Thimoteo Camacho. Cultura dos trabalhadores e crise política
Thimoteo Camacho. Cultura dos trabalhadores e crise política. Estudo sobre o Centro Popular de Cultura do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, Prefeitura Municipal de Santo André, 1999. 192 p.
Notas do autor
Resenha do livro de Thimoteo Camacho1, Cultura dos trabalhadores e crise política. Estudo sobre o Centro Popular de Cultura do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André (Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, Prefeitura Municipal de Santo André, 1999. 192 p.)
Texto integral
1Hoje, quando falamos em cultura dos trabalhadores, parece que não pensamos em nada mais que na débil (ou talvez paciente) reação dos sindicatos à famosa globalização, com as políticas de ajuste econômico, a contenção de gastos públicos, a recessão da atividade produtiva, o crescente desemprego e as mil ameaças que pesam sobre a vida dos que trabalham e sobre o futuro do país como um todo. Ou seja, a cultura dos trabalhadores parece primar por sua ausência, por um vazio de propostas e iniciativas. Mas nem sempre foi assim na história dos trabalhadores, suas organizações e partidos políticos (e será também agora? ou apenas escutamos deles o que queremos ouvir?). De fato, pouco podemos entender das atitudes atuais dos sindicatos e suas bases, se não consideramos a sua trajetória de lutas, suas conquistas e derrotas do passado. Essa é uma história que está, em grande parte, ainda por ser contada.
2Este livro, publicado na cidade operária de Santo André, narra uma parte de nossa história, parte importante da história deste país. É muito bem-vindo o livro de Thimoteo Camacho sobre uma experiência marcante da história dos trabalhadores do ABC paulista e de todos os cidadãos trabalhadores. Essa história é tanto dele quanto sua, minha, dos operários e de todos os brasileiros que trabalham. É de todos os que fazem a riqueza desta nação, mas raramente podem gozar dessa riqueza, fazê-la sua como é de direito, usufruí-la como patrimônio individual e coletivo, como riqueza que é social, criada pelos trabalhadores, mas que é deles expropriada.
3Mas não se pense que vamos ler no livro uma cartilha de educação política, o que seria desnecessário – para isso existem as formalmente produzidas pelos partidos, igrejas, sindicatos, ONGs, etc. O que este livro conta é uma batalha decisiva dos trabalhadores, antes do golpe de 1964, para resgatar o que têm de mais humano e universal: sua cultura, sua autonomia de pensamento e vida, sua arte, teatro, música, poesia, literatura, tudo isso que é parte da riqueza social que os trabalhadores criam e que também é quase sempre expropriado, reprimido, vendido pelo mercado que os explora, marginaliza e expulsa para a passividade complacente de simples consumidores e espectadores da cultura oficial.
4É claro que muita coisa mudou desde os anos da crise e dura repressão de meados dos anos 60. Desde então, os trabalhadores do ABC avançaram muito na afirmação de sua dignidade e independência diante do governo e dos patrões: foram nisto pioneiros e exemplo para os trabalhadores de todo o Brasil. A história que este livro conta é a de um momento decisivo da trajetória anterior dos trabalhadores na formação de sua própria direção cultural. Vemos germinar ali, no terreno da arte e da cultura, as sementes da autonomia operária, que viriam despontar nos anos 70 e que hoje se refletem no desenvolvimento sindical e nos partidos políticos, nas múltiplas manifestações dos movimentos populares.
5Vemos neste livro, por exemplo, que essa autonomia dos trabalhadores já comportava um pluralismo até então desconhecido na política cultural brasileira, com a junção de várias forças, atores, tradições e valores sociais. Das igrejas e sindicatos, dos partidos e grupos de artistas militantes, vieram esses trabalhadores para formar um pólo cultural, um Centro Popular de Cultura dos trabalhadores para os trabalhadores. Vemos também ali, por exemplo, que o machismo da cultura dominante foi pela primeira vez desafiado, no meio operário, pelas mulheres trabalhadoras que vieram criar cultura no CPC, em pé de igualdade com os demais trabalhadores.
6E o livro nos conta que essa luta pela autonomia cultural não foi nada fácil – mais difícil ainda do que a de hoje (ela não está, nem estará tão cedo terminada). Porque a cultura dos trabalhadores tem que ser construída sempre em litígio com a cultura dominante, a dominação política burguesa e capitalista que permeia tudo através do mercado e do Estado e procura reduzir os cidadãos à condição de marionetes do oficialismo, burocratas da resignação e espectadores passivos da sua própria alienação.
7Parte da história que este livro conta é, justamente, como a história oficial das elites que governam desde sempre o país tratou de ocultar a existência do CPC, buscando apagá-lo da memória coletiva dos trabalhadores. A ditadura pós-64 não apenas fechou o CPC, mas também prendeu, perseguiu, torturou, exilou, dispersou os trabalhadores que dele participavam: a interpretação oficial dos acontecimentos desse período tentou fazer esquecer tudo o que tinha acontecido, varrer para sempre da lembrança dos trabalhadores a experiência do seu CPC. Mas não conseguiu.
8É nesse sentido preciso, de questionamento fundamentado da história oficial das elites deste país que este livro contribui decisivamente, não só pelo fato de relembrar esses acontecimentos, mas também pelo método que utiliza para fazê-lo: a partir das narrativas dos próprios participantes. Já sabemos que a história oficial é sempre uma crônica escrita pelos vencedores dos conflitos e das alternativas sociais, que se defrontam em cada momento e ocasião. De tal forma que a versão oficial dos eventos é parte do próprio processo de vitória, através do qual os vencedores tratam de aniquilar – ou, na melhor das hipóteses, cooptar e incorporar à sua própria interpretação vitoriosa – as orientações e perspectivas (quando não a existência física e social) dos setores derrotados e subordinados. É claro que o livro de Thimoteo Camacho não pretende generalizar suas conclusões além da época e situação local que estuda, mas fornece um modelo de pesquisa que pode ser seguido em outras situações, desvelando toda uma dimensão reprimida e ignorada de nossa história.
9Este livro questiona as crônicas oficiais dos anos 60, dando a palavra aos participantes do CPC de Santo André, para mostrar como o movimento de cultura popular, que então se expandia por todo o país, tinha autênticas bases e origens operárias nos sindicatos do ABC paulista. As crônicas dos anos 60 enfatizam sempre as contradições internas entre as elites do regime populista em crise, por exemplo, o papel protagônico da União Nacional dos Estudantes na expansão dos movimentos de cultura popular, como resultado da radicalização de setores das classes médias. Sem negar essa influência, Thimoteo Camacho entrevista os atores locais do CPC de Santo André, revelando a relação de autonomia que mantiveram no contexto nacional.
10O argumento do livro estrutura-se em quatro partes, cada uma exposta em dois capítulos. A primeira parte historia a atuação da UNE nos primeiros anos da década de 60. Examinando a documentação e considerando as entrevistas com dirigentes da época, o autor descreve as inflexões pelas quais transitou o movimento estudantil, desde sua origem nacionalista sob Vargas, passando pelo interregno conservador dos anos 50, até a radicalização e disputa entre católicos e comunistas pela direção da entidade no início dos anos 60. A segunda parte caracteriza o Centro Popular de Cultura da UNE, discute os estudos já feitos sobre o tema e mostra a insuficiência das conclusões para este estudo local.
11A terceira e quarta partes do livro revelam que os setores políticos, intelectuais e artísticos, que convergiram na atuação do CPC da UNE (influenciados pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, pelo Teatro de Arena de São Paulo e pelos grupos políticos dentro da UNE), estavam divididos pela crise crescente do regime e apenas minoritariamente vieram a influir em Santo André. As entrevistas e o exame da documentação do CPC do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André mostram como essa iniciativa local logrou apropriar as contribuições teóricas, técnicas e individuais de alguns membros do CPC da UNE, num contexto de majoritária participação operária, com uma capacidade de convocação pluralista, que superava as divisões e sectarismos dominantes no plano nacional.
12A importância dessa recuperação da memória social, mesmo entre o pessoal da universidade, pode ser facilmente demonstrada através de um encontro a que assistimos entre o autor e outros pesquisadores acadêmicos, na época em que Thimoteo Camacho realizava sua pesquisa em Santo André. Um dos participantes desse encontro estava realizando uma pesquisa mais geral sobre o tema da cultura popular dos anos 60, com um mapeamento dos centros de cultura popular formados pela UNE. Esse colega afirmou na ocasião que Thimoteo deveria estar enganado, já que o mapeamento nacional não revelava nenhum indício da existência de um CPC ligado aos trabalhadores do ABC.
13Em suma, a história das elites tende a considerar o movimento popular de cultura dos anos60 como uma invenção das classes médias radicalizadas, do meio estudantil e do populismo em crise (inclusive o movimento de cultura popular no Recife, ligado a Paulo Freire, durante o governo Miguel Arraes). Nessa história, os trabalhadores não teriam nenhuma iniciativa para o surgimento dos CPCs, cabendo-lhes apenas o papel passivo de destinatário – e depois, de « bodes expiatórios » – das aventuras populistas das elites políticas e culturais…
14O conteúdo deste livro desmascara conclusivamente essa tese elitista que escamoteia a condição de sujeitos históricos dos trabalhadores desta sociedade, pois mostra detalhadamente como os trabalhadores do ABC lograram receber, transformar e apropriar para seus próprios fins, de autonomia cultural, muito dessas influências recebidas por meio da experiência dos CPCs nos anos 60. O método utilizado para recuperar e demonstrar essa experiência história é a reconstrução da trajetória desse grupo de cultura popular (os seus « eventos »), a partir dos depoimentos dos participantes ativos na experiência (e de documentação da época),sempre levando em conta também o contexto teórico-cultural em que tais eventos receberam significado nacional, como « processo estruturado » (conforme sugere o historiador Edward Thompson em Formação da classe operária inglesa).
15Assim fazendo, Thimoteo Camacho discute e questiona a dominação burguesa em crise e as versões oficiais sobre a « cultura popular dos anos 60 », desmontando o discurso (e estratégia) por elas estruturado, como processo e relação de expropriação da cultura dos trabalhadores. É um método trabalhoso e desafiador, que permite pensar a história com um « final aberto », livre de qualquer « destino », predeterminado, e ao mesmo tempo contrário às interpretações racionalizantes e autolegitimadoras dos vencedores. A cultura é vista, então, como cenário de confronto entre diferentes projetos de direção política e cultural. De um lado, o populismo das elites em fase acelerada de decadência, em crise de radicalização ideológica e desintegração cultural, que viria resultar no golpe de 64. De outro lado, os trabalhadores, que criavam laboriosamente a sua própria cultura, desvencilhando-a da dominação e amordaçamento das elites.
16Em ambos os lados desse confronto houve ilusões e falsas esperanças. Mas essas ilusões e esperanças não foram as mesmas, pois, se umas traziam a nostalgia de um passado de dominação e crise, outras trilhavam a trajetória da autodeterminação que conduzia ao futuro. E, se hoje os caminhos do populismo estão fechados por toda parte (ou ao menos enormemente dificultados), isso se deve ao fato de os trabalhadores terem tomado então iniciativas que não podemos esquecer, pois começaram desde aquela época a construir passo a passo a sua autonomia, admitindo o pluralismo de suas experiências e a sua convergência democrática no futuro, em direção a um novo projeto de direção política e cultural.
17Esses avanços só foram possíveis porque, naqueles anos turbulentos de crise e da ditadura que se seguiu, os trabalhadores resgataram a arte, o teatro, a cultura das mãos da burguesia e os assumiram como meios de expressão livre e espontânea de sua própria humanidade, manifestação profunda daquilo que é neles mais vasto, luminoso e universal, sua criatividade individual e social – virtudes que têm em comum com todos os homens e mulheres, mas que permanecem geralmente distorcidas e mutiladas sob o jugo do capital e do Estado burguês.
18Por isso tudo, dizíamos ao começar, que este livro retrata um momento crucial da nossa própria vida, não apenas porque realiza um balanço adequado das nossas ilusões e derrotas do passado. Essa história é crucial porque aponta um futuro que segue ainda em aberto para os trabalhadores deste país e que, se hoje parece quase tão remoto como nos anos 60, continua, entretanto, como um desafio enorme e uma esperança ativa; porque essa esperança e desafio incluem nada menos que o sonho ou a utopia de libertação da arte e da cultura dos trabalhadores, bem como de toda a sua vida, para além da dominação do Estado burguês e da exploração capitalista.
19Se hoje parece imprudente e temerário falar numa superação do capitalismo ou do Estado burguês, pensemos então como seria naquela época, de crise profunda das instituições e de verdadeiro massacre da cultura operária. Pois mesmo assim essa libertação foi aliada, ensaiada e antecipada, na prática fecunda de um grupo sindical. Eis a semente lançada pelos CPCs dos trabalhadores nos anos 60, a qual floresce hoje na pluralidade de formas sociais e individuais dos movimentos populares e dos trabalhadores. Onde quer que estejam, essas vozes polifônicas anunciam que a libertação dos trabalhadores virá a frutificar no futuro. É por isso que este capítulo da história dos operários do ABC diz a cada trabalhador brasileiro: « Esta é a sua história, falta você completá-la! »
Notas
1 Thimoteo Camacho é professor de sociologia na Universidade Federal do Espírito Santo.
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Referência eletrónica
Paulo J. Krischke, «Thimoteo Camacho. Cultura dos trabalhadores e crise política», Geografares [Online], 1 | 2000, posto online no dia 01 junho 2000, consultado o 19 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/geografares/23951
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