Texto integral
1Esse número da revista Geografares traz artigos de altos voos teóricos, o primeiro, de Jean Calmon Modenesi, intitulado A EcoFilosofia no pensamento de Heidegger e de Deleuze/Guattari, aborda uma questão central para os geógrafos no que diz respeito à imanência sociedade-natureza. O texto opera uma crítica do logocentrismo e do que chamarei de centro-humanismo, o colocar o homem como o centro do mundo. Para operar essa crítica desvela as diferenças das abordagens no pensador alemão e nos pensadores franceses, demonstrando que, apesar da contribuição para uma crítica do logocentrismo em Heidegger, ele permanece ainda de certa maneira sob o predomínio de um certo antropocentrismo, coisa que não ocorre com Deleuze e Guattari, notadamente na obra Capitalismo e esquizofrenia, em seu primeiro livro (O anti-édipo) e, sobretudo, no segundo livro, Mil Platôs. A Ecofilosofia, que Jean Calmon faz vir à luz na dupla francesa, se contrapõe à unidade, à totalidade e à identidade, bem como à unicidade do sujeito. Ela se impõe por meio dos combates filosóficos, o agon, operando uma derrota desses últimos conceitos canônicos na filosofia, utilizando para isso os conceitos de agenciamento, de multiplicidade e de hecceidade que se traduzem no vir-a-ser do homem, da natureza e do artifício. Modenesi de forma inovadora aborda a multiplicidade como contágio que se contrapõe ao conceito de totalidade e de unidade que são auto-evidentes e antecipados. Assim, demonstra, que o conceito de totalidade fica fora da sua própria teorização e, portanto, o autor escreve, ele aponta para uma parcialidade e não para uma « totalidade », pois, em razão da sua suposta auto-evidência, ele se escusa de provar sua consistência, mas, por sua vez, o contágio deve provar sua consistência de maneira frequente. Enfim, nos brinda com a noção de vitalismo superior, associado ao maquinismo, oposta ao vitalismo ingênuo e ao mecanismo, que me parece muito interessante e fértil. Esse vitalismo superior é a contra-ação, como paixão relativa à percepção e, sobretudo, ao cérebro, cérebro como « paciente com suas ações afetivas ». Afectos, cujas relações de força e dos devires apontam para a consistência da diferença pura em ato (em contra-ação)! Daí a ideia dos microcérebros em todo o Universo (plantas, seres orgânicos e inorgânicos, artificiais, etc.): uma vida inorgânica das coisas! Em uma fórmula, Modenesi resume o conteúdo do texto: O vir-a-ser do homem depende do vir-a-ser da natureza e do vir-a-ser do artifício para ser livre!
2O segundo texto teórico de Luis Carlos Tosta, Josimar Monteiro Santos e de Akylla Coser Chiabai Silva, Geografia em bases ontológico-existenciais através da fenomenologia-hermenêutica de Heidegger: o significado do existencial ser-em, também apresenta uma contribuição diferencial e remarcável para os debates ontológicos na Geografia. Os autores abordam a relação entre a Geografia e o pensamento de Heidegger, tendo como foco o problema da fundamentação ontológica desta ciência. Seu objetivo consiste em fomentar uma reabilitação da investigação sobre a ontologia na Geografia através do modo específico que o filósofo apreende o método fenomenológico. Para tanto, a discussão será orientada para a exposição do existencial ser-em que viabiliza a interpretação fenomenológica do espaço enquanto fenômeno originário que, para Heidegger, corresponde ao espaço existencial que estaria à base de toda representação conceitual das ciências que efetivam suas pesquisas através de uma determinação teórica sobre o espaço, como no caso da Geografia. Para tanto seria indispensável compatibilizar a investigação ontológica na Geografia com a analítica do ser-aí humano contida em Ser e Tempo.
3Após esses dois artigos que abrem o número temos uma série de artigos que trazem contribuições teóricas e com estudos empíricos que podem ser agrupados em três vertentes: Os problemas demasiadamente humanos do lugar (não-lugar) de determinadas populações e de certas infraestruturas que sofreram transformações com os efeitos da pandemia de Covid-19; Os aspectos relativos às centralidades urbanas e às redes de cidades e aos territórios-redes de empresas em contextos bem diversos; E, enfim, dois artigos singulares nesse conjunto, um sobre a migração de africanos no Ceará e o outro sobre os depósitos fluviais marinhos na zona costeira da região de Vitória no Espírito Santo.
4O artigo Ressignificando o não-lugar durante a pandemia COVID-19: homens, mulheres e crianças em situação de rua em São José dos Campos/SP, Brasil, de Marília Goulart Silva, Lidiane M. Maciel e de Adriane Aparecida Moreira de Souza, tem como tema as condições de vida da população em situação de rua durante a pandemia da COVID-19. O artigo aponta questões referentes à condição vivida pelas pessoas em situação de rua do município de São José dos Campos em São Paulo, considerando o uso dos espaços públicos como forma de sobrevivência. Os autores propõem uma discussão a partir da teoria de Marc Augé sobre o « não-lugar », refletida à luz de uma análise das notas etnográficas dos lugares ocupados por pessoas em situação de rua. As considerações finais deste artigo indicam uma ressignificação dos espaços ocupados, principalmente os de passagem como ruas, rodoviárias e praças, pela população em situação de rua. Verifica-se que estes homens, mulheres e crianças agem de maneira a transformar os « não-lugares » da modernidade em lugares de disputa e significação.
5O artigo Trens de carga como serviços essenciais: As ferrovias brasileiras e a pandemia, de Jéssica de Fátima Rossone Alves e Carla Hirt, sistematiza uma crítica acerca do transporte operado nas ferrovias brasileiras durante a pandemia de COVID-19. Parte de uma perspectiva histórico-estrutural, analisa o modelo hegemônico da produção de transporte ferroviário no Brasil, discute as consequências deste modelo nos territórios e apresenta as políticas priorizadas pelo Estado brasileiro na conjuntura pandêmica, as quais são fundamentais na garantia da ordem neoliberal, condicionando o planejamento territorial e a gestão da infraestrutura ferroviária. A partir desta leitura, percebe-se que o Brasil poderia ter encontrado nestas infraestruturas uma alternativa logística para o enfrentamento da pandemia, caso a opção política e a gestão das mesmas fossem diferentes.
6O artigo Território-rede como estratégia de reestruturação produtiva: análise da indústria de calçados nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul – Brasil de Edilson Pereira Junior, José Eudázio Honório Sampaio e João Vitor Oliveira de Alencar, aborda como as transformações materializadas com a inovação tecnológica, a divisão técnica do trabalho e a reorganização espacial dos circuitos produtivos originam diferentes estruturas econômicas de arranjos e de sistemas territoriais de produção. O recorte empírico da indústria de calçados no Brasil é tomado como exemplo, em especial nos estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo, onde a produção é mais antiga e os impactos da reestruturação reconfiguram suas funções tradicionais. Estes estados comandam novos sistemas de fluxos e de polarizações, não sem criar diferentes experiências de tensões e coesões, que alteram as competências, as escolhas e as decisões internas e externas ao território. Como resultado, é fundamental a conformação do território-rede, que detêm a capacidade de articular processos produtivos distintos, mas sincrônicos em toda sua atividade, efetivando a conectividade da produção industrial calçadista em múltiplas escalas geográficas.
7No texto Novas expressões de centralidades urbanas e a diferenciação socioespacial: um olhar através das práticas espaciais, Késia Anastácio Alves da Silva, Vanessa Moura de Lacerda Teixeira e Eliseu Savério Sposito, analisam o fato de que as cidades contemporâneas têm sido perpassadas pela emergência de novas áreas de concentração de comércios e serviços e pela densidade de fluxos em direção a essas áreas, o que caracteriza o surgimento de novas expressões de centralidades. O objetivo dos autores foi o de analisar a diferenciação socioespacial nos usos e apropriação em centros urbanos por parte de sujeitos que residem em habitats voltados à classe média e à elite. Duas cidades médias localizadas no estado de São Paulo são objetos de estudo: Ribeirão Preto e Presidente Prudente. A emergência de novas centralidades é analisada através da distribuição das atividades de comércios e serviços, aliada à reestruturação das cidades em curso. A frequentação, as preferências e motivações para realização de práticas espaciais em determinadas áreas centrais, lidas através de entrevistas qualitativas, clarificam o entendimento sobre as segmentações e diferenciações que caracterizam a produção de centralidades no contexto da urbanização contemporânea.
8No artigo Habitat disperso e seu impacto na transformação do uso da terra ao redor da cidade de San Ramón, Costa Rica, Marvin Quesada nos apresenta uma realidade bem particular da expansão das cidades em meio rural na Costa Rica em função das migrações e da modificação dos usos do solo, assim em quatro décadas as áreas rurais dispersas e a cidade intermediária de San Ramón tiveram uma transformação radical no uso da terra. Em San Ramón, cidade « intermediária » e nas capitais distritais mais próximas, o uso da terra se alterou gradualmente entre 1979 e 2019, assim as matas foram reduzidas em 30,8%, enquanto as áreas urbanas aumentaram 22%, sendo o uso com maior aumento. O autor também demonstra como a cidade de San Ramón se tornou um eixo polarizador dos distritos rurais da região.
9No artigo Ação coletiva e juventude: territorialidades dos coletivos juvenis da cidade de Governador Valadares-MG de Michele Silva Maurer e Maria Terezinha Bretas Vilarino, foram analisadas as múltiplas territorialidades presentes no contexto dos coletivos juvenis e as relações que as produzem. O estudo sobre juventude tem como foco as associações de ação coletiva e as relações que os jovens estabelecem com a cidade de Governador Valadares em Minas Gerais, ocupando o espaço e produzindo territorialidades. Os coletivos juvenis conectam os jovens, promovem a sociabilidade e possibilitam uma mediação com a realidade vivida, criando e modificando as relações com o espaço urbano. Pela noção de coletivos juvenis, entende-se que estes são organizados por jovens e que emergem de situações presentes, entretanto, o modelo de organização não é exclusivo da juventude, mas corresponde a uma tendência do associativismo na atualidade, por apresentar estruturas mais flexíveis, assim como dinâmicas de organização e gestão mais horizontais.
10O artigo Migração internacional de africanos para o Brasil e suas territorialidades no estado do Ceará de Denise Cristina Bomtempo e Kananda Beatriz Pinto Senna, investiga a presença dos africanos no Ceará o que permite com que se constate territorialidades e circularidades migratórias múltiplas, já que diversos são os perfis dos sujeitos em mobilidades (estudantes, trabalhadores e investidores). Numa primeira fase da migração, eles fixam residência na cidade de Fortaleza, Redenção e Acarape, mas ao longo do tempo, por não retornarem ao país de origem, constroem territorialidades e realizam circularidade por diversos bairros da cidade de Fortaleza e por diferentes cidades no território cearense. Vale ressaltar que a presença desses migrantes, no recorte empírico evidenciado, tem aumentado significativamente, demonstrando, o papel de centralidade do Ceará nas novas rotas e dinâmicas migratórias configuradas no território brasileiro.
11Finalmente, o artigo Depósitos fluviais e marinhos na zona costeira: uma abordagem sedimentológica e morfológica da Região de Vitória no Espírito Santo, de Giseli Modolo Vieira Machado e Bruna Lourenço Pinheiro, caracteriza os sedimentos de superfície das planícies flúvio-marinhas da região de Vitória (ES) e infere sobre os processos deposicionais e a origem das areias com base nos parâmetros sedimentológicos (granulometria, composição, mineralogia e morfoscopia dos grãos de quartzo) e morfológicos. Os sedimentos foram distinguidos em depósitos arenosos e de terras úmidas. Apesar da imaturidade textural, os depósitos arenosos foram classificados em fluviais e marinhos. Contudo, os parâmetros sedimentológicos não foram suficientes para sanar dúvidas de proveniência em algumas amostras. Neste caso, a ausência de feições morfológicas bem definidas dos depósitos arenosos como alinhamento de cristas arenosas são recursos importantes para uma interpretação paleoambiental, especialmente quando os parâmetros sedimentológicos parecem ser ambíguos.
Para citar este artigo
Referência eletrónica
Cláudio Luiz Zanotelli, «Editorial», Geografares [Online], 33 | 2021, posto online no dia 15 dezembro 2021, consultado o 05 dezembro 2023. URL: http://journals.openedition.org/geografares/2635
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