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Os resíduos da (re)espacialização industrial: a crise da cidade ou seu renascimento?

Paulo Cesar Scarim

Resumos

Este ensaio busca analisar o sentido da cidade a partir das transformações que emergem da (re)espacialização industrial, não tendo para com esse processo nenhuma positividade. Lança mão do pessimismo metodológico como forma de perscrutar as ruínas da modernidade e o urbano como totalidade virtual.

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Texto integral

Introdução

1Um dos fatos mais importantes e constitutivos do espaço urbano atual é a saída das plantas industriais das áreas que se tornaram referências quando analisávamos a realidade brasileira.

2Menos que analisar a abrangência estatística desse fato e suas diversas características específicas, procuramos neste texto refletir sobre algumas conseqüências para as áreas evacuadas.

O sentido da cidade

3As análises sobre a cidade cada vez mais se confundem com as análises sobre a humanidade, em parte porque se fala do urbano quando quer se falar da cidade e porque o urbano atinge (virtualmente) a totalidade da humanidade; em parte, também, porque se associa o sentido da humanidade ao sentido da cidade. Não vamos, neste momento, descrever ou discutir os vínculos entre a cidade e as concepções que a humanidade produziu dela própria na/da cidade.

4Pensar o significado da palavra sentido é pensar o jogo entre um projeto consciente e as práticas banais, em parte inconscientes, que podemos entender enquanto uma existência de um vínculo profundo, como uma ausência que comanda as ações.

5Talvez seja necessário repensar, como faz Olgária Matos, aquela famosa estrofe: … navegar é preciso, viver não é preciso;

Se a razão cartesiana efetivamente teve êxito no conhecimento e controle da natureza, buscando a exatidão numérica e a precisão técnica, ou, dizendo de outro modo, se navegar é preciso, se a navegação é a arte da precisão, viver não é preciso, é indeterminado. Se há coerência nas leis da natureza, a razão que a constrói não abrange a incoerência da vida. (Matos, 1990, p. 301)

6Se navegar necessita da precisão na definição do trajeto, do ponto de partida e de chegada, a vida não tem essa precisão toda, é fusão dos tempos, espaços e experiências.

7Dessa forma temos que pensar o jogo entre um projeto, como sentido direcionado e controlado, e o sentido da vida, ou, de outra forma, inconseqüência (ou conseqüências) do controle da vida pelo controle do sentido da cidade, pois, como Withehead (1988, p. 5) coloca como o sentido da razão: « viver, viver bem e viver melhor ainda ».

8Mas, deixando este detour introdutório para não dar margem às falas da empiria, apesar de há muito Nelson Rodrigues questionar o que ele denominou de « idiota da objetividade », é necessário entrar direto nos termos da questão colocada no título, e nos duplos que daí derivam.

9Um primeiro duplo é aquele que, por um lado, define a cidade como o centro, seja ele o « locus » privilegiado da acumulação do capital, seja (até por isso) o « locus » dos movimentos de transformação, lugar do encontro, da festa, do embate. Por outro lado, define a dispersão do urbano no território todo, das indústrias no « interior » e das redes. Duplo que define termos como descentralização, recentralização, explosão, entre outros.

10Desse duplo deriva uma afirmação: aquela de que a reprodução do capital não abandonou o urbano (metrópole de serviços, informacional...) e de que o capital modifica o padrão urbano necessário a sua reprodução, vinculando a isso a construção de noções como cidade-região e metápolis.

11Desse jogo de duplos, a percepção de uma nova urbanização e de uma urbanidade é evocada, seja como uma nova forma de gestão, seja como uma nova concepção de espaço urbano (das redes, ciberespaços...) sobre o qual cabe a reflexão: que espaço se estaria produzindo a partir dessa concepção? Mas também é evocado o surgimento de um outro, captado somente pelas imagens de pensamento.

12Esse outro, que surge em parte, pode ser descrito pelos guetos, pelo fechamento, pelo controle, pelos territórios exclusivos, ou seja, um outro inteligível, mas desastroso; lógico, mas destrutivo, nebuloso e sombrio. Esse outro se põe também como apenas difuso, aparente, virtual, possível, mas ininteligível.

13Deriva uma dupla impossibilidade: a da realização da cidade, do encontro, da abertura e do contato e a compreensão lógica do ilógico.

14Dessa forma, cabe incutir o pessimismo metodológico, ou se perguntar sobre o porquê do otimismo, da empatia e da apologia. Se para Walter Benjamin (1985) as pessoas voltavam mais caladas dos campos de batalha, se há a perda da experiência (Matos, 1995), se Josué de Castro (1946) comparou a sensação dos aviadores ao sobrevoar os campos de concentração, o cheiro, à convivência da pobreza no Brasil, onde encontrar o otimismo? Sintomática foi a disputa entre os filmes « Central do Brasil » e « A vida é bela » pelo Oscar. Qual a catástrofe mais espetacular?

15Cabe, portanto, pensar as possibilidades do lugar; este, como um conjunto de possibilidades, como um Aleph, não significa que todas as possibilidades serão realizadas, é necessário inserir aí o Político. Como conceito em movimento, o lugar necessita da autodiferenciação e, pelo movimento da diferença, torna-se singular. Mas nem todos os « lugares », enquanto escala geométrica, são lugares, enquanto singularidades. Nem todos os lugares possuem as condições de realizar as possibilidades que a universalidade-mundo apresenta. A exclusão é patente.

16Escrevemos este texto a partir da conclusão da dramaticidade da vida humana nas grandes metrópoles industriais neste momento da história, momento que é possível chamar de crise histórica. Segundo a definição de Ortega y Gasset há crise histórica:

quando a mudança de mundo que se produz consiste em que ao mundo ou sistema de convicções da geração anterior sucede um estado vital em que o mundo fica sem aquelas convicções, portanto sem mundo. O homem volta a não saber o que fazer, porque volta de verdade a não saber o que pensar sobre o mundo. Por isso a mudança se superlativiza em crise e tem o caráter de catástrofe. A mudança no mundo constitui em que o mundo em que se vivia veio abaixo e, de pronto, em nada mais (Ortega y Gasset, 1989, p. 81).

As metrópoles industriais

17Entendemos que essa percepção da crise nos é coetânea e tem como um dos seus reflexos os resíduos deixados nas metrópoles industriais pela nova espacialização das indústrias, derivado do novo padrão de localização do período técnico–científico informacional. Esses resíduos podem ser vistos como ruína, o que nos recorda a nona tese sobre a história de Walter Benjamin:

Há um quadro de Klee que se chama « Angelus Novus ». Representa um anjo que parece afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-la. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (Benjamin, 1985, p. 226)

18É sobre essa experiência vivida por milhões de pessoas nos interstícios das metrópoles explodidas que devemos buscar elaborar nossas concepções sobre o sentido da cidade. A perspectiva de catástrofe, ecológica ou nuclear, é a imagem contrária à abundância preconizada pela possibilidade tecnológica. Próximo do automatismo cibernético que quer superorganizar a sociedade, diz-nos Lefebvre (1967), a vida e a ruína misturando-se em conflito oculto: a ameaça precede o ingresso na vida planetária. Se nos resíduos está presente a ruína ou o renascimento da cidade, eis o nó que vislumbra destrinçar este texto.

19As metrópoles modernas impressionam pela sua dimensão, entendida não só como « os maiores objetos culturais jamais construídos pelo homem » (Santos, 1990, p. 9) mas também como « super objeto » (Lefebvre, 1978, p. 254), por ser uma concentração de pessoas, objetos e movimentos jamais vistos. Mas o que dizer da perspectiva da urbanização de todo o território? (Santos, 1994)

20A (re)espacialização das indústrias não é um fenômeno isolado; atende a um contexto global que impõe aos países um processo mais agudo de fragmentação e especialização dos lugares. Esta reestruturação econômica neoliberal deriva em transformações em quase todos os países da América Latina, como, por exemplo, o México (Martinez, 1993), a Venezuela (Moñoz, 1993) e a Argentina (Lary & Colantuono, 1993). É por isso, talvez, que a situação específica do lugar deve ser analisada a partir da « trama relativa das relações que ele estabelece com os outros lugares no processo em curso de globalização que altera a situação dos lugares porque relativiza o sentido da localização » (Carlos, 1996, p. 28). E na era da globalização os eventos são cada vez mais globalmente solidários (Santos, 1996). E o que revaloriza os lugares nesse processo é a indústria de alta tecnologia.

21As estruturas capitalistas contemporâneas de acumulação dão-se cada vez mais numa escala global. Assim também a história das reurbanizações, como é o caso de Los Angeles, onde o « novo renascimento » urbano se tem tornado, cada vez mais, uma função da especulação financeira internacional, numa escala sem precedentes (Davis, 1993, p. 110).

22Para vários autores, estamos vivendo um momento de transição. A idéia de uma sociedade pós-industrial teve início na década de 1970, principalmente com Daniel Bell, por meio de seu livro The coming of post-industrial society (Kumar, 1997) e pelo debate que daí derivou. Segundo Santos (1996), uma das características do sistema técnico atual é a rapidez de sua difusão, no qual a técnica da informação é a matéria-prima que, pela indiferença e artificialidade dos objetos e das racionalidades em relação ao meio em que se inserem, resulta não somente numa racionalização da ação de agentes globalizados, mas também da tendência à normatização dos lugares. A sociedade pós-industrial, pós-moderna, informacional, entre outras denominações, procura dar contadas transformações abrangentes do mundo contemporâneo.

23Um dos núcleos centrais da percepção dessa transformação refere-se ao esfacelamento da centralidade na metrópole, que pode ser também entendido como descentralização, recentralização, desterritorialização, involução, esvaziamento, megalópole, metápolis, explosão, implosão e universalização, ou seja, é uma transformação multifacetária de uma reurbanização maior.

A saída das indústrias das metrópoles

24A transformação que nos interessa neste momento, é o movimento de saída das grandes indústrias do seio das metrópoles. As próprias indústrias foram o motor principal de sua produção, indústria entendida como complexo industrial, desde o automobilístico até o imobiliário. Assim teríamos um processo de « esvaziamento », de « evacuação » de alguns espaços internos ao urbano. Esses espaços perdem o sentido de sua produção e, com eles, todos os espaços produzidos nessa relação industrial. Se a metropolização industrial provocou toda uma onda de teorização sobre o urbano desde o século XIX, este novo processo promete uma nova onda, mas também resulta em sentimentos de impossibilidade teórica. É nesse contexto que se insere o debate sobre o sentido da cidade.

  • 1 Este artigo foi entregue para publicação em novembro de 1999 [Nota dos editores].

25Antes é necessário relembrar alguns fatos. Demeados do século XIX até o fim da Segunda Guerra Mundial, a metrópole era tipicamente uma expressão dos países centrais. Basta pensar em Londres, Paris, Nova York, Berlim. Desde então, nas metrópoles mais ricas, a população tendeu a estabilizar-se, quando não diminuiu efetivamente (com a notável exceção de Tóquio). Enquanto isso, a explosão das megacidades arrasou o Terceiro Mundo e subverteu o ranking das maiores concentrações urbanas do planeta. Em 1970, por exemplo, Calcutá, na Índia, nem ao menos figurava entre as doze maiores do mundo, então lideradas por Nova York. Em 1985, já com Tóquio na liderança, Calcutá tinha massa humana suficiente para se colocar em sexto lugar. No ano 20001, quando a Cidade do México for a maior aglomeração urbana da Terra, Calcutá estará no quarto posto. São Paulo conhece bem essa tendência: de décima maior em 1970 saltou para terceira em quinze anos e deve subir mais um degrau até o ano 2000. Essas cidades sediam as chamadas « regiões de miséria ». Pertencem a tais regiões três em cada dez habitantes do Brasil urbano.

A urbanização brasileira

26A urbanização no Brasil passa por um processo que convém destacar. Segundo os dados do censo do IBGE de 1991, observamos a desaceleração do ritmo de crescimento demográfico da população residente nos municípios metropolitanos e a expansão de um processo de aceleração populacional das periferias, em especial as circunvizinhas aos núcleos metropolitanos, caracterizando uma ampliação das metrópoles (explosão e formação de novos centros ou subcentros), reorientação dos fluxos migratórios e expansão e exclusão de certos segmentos populacionais produzindo espaços segregados ou diferenciados nessas áreas de ampliação.

27Isso deriva de uma relativa estagnação do nível de crescimento da participação das regiões metropolitanas no total do país, mas que se diferencia quando observamos região por região: a Região Norte teve uma queda de 18 para 12%, o Nordeste teve um aumento de 14 para 18%, o Sudeste, de 41 para 45% e o Sul, de 14 para 22%.

28A população do interior aumentou mais que a das regiões metropolitanas, mas manteve a diminuição absoluta da população rural brasileira, levando a uma taxa de urbanização que ultrapassa os 75%.

29Assiste-se a uma diminuição da população residente nos municípios com menos de 100 mil habitantes e a um aumento das densidades demográficas das regiões metropolitanas: destaque para a Grande São Paulo (região de maior densidade), com 1.939 hab/km2, onde os municípios de São Paulo, Diadema, São Caetano, Osasco, têm mais de 6.000 hab/km2; e para Curitiba (região com menor densidade), com 228 hab/km2.

30Ao mesmo tempo, assiste-se também a uma diminuição pela metade dos acréscimos populacionais. A região de Fortaleza teve o maior incremento relativo (46%) e a do Rio de Janeiro, a menor (11,7%). Nota-se também o aumento da participação populacional dos municípios periféricos dentro das regiões metropolitanas, como é o caso da Grande Recife, na qual os municípios periféricos passaram a contar com a maioria da população metropolitana.

31Há uma transformação do tipo de domicílio e chefia com o aumento do modelo nuclear, o aumento do unipessoal, a diminuição do tamanho domiciliar, o aumento da chefia feminina.

32Essa (re)espacialização não produz somente novas formas espaciais em novos lugares, mas transforma substancialmente a relação social no urbano « abandonado ». Segundo Davis, o

capitalismo do pós-modernismo, longe de eliminar os últimos enclaves de produção pré-capitalistas, como sugere Jameson, trouxe de volta, descaradamente, as mais primitivas formas de exploração urbana. Pelo menos 100.000 trabalhadores labutam em casa, produzindo artigos de vestuário e acessórios a um raio de poucas milhas do Bonaventure, e o menor trabalhador voltou a ser um problema chocante.

Essa reestruturação das relações de produção e do processo produtivo é, com certeza, inteiramente capitalista, mas representa, não um estágio superior da produção capitalista, e simum retorno a uma espécie de acumulação primitiva, onde a valorização do capital ocorre ,em parte, através da produção de uma mais-valia absoluta, por meio da superexploração do proletariado urbano (Davis, 1993, 113).

33Um dos fatos mais marcantes é o que poderíamos denominar de « institucionalização da pobreza » urbana. Como nos alerta Lefebvre (1967, p. 172): « Não podemos esquecer que para centenas de milhões, talvez bilhões, de seres humanos a questão talvez não é mudar a vida cotidiana, mas de chegar a uma vida cotidiana ».

34Essa institucionalização é em parte demonstrada pelos novos empreendimentos, que são as vitrines da concentração contida e racional, um « oásis de ordem », uma intervenção fechada e circunscrita, que estampam a crise das utopias urbanas e os limites do planejamento urbano na impossibilidade de planejar a cidade em escala ampla e abrangente. Davis (1993) chama esses empreendimentos de viveiro para a alta classe média e de colônia espacial claustrofóbica.

35Estes novos espaços buscam, por um lado, reproduzir a cidade dentro dos empreendimentos, e, por outro lado, reproduzir a natureza, reproduzindo assim tanto a sociedade como a natureza artificializada como simulacro, o que demonstra, segundo Davis, a

ambição coercitiva da arquitetura pós-modernista, em sua ambição não de hegemonizar acidade, à maneira dos grandes prédios modernistas, mas antes, de polarizá-la em espaços radicalmente antagônicos... impulso profundamente antiurbano, inspirado por forças financeiras desenfreadas (Davis, 1993, p. 115).

36Falando das práticas tecnoculturais da sociedade contemporânea onde se produz o sujeito mutante, Muniz Sodré (1996, p.174) demonstra que nesse contexto a

identidade constrói-se pulsionalmente no quadro de um estranhamento subjetivo, interno, mas principalmente a partir de imagens externas que circulam na sociedade mediatizada em todas as formas industriais possíveis.

A identidade viabiliza-se como um jogo de signos realizados por imagens, que circulam aceleradamente, de forma contagiante, à maneira de um processo vital. Não são imagens com uma sombra referencial na realidade capazes de suscitar a reflexão, mas simulacros que se incorporam ao sujeito, criando um outro tipo de relação com o mundo físico.

37É neste novo urbano (ser e espaço) que surge a nova urbanidade que, segundo Carlos (1996, p.132), são

sinais que representam a vida cotidiana numa metrópole, uma vida programada de pequenas alternativas bem circunscritas, limitadas por um tempo e espaço homogêneos, sem cortes aparentes, revelando-se nos modos demorar, no uso da cidade e nas relações que se estabelecem entre vizinhos, habitantes desta cidade.

38Esse é um processo de desumanização, pelo menos no sentido moderno do termo, que se coloca também pela deterioração dos termos sujeito e objeto. Por um lado, temos a celebração e autonomia do objeto (Carlos, 1996), por outro, temos o homem autômato, andróide, o mutante, o híbrido, o sintético e o transgênico. O corpo humano é posto em crise, sendo não mais o flâneur baudelariano, mas um mutante simbólico dos fluxos de dispersão. O mundo dos objetos simbólicos substitui a necessidade comunicacional.

39A cidade é segunda natureza que a imita na ordem e na beleza, da mesma forma que o autômato imita o homem e o meio técnico simula a cidade, criando a percepção do humano como uma nova raridade.

40Se, por um lado, parte dessa percepção é catastrófica, derivada do fim do milênio, do fim do mundo e da crise do capitalismo, por outro, é o reconhecimento de relações residuais, fragmentadas de um conjunto de novas (e de antigas) possibilidades.

41Esse processo de desumanização é uma nova forma de segregação. Martins já alertava, há uma década:

Estamos diante de um processo que se atualiza e subalterniza grupos crescentes, nos países pobres, nas regiões pobres dos países ricos, mas também nos espaços ricos dos países pobres. O negro e a mulher continuam subalternizados em muitas partes do mundo. Mas há povos subalternos surgindo desse processo - os jovens de todas as partes, as crianças, os velhos (Martins, 1989, p. 101).

42A (re)espacialização industrial no contexto do Brasil, onde a concentração de renda é extrema e continua crescente, acelera a criação de guetos de extrema pobreza intra-urbanos. Bairros e mais bairros, que foram produzidos no impulso da rápida industrialização, encontram-se agora na situação dos desempregados da desindustrialização das áreas metropolitanas. Se a média de desemprego da metrópole paulistana está em torno de 20%, imaginem quanto significa nesses bolsões dos vácuos industriais.

43Santos (1978), já no seu Pobreza urbana, ensina-nos que, além de muitos trabalhos explicarem erroneamente a pobreza de uma nação como conseqüência do crescimento demográfico, muitos outros se utilizam dessa mesma lógica, mecanicista, para explicarem a pobreza urbana, relacionando-a à imigração e ao êxodo rural.

44Isto nos serve de alerta. Da mesma forma, a pobreza urbana, neste momento, não é resultado do êxodo urbano. O êxodo urbano refaz lógicas de distribuição do capital disponível à reprodução da força de trabalho. Se antes o ABC Paulista foi o sonho do operariado, hoje pode ser o purgatório. A metrópole industrial colocou a distinção entre o trabalho e o não-trabalho, a fábrica e a cotidianidade fora da fábrica, os movimentos operários e os outros movimentos, entre produtor e usuários, entre cidadão e consumidor. A re(espacialização) impõe-nos a redefinição de certos termos, como, por exemplo, a redefinição de pobre urbano, para além do econômico e do político.

45Se por um tempo, crescimento populacional, urbano–industrial e econômico caminharam juntos e desse processo concentrativo resultaram as megacidades, o que fazer quando esse processo se transforma ou, pelo menos, escolhe outros lugares? Esse processo é tão profundo quanto é espacialmente mais abrangente do que aquele que fundou as cidades industriais.

46Quando a técnica se torna meio, absorve o espaço todo, mundializa-se e descarta a cidade. Ou, como nos diz Lefebvre (1967, p. 173): « O fenômeno urbano identifica-se à primeira vista com o caráter mundial da técnica. Essa imagem, porém, é simples demais. Crescendo a cidade ela própria explodiu, está talvez em vias de desaparecimento ». Essa concepção é próxima à de Ansay & Schoonbrodt (1995), quando argumentam que a cidade gera uma liberdade incompatível com o projeto de manipulação que a sociedade industrial contemporânea teve que desenvolver para sobreviver, e, por isso, este projeto destrói e dissolve a cidade.

47Podemos usar neste momento a metáfora apresentada por Moreira (1993) sobre o neoliberalismo e o Estado, segundo a qual o Estado é o escultor que vai dando contornos definidos de um corpo em um bloco de pedra sabão (o liberalismo) até que esse corpo sinta que pode andar com as próprias pernas, e então declara cumprido o seu papel, o de criador da criatura.

48A humanização e a cidade têm seu sentido relacionado com a criação de obras; cabe-nos agora, este é o desafio, criar novas obras.

49Metrópoles como Barcelona, Nova York e Londres passaram por um processo de abandono industrial, conseguiram refazer-se e representam hoje, juntamente com Xangai, o novo paradigma urbano denominado por vários autores como metrópoles informacionais. Mas o que dizer de Bombaim, São Paulo, Cidade do México, Pequim, Jacarta, Lagos, Calcutá, Tianjin, Karachi, Nova Delhi, Buenos Aires, Manila, Cairo e Rio de Janeiro?

50Pensemos o caso particular de São Paulo. Podemos dizer que a metrópole continuará acolhendo seus pobres, principalmente porque esses não a abandonarão de forma rápida e simples, pelo fato de que sua presença na cidade foi derivada de muita luta, de muita resistência. O pobre metropolitano há muito está acostumado às intempéries das crises e do desemprego. Eles já possuem uma solidariedade construída pela experiência dentro e fora da fábrica. Os espaços opacos nunca foram totalmente racionalizados. Se para esses a comunicação, a proximidade, a co-presença, o cotidiano, a lentidão sempre foram atributos da sobrevivência, que sentido terão neste novo momento? (Santos, 1996)

51Mas como há desigual alienação, há desigual recusa.

Conclusão

52Numa perspectiva mais sombria, podemos dizer que teremos a constituição da nova Idade Média com a institucionalização da pobreza e das regiões da miséria absoluta e com os novos castelos superprotegidos da riqueza, com novas relações entre o social, o econômico e o político (na deterioração dos termos), sem nenhuma perspectiva de transformação e ascensão social.

53Numa perspectiva mais otimista, poderíamos pensar no novo renascimento urbano, da cidade do tempo livre e da informação e da comunicação global, num processo crescente de incorporação do urbano ao global, ao mesmo tempo que especializa e personaliza o local.

54A distância entre um e outro não é tão grande, pois ambos surgem da unidimensionalidade da sociedade industrial. Mesmo assim, não tenham dúvidas, o resultado surgirá de muitos embates.

55É necessário pensar sempre que o resultado da relação dos seres humanos com suas obras nem sempre é consciente e previsto.

56Os resíduos da cidade industrial são preciosos. São milhões de pessoas vindas de lugares os mais variados, que trouxeram suas culturas, numa mobilização global que durou mais de um século. Que saiam da cidade as indústrias poluentes, o ritmo da fábrica, a cotidianidade estruturada, os lugares parcelados, funcionais, o domínio do automóvel, o mundo do trabalho, entre outros componentes da divisão do trabalho. Que as máquinas assumam essa função. Que comecem as demolições dos galpões das fábricas e dos bairros insalubres e que sejam reciclados e transformados em parques, calçadões, ciclovias, bulevares, bairros residenciais, centros culturais e educacionais. Esse é desafio imposto por esta época: criar a cidade pós-industrial sem negar as conquistas que o período técnico–científico–informacional nos trouxe.

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Bibliografia

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Notas

1 Este artigo foi entregue para publicação em novembro de 1999 [Nota dos editores].

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Paulo Cesar Scarim, «Os resíduos da (re)espacialização industrial: a crise da cidade ou seu renascimento?»Geografares [Online], 1 | 2000, posto online no dia 01 junho 2000, consultado o 10 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/23834

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Autor

Paulo Cesar Scarim

Mestrando em Geografia Humana na USP e Professor da FAFIC (Colatina-ES) e da FACIASC (Linhares-ES)

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