilusão de que possa haver uma natureza natural do mundo.
LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
1 LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo : Martins Fontes, 1981.
2 MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Belo Horizonte : Itatiaia, 1965.
Topo da páginaOdette Carvalho de Lima Seabra, «Urbanização e fragmentação: a natureza natural do mundo», Geografares [Online], 1 | 2000, posto online no dia 01 junho 2000, consultado o 20 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/23821
Topo da páginaApenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Topo da página