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Ação coletiva e juventude: territorialidades dos coletivos juvenis da cidade de Governador Valadares-MG

Collective action and youth: territorialities of youth collectives in the city of Governador Valadares-MG, Brazil
Acción colectiva y juventud: territorialidades de los colectivos juveniles en la ciudad de Governador Valadares, Brasil
Michele Silva Maurer e Maria Terezinha Bretas Vilarino

Resumos

Este estudo tem como objetivo compreender as múltiplas territorialidades presentes no contexto dos coletivos juvenis e as relações que as produzem. O estudo sobre juventude tem como foco as associações de ação coletiva e as relações que os jovens estabelecem com a cidade da Governador Valadares em Minas Gerais, Brasil, ocupando o espaço e produzindo territorialidades. Os coletivos juvenis conectam os jovens, promovem a sociabilidade e possibilitam uma mediação com a realidade vivida, criando e modificando as relações com o espaço urbano. Pela noção de coletivos juvenis, entende-se que estes são organizados por jovens e que emergem de situações presentes, entretanto, o modelo de organização não é exclusivo da juventude, mas corresponde a uma tendência do associativismo na atualidade, por apresentar estruturas mais flexíveis, assim como dinâmicas de organização e gestão mais horizontais.

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Notas da redacção

Artigo recebido em: 04/02/2021
Artigo aprovado em: 06/10/2021

Texto integral

Introdução

1A delimitação do termo juventude remete a um fenômeno complexo e em permanente construção, podendo assumir diferentes significados a depender do contexto social. Sua delimitação como fase ou processo remete à constituição dos sujeitos e possui dois aspectos que devem ser levados em conta, sendo o primeiro universal e marcado pelas transformações biológicas e psicológicas ocorridas numa determinada faixa etária. Como segundo aspecto, temos as transformações sociais vividas na adolescência, a ampliação de experiência de vida que marca a entrada na juventude. De acordo com Dayrell e Carrano (2014), nessa fase o sujeito demonstra « ter necessidade de menos proteção por parte da família e começa a assumir responsabilidades, a buscar a independência e a dar provas de autossuficiência, dentre outros sinais corporais, psicológicos e de autonomização cultural ». (DAYRELL; CARRANO, 2014, p. 111).

2Ainda, de acordo com Dayrell (2003), pode-se falar em juventudes para pensar na diversidade de maneiras de ser jovem e de ocupar os espaços sociais e das relações que o jovem estabelece com a variedade de mundos que constitui sua realidade vivida. A família, o bairro, a escola, os grupos de amigos e o trabalho são espaços elementares de experiência, mas foca-se aqui nos coletivos juvenis porque se configuram como espaços de sociabilidade que possibilitam a produção de uma relação com a cidade, tanto em aspectos afetivos, quanto políticos. Essa experiência contribui para a compreensão da realidade, envolve elementos materiais e imateriais, compõe territorialidades e o fazer social desses sujeitos. Em suas relações cotidianas, os jovens atribuem sentidos aos espaços, tendo como referência a multiplicidade de experiências que carregam consigo (HAESBAERT, 2007). Aos territórios são atribuídos diversos sentidos e as identidades resguardam a multiplicidade de experiências. Entende-se por territorialidade, as relações estabelecidas que possuam caráter fortalecedor de um território, sejam elas de apropriação ou de diferenciação, materiais ou simbólicas.

3Os coletivos juvenis são organizações que se distinguem de outros movimentos sociais por sua origem e estrutura. De acordo com Ángela Montoya (2010), os coletivos se originam dos próprios grupamentos de jovens que compartilham de uma cultura e propósitos, construindo uma estrutura emergente em torno de interesses sociopolíticos alternativos ligados ao cotidiano destes jovens. Os coletivos juvenis tendem a desenvolver ações de enfrentamento das contradições sociais vividas pelos jovens, focando ou baseando-se na cultura e na estética. Outra tendência dos coletivos é a resistência à organização hierárquica que produz um modelo de autogoverno e gestão horizontal.

4Assim como os coletivos, o bairro, a família, a turma (ou as turmas) permitem que os jovens experimentem o mundo, sobre ele aprendam e dele se apropriem, participando da construção de perspectivas e expectativas. A discussão aqui busca problematizar a experiência e o cotidiano de jovens valadarenses, a partir do que podemos ver as redes de sociabilidade e de ação coletivas como elemento de mediação entre os jovens e o mundo, pois são espaços de experimentação e identidade, que ajudam os sujeitos a compreenderem as contradições vividas e compartilharem os sentidos de sua realidade. Com isto, se quer compreender as múltiplas territorialidades presentes no contexto dos coletivos juvenis e as relações que as produzem.

5Para isto, utiliza-se uma abordagem interdisciplinar que articula a Sociologia e os Estudos Territoriais. Dayrell (2003, 2005) subsidia a discussão sobre a pluralidade da juventude, desenvolvida por ele de forma articulada com o conceito de espaço. Para compreender a questão das territorialidades e da formação de redes territoriais, buscaram-se subsídios em Haesbaert (2004, 2007). Outros autores ainda contribuem para a compreensão das ações coletivas e dos papéis que os coletivos exercem na construção de territorialidades (GOHN, 2018; TURRA NETO, 2011; PERALVA et al., 2017)

6Com base nas informações fornecidas pelos jovens contatados na pesquisa, através de entrevistas e observação participante em reuniões e eventos organizados pelos coletivos, foram identificados 16 grupos em atividade em Governador Valadares que constituem uma rede com articulações diversas, entre eles e com outras organizações sociais. A partir dos objetivos apontados e dos modelos de ação observados, estabeleceu-se uma tipologia dos coletivos com o fim de compreender as territorialidades e as redes de ação.

Caminhos da pesquisa

7Os caminhos percorridos durante a pesquisa começaram com o interesse em compreender algumas contradições observadas no cotidiano de trabalho com jovens do Ensino Médio e Superior, mas este interesse, a seguir, se deslocou da educação para outros espaços que constituem o cotidiano juvenil. O trabalho situa-se no campo das pesquisas qualitativas e interdisciplinares, utilizando como técnicas de coleta de dados a entrevista não estruturada e a observação participante.

8Tendo como lócus de pesquisa Governador Valadares, cidade mineira do Vale do Rio Doce, para seleção e delimitação do público pesquisado, adotou-se a amostragem por conveniência (PRODANOV; FREITAS, 2013), método em que a cada contato, entrevista ou observação, solicita-se ao participante a indicação de novos colaboradores, até que ocorra a saturação dos dados ou de participantes. O processo teve início com um jovem reconhecido por atuar junto a vários coletivos e outros movimentos sociais vinculados à juventude com quem se teve acesso. Esta escolha permitiu ter contato com diferentes grupos e eventos e ensejou encontrar compreensões distintas sobre o que é um coletivo. As entrevistas e observações foram realizadas no período entre outubro de 2019 a janeiro de 2020.

Figura 1 – Localização do município de Governador Valadares

Figura 1 – Localização do município de Governador Valadares

Fonte: Infraestrutura Estadual de Dados Espaciais de Minas Gerais

9Ao todo, foram realizadas quatorze entrevistas, todas gravadas e transcritas para a análise, com consentimento expresso dos participantes autorizando também a divulgação de seus nomes. Deste total, 10 entrevistas ocorreram de forma individual e quatro delas realizadas com pequenos grupos representando o coletivo, totalizando 24 pessoas que contribuíram com seus relatos durante o processo de entrevistas. Quando as indicações dos participantes começaram a se repetir, foi possível notar que o uso da técnica de amostragem por conveniência limitou as entrevistas a um conjunto de pessoas e coletivos que compõem uma rede específica.

10Complementando as entrevistas, optou-se ainda pela coleta de dados no modelo observador-como-participante que, de acordo com Angrosino (2012), é aquele em que o pesquisador se relaciona com os sujeitos pesquisados apenas como pesquisador, sendo assim reconhecido por eles, e ainda realiza suas atividades em breves períodos, podendo ter a finalidade de complementar as entrevistas e outros métodos de coletas, uma vez que a observação pode fornecer informações sobre o contexto da investigação. Embora reconhecendo o potencial de desvio seletivo da « realidade », da interferência causada pela presença de um pesquisador, tivemos a oportunidade de participar de reuniões de trabalho, encontros regulares e eventos comemorativos que serão apontados no texto a seguir, não somente atividades de coletivos específicos, como também de momentos de integração entre eles.

11Os dados foram analisados utilizando as categorias apontadas pelo referencial teórico, em forma de « conceitos mais gerais e abstratos » (GOMES, 2001, p. 70) e também de categorias que emergiram das falas nos entrevistados. Como categorias gerais, pré-existentes ao trabalho de campo temos as territorialidades, lugares, grupos de sociabilidade, redes, as formas de expressão juvenil e engajamento. A partir da análise inicial das entrevistas, identificamos como recorrentes as discussões sobre cultura, lazer e trabalho, assim como a relação com instituições e poder público.

Juventudes e multiterritorialidade

12Ao se delimitar a juventude como foco de pesquisa, é preciso ter em mente que não se trata de uma categoria homogênea, mas de um grupo de caráter dinâmico e descontínuo. Existem dois grandes conjuntos de estudos sobre juventude envolvendo estudos socioculturais, perspectivas psicológicas e até criminalísticas, de acordo com Rosana Reguillo: o primeiro grupo de estudos é sobre os jovens « incorporados » que são analisados a partir de sua relação com a escola, o trabalho, religiosidade e consumo cultural; no outro grupo, estão os estudos sobre os jovens « dissidentes » ou « alternativos », com trabalhos dedicados à sua não incorporação ao padrão dominante. Para a autora, os estudos sobre a juventude precisam romper essa barreira e problematizar « a multiplicidade diacrônica e sincrônica dos modos de ser jovem », e adicionar alguns aspectos na busca da definição da categoria de análise juventude, como a linguagem, a estética, o ativismo e a rebeldia. (REGUILLO, 2013).

13O termo juventudes é trazido por Dayrell (2003, 2005), referindo-se aos modos de vida cotidianos e específicos que podem, ou não, ganhar visibilidade no espaço urbano. Uma variedade de mundos que constituem diferentes culturas juvenis, em contraponto aos aspectos de contradição vividos por estes jovens e que precisam ser equacionados. É necessário um olhar em que o jovem seja entendido como sujeito de direitos, que vive, interpreta e significa sua realidade, um olhar para as potencialidades e possibilidades na juventude (DAYRELL; CARRANO, 2014) e os coletivos são espaços privilegiados para tal olhar.

14De acordo com Alcade (2013), a arte, a cultura e o conteúdo político possibilitam a construção de tecidos sociais com base em ações colaborativas, demonstrando o caráter de protagonismo juvenil presente nos novos movimentos sociais. Os coletivos tendem a valorizar a cultura da periferia, a sociabilidade dos jovens e as intervenções artísticas como práticas de produção e apropriação da cidade sob uma lógica de compartilhamento. A partir de seu cotidiano, as manifestações culturais próprias da juventude emergem em novos contextos e reinventam as formas de se relacionar com o território.

15A cidade assume um sentido que é construído e reconstruído por esses sujeitos no processo de produção de suas relações. Os espaços físicos são tomados pelos grupos e, como espaços sociais que são, assumem novos significados. As formas de sociabilidade previstas e normadas para determinados espaços se transformam através de estratégias próprias e geram novas possibilidades de relações, revelando certa intencionalidade de criação de tais lugares, sendo ela percebida por seus criadores, ou não. A integração das noções de espaços físicos e espaços sociais é demonstrada no cotidiano juvenil quando os grupos ressignificam os lugares favorecendo a sociabilidade, a troca de experiências e a construção de identidades, individuais e coletivas. Determinadas áreas de uma cidade se tornam lugares familiares, reconhecidos como espaços de integração e circunscrevendo o pedaço desses jovens (MAGNANI, 2003).

16Neste processo, a arte e a cultura têm um importante papel. Almeida (2013) aponta que a inclusão de atividades de lazer, entretenimento e sociabilidade passa a ser entendida como uma demanda das novas gerações e são formas de participação e intervenção no espaço público. A noção de cidadania cultural emerge e se solidifica entre os jovens, desencadeando ações de apropriação do espaço urbano, que ocupam ruas e praças com as marcas das culturas juvenis.

17Enquanto grupos, os jovens estabelecem relações funcionais e interdependentes que produzem espacialidades específicas no espaço urbano e apontam para processos distintos de territorialização, envolvendo diferentes tipos e níveis de controle territorial. Tais relações podem ser mais fluidas ou mais delimitadoras, a depender do contexto dos padrões estabelecidos para uso de determinados espaços. Tais relações podem, ainda, ser múltiplas, ou mesmo sobrepostas, apontando para um espaço hibrido, que reúne a materialidade e a imaterialidade do território (HAESBAERT, 2017).

18Haesbaert (2007) define a territorialização como um conjunto de processos de produção e organização do espaço que se configura em diferentes níveis de controle do território. Os processos de territorialização podem ter um caráter mais flexível o que permite mais conexões e sobreposições de territorialidades, ou um caráter mais restritivo o que dificulta a pluralidade de identidades e poderes, ou ainda, territorializações desterritorializantes, que o autor define como resultado a produção de espaços desidentificadores, ou destruidores da cidadania. Os coletivos constituem espaços que tendem a ser plurais, remetendo à noção de territorialidades mais flexíveis ou mesmo múltiplas, segundo a distinção de Haesbaert; mas como grupos, estão envolvidos em processos de territorializações e relações diversas com a cidade e, em muitas situações, se contrapondo a uma lógica monista adotada para utilização dos espaços.

19Haesbaert também apresenta o conceito de territorializações efetivamente múltiplas, que corresponde à estrutura de relações « construída por grupos que territorializam na conexão flexível de territórios-rede multifuncionais, multigestionários e multi-identitários. » (HAESBAERT, 2007, p. 32). Para além de relações interdependentes com variado grau de integração, são territórios em que ocorre a integração das funcionalidades configuradas numa rede. A multiplicidade de relações e as filiações que os jovens estabelecem em diferentes coletivos, assim como a organização horizontal na medida em que favorece o fluxo multidirecional das informações, favorecem também a construção de uma rede multiterritorial.

20Ainda é em Haesbaert (2007) que pode ser buscada outra distinção que reitera a conceituação apresentada. De um lado está a noção de múltiplos territórios, que se relaciona com uma noção de multiterritorialidade em sentido amplo, remetendo ao fato de sujeitos individual ou coletivamente estabelecerem relações em diferentes espaços e escalas sobrepostos, produzindo também a ideia de multipertencimento. Por outro lado, o autor propõe que a multiterritorialidade não ocorre apenas de maneira quantitativa, mas também qualitativa, uma vez que existem diversas possibilidades de combinação entre as formas de se apropriar e intervir no espaço, que produzem uma enorme gama de territorialidades. Alguns fatores corroboram para a construção desta multiterritorialidade em seu aspecto qualitativo e o autor indica que são os agentes que promovem a multiterritorialização, o caráter variável entre o material e o simbólico do território, a compressão espaço-tempo, as continuidades e descontinuidades do território e a combinação de tempos espaciais.

Sociabilidade e associativismo juvenil

21Entende-se como necessário pensar na forma como os territórios estão articulados e nas suas possíveis integrações com as políticas públicas e os territórios ocupados pelos jovens. A escola, a família, os grupos, o lazer e o trabalho constituem redes de sociabilidade que se alteram na medida em que o jovem as vive e modifica seu olhar sobre cada uma delas e sobre si mesmo. Entretanto, a passagem por diferentes territórios não ocorre sem tensões, sendo marcada por conflitos, permanências, negociação por espaço, tanto entre diferentes culturas juvenis, como entre grupos geracionais (TURRA NETO, 2011).

22Novas formas de ocupação do espaço são produzidas ao longo dos processos sociais, assim como novas formas de disputa e de enfrentamento. Os novos formatos de ação coletiva e de protestos são o resultado da complexidade do associativismo brasileiro, forjado no decorrer das últimas décadas, de acordo com Luciana Tatagiba (2014). Para a autora, ocorreu a emergência de grupos políticos e culturais das periferias, assim como o aumento da presença de grupos com variado grau de reconhecimento político na disputa de direitos e apresenta uma indisposição para o diálogo institucional, uma vez que se configura a partir da incapacidade da estrutura política para ouvir e encaminhar as demandas desses segmentos.

23Concordando com Melucci (1999), tomaram-se como ações coletivas aquelas que explicitam um conflito social e apelam para a solidariedade para romper os limites do sistema em que tal conflito se produz. Essas possibilidades de atuação que são estabelecidas ao longo do tempo e aproximam da reflexão sobre a interdependência (ELIAS, 2014). A estabilidade de alguns grupos depende de processos de diferenciação e de assimilação, tanto dentro do grupo, quanto em relação ao ambiente.

24Para Tânia Quintaneiro (2010), as mudanças nas configurações sociais ocorrem em surtos ou em « ondas » e essas grandes oscilações na balança de poder provocam embates e, por consequência, a necessidade de se estabelecer estratégias adequadas ao evento e ao momento. Desse modo, o compartilhamento de expressões e identidades, assim como as redes de sociabilidade e ação constituem estratégias que se materializam em intervenções como festas, rodas de conversa, eventos culturais ou rolezinhos.

25As redes de ação coletiva conectam de forma horizontal indivíduos ou grupos que compartilham valores ou objetivos e tendem a ser descentralizadas, de acordo com Souza e Quandt (2008). Para esses autores, as redes podem assumir diferentes formas no decorrer do tempo, a depender dos sujeitos e dos meios de conexão. Reunindo-se em torno de diferentes objetivos (políticos, econômicos ou culturais) e escalas (locais ou internacionais), as redes de caráter cultural tendem a ser mais coesas e próximas, enquanto que as redes de origem econômica podem abranger grandes distâncias, dificultando a integração de seus pontos. Ainda, as redes informais são baseadas no fluxo de informação e apresentam processos de decisão marcadamente participativos e negociais.

26De acordo com Gohn (2018), por seu caráter dinâmico, os coletivos passam por mudanças internas e externas com mais facilidade que movimentos tradicionais, resultando em diversas configurações de organização e ação. Por um lado, um coletivo pode se transformar em movimento ou se autodenominar movimento, através de processos de formalização e institucionalização, assim como articular-se a movimentos tradicionais a estes se incorporando. Em processo inverso, movimentos tradicionais, na medida em que seus integrantes e o contexto de atuação se desprendem das formas políticas tradicionais, assumem formas mais horizontais e fluidas de organização, no todo ou em seções organizadas. Como resultado da confluência de tais processos, é possível observar formas híbridas de organização autodenominadas coletivos, num continuum entre os modelos ideais e aquelas estruturas mais hierarquizadas e formais.

27A depender do perfil, do contexto de inserção e das estruturas de relações estabelecidas entre os sujeitos, um coletivo poderá desenvolver práticas contestatórias ou não. A adesão aos coletivos se deve principalmente aos aspectos culturais e estéticos, assim como por se colocarem como alternativa aos métodos de ação tradicionais. Em seu interior, os coletivos produzem novas dinâmicas de ação coletiva, linguagem e formas de solidariedade interna.

Coletivos juvenis e redes de ação em Governador Valadares

28Ao analisar a adesão de jovens a grupos de sociabilidade, perpassa-se pelas construções identitárias, tendo como referência as relações que os sujeitos desenvolvem entre si e também com estruturas sociais mais amplas. Os espaços de sociabilidade são construídos por diferentes gerações a partir de referências culturais distintas que se vão pluralizando ao longo do tempo, em reciprocidade à ampliação das possibilidades de experiências no espaço urbano. Constitui-se uma relação diacrônica, em que a complexificação do espaço urbano possibilita novas formas de experiência coletiva, enquanto cada geração desenvolve novos espaços e apropriações distintas da cidade (TURRA NETO, 2012).

29Nessa rede ou movimento espaço-temporal, cada pessoa está vinculada à outra através de relações funcionais nem sempre visíveis ou reconhecidas, mas o que difere na construção de um coletivo é o sentido da relação estabelecida entre eles e com os outros. Essas redes de relações funcionais estruturam-se de diversas formas a depender do contexto, e produzem associações com variado grau de autonomia e de dependência (ELIAS, 1994). Essa interdependência e as variações na balança de poder produzem contextos mais fluidos, em que as pessoas circulam e se organizam com maior facilidade, assim como produzem contextos de maior acirramento.

30Para compreender o processo de construção do cenário atual, montou-se um breve histórico da formação dos coletivos juvenis com base nas informações obtidas nas entrevistas, e como síntese desse histórico apontaram-se quatro fases das organizações de jovens em Governador Valadares. Ainda, buscaram-se em Peralva et al. (2017) e Gohn (2018), subsídios teóricos para compreensão dos eventos apontados que se referem ao contexto nacional.

  • 1 A II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco-92, ac (...)
  • 2 Os Circuitos de Cultura foram um conjunto de eventos realizados em diversas cidades de Minas Gerais (...)

31Como primeira fase dessas organizações, têm-se os relatos de ações culturais voltadas para o público jovem que ocorreram na década de 1990 e início dos anos 2000. Como exemplo, tem-se o Rock’n Rio Doce, um festival de música em que o palco também foi ocupado por movimentos ambientais e que aconteceu sob a influência de outros dois grandes eventos o Rock’n Rio de 1991 e a Eco-92.1 De acordo com os entrevistados, outro marco foi a realização dos Circuitos de Cultura2 no início dos anos 2000, que contribuíram para a formação artística de muitos jovens. Os eventos deste período estavam voltados para o público jovem, como dito antes, mas havia uma grande contribuição do setor público e de grandes empresas do setor privado em sua realização.

  • 3 O Fórum Social Mundial é um evento articulado por movimentos sociais, ONGs e sociedade civil, e org (...)

32De acordo com Angelina Peralva et al. (2017), ao longo da década de 2000, começam a ocorrer mudanças nos modelos de mobilização social em todo o país: o foco nas realidades locais, as organizações horizontais e o crescimento da participação das mídias digitais favoreceram a formação de coletivos e a organização de uma série de protestos. Ainda, a realização do Fórum Social Mundial3 que teve edições em Porto Alegre e outras cidades no mundo, favoreceu a emergência da discussão sobre os Direitos Humanos como pauta de diversos movimentos sociais.

33Com o crescimento do modelo de organização de coletivos, marcando o início do que se delimitou como segunda fase deste histórico, em 2005 foi criado o Coletivo Pedra Negra em Governador Valadares, grupo formado por jovens que tinha um perfil progressista e prezava pelo apartidarismo. O Pedra Negra tinha um repertório marcado pela cultura e expressões artísticas e realizava ações reivindicatórias que aconteciam em praças públicas e locais de grande circulação de pessoas no centro da cidade. As intervenções incluíam cine-debate nas praças, eventos musicais e esportivos, assim como teatro e artes plásticas. O objetivo era oferecer atividades de lazer e cultura de forma gratuita, muitas vezes em horário comercial, para alcançar o público que estivesse no centro da cidade. Outras iniciativas surgiram no mesmo período, com apoio do Departamento de Juventude, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, Esporte, Lazer e Juventude do município de Governador Valadares, criado em 2012.

  • 4 A PEC 241 foi o Projeto de Emenda Constitucional, apresentado e aprovado no ano de 2016, que propôs (...)

34No período entre os anos de 2013 e 2016, ocorre uma forte polarização entre os movimentos sociais em Governador Valadares. Os relatos apontam que, mesmo apartidários, os coletivos possuíam perfil progressista, o que afastava jovens da ala conservadora presente na cidade, mas a polarização no cenário nacional e a visibilidade que movimentos de direita tiveram a partir de então, fizeram com que ações-manifesto de ambos os polos emergissem. O mesmo aconteceu no cenário nacional, quando uma série de manifestações de rua que começaram com reivindicações pela redução de tarifa do transporte público, se desenvolveu com as questões de circulação e direito à cidade, culminando em inúmeros protestos e acirramento entre os polos políticos, de acordo com Peralva et al. (2017). Essa fase ainda é marcada pelos manifestos e ocupações de escolas e universidades públicas como ação dos movimentos de estudantes contra as reformas do Ensino Médio, projeto Escola Sem Partido e contra a PEC 2414 (GOHN, 2018).

35A quarta fase que foi identificada é a marcada pela desarticulação e reorganização dos coletivos. Alguns fatores como a excessiva polarização política que dificultou a manutenção do perfil apartidário dos coletivos, a redução do fomento para políticas públicas para juventude e cultura e a dificuldade de renovação dos quadros de participantes dos movimentos contribuíram para que alguns coletivos se desarticulassem. Entretanto, a situação desfavorável levou os integrantes a buscarem outras formas de ação, assim como novas articulações e os coletivos voltados para a sociabilidade e para ações de integração e lazer entre os integrantes tiveram papel importante.

36No amplo contexto de tensões e conflitos entre grupos sociais, o processo de desenvolvimento se dá pela alteração no quadro de funções dos sujeitos. Os sujeitos se modificam a partir das relações que estabelecem e o conjunto das ações modifica o entrelaçamento de tais relações, resultando em quadros sociais mais ou menos estáveis. Esse resultado, um padrão de relações mais ou menos estável de relações, produzido pelo conjunto de ações dos sujeitos no desenvolvimento de relações interdependentes, é o que Elias (2014) define como configuração. Ela apresenta certa independência das intenções que os sujeitos possam ter, uma vez que é estabelecida entre eles e com contextos mais amplos, como pudemos notar nas entrevistas e observações realizadas.

37Essas formas de organização que os indivíduos coletivamente estabelecem, apontam para uma intencionalidade de influenciar através da produção espaços para a sociabilidade, lazer e ação política, também de comunicação da presença desses jovens na cidade. Relacionamos tal compreensão ao conceito definido Sack (1993), no qual temos a territorialidade humana como a tentativa de indivíduos ou grupos de influenciar ou afetar pessoas e objetos, delimitando e afirmando o controle em uma área geográfica. Assim, tomamos os próprios coletivos como territorialidades desses jovens e como formas destes se conectarem nas redes de sociabilidade, de cultura e de ação social.

38Com base nas informações fornecidas pelos participantes da pesquisa sobre os objetivos e modelos de ação de cada coletivo, estabeleceu-se uma tipologia, sem a pretensão de classificá-los ou fixar uma identidade para os grupos, mas buscando discutir os campos de ação e as formas de articulação entre eles. Apresentou-se os coletivos localizados durante o trabalho de campo que mais se aproximam de cada conjunto proposto, mostrando algumas categorias características, como o perfil dos integrantes, da expressão e das pautas, o modelo de organização, o repertório e os meios de difusão.

Coletivos de cultura, arte e expressão

39Neste conjunto, foram reunidos os coletivos que buscam debater assuntos relacionados à diversidade, à democracia e o acesso à cultura e o caráter identitário presente nas expressões artísticas. Eles atuam principalmente na organização de eventos culturais, mas podem promover articulações com o esporte e a política, proporcionando transversalmente espaços para discussão de direitos humanos, direito à diversidade, meio ambiente e outros. As iniciativas artísticas e culturais ainda representam um meio de sobrevivência bastante significativo com a divulgação dos trabalhos locais, uma vez que os jovens que participam destes grupos, em geral, têm acesso a postos de trabalho caracterizados pela baixa remuneração, qualificação e gratificação pessoal. Durante as incursões em campo, fez-se contato com cinco grupos com estas características:

Atrás do Palco

40O Grupo de Teatro e Cia. de Artes Atrás do Palco tem como foco a difusão das expressões artísticas, especialmente o teatro, a dança e o circo. Realiza a montagem de espetáculos teatrais, mantendo uma relação próxima com a Secretaria de Cultura do município e com organizações de fomento à cultura. Possui uma organização horizontal e seu quadro de integrantes foi renovado parcialmente, desde o início das atividades na década de 1990, quando funcionava como escola de teatro amador.

Batalha do Deck

41O coletivo utiliza a música, a dança e a poesia como forma de denúncia e protesto contra diversas formas de preconceito e as situações de precariedade vividas pelos jovens de periferia. O Deck é um espaço na área central da cidade onde jovens adeptos da cultura Hip Hop se reúnem para realização das batalhas e também para a sociabilidade. A organização das batalhas tem se pautado pelo aperfeiçoamento e desenvolvimento da técnica dos rimadores, assim como pela formação de uma rede de apoio para produção e divulgação de arte de rua.

Brotas

42O coletivo é formado por artistas locais e outras pessoas ligadas à produção cultural, alguns deles com forte vínculo a outros coletivos também. Foi criado para incentivar a arte autoral no município e promove o Brotas Valadares Resiste, um festival que reúne música, dança, artesanato, fotografia, moda e outras expressões artísticas, proporcionando assim um espaço de troca de experiências e de divulgação dos trabalhos de artistas locais.

Graffiti

43O grupo foi criado por artistas de rua que utilizam a técnica do grafite com o objetivo de criar uma rede de produção e difusão da arte, buscando espaços para divulgação das obras. O Graffiti participa de diversos eventos, contribuindo com intervenções artísticas, assim como desenvolve oficinas em parceria com escolas de Governador Valadares e de outros municípios. O grupo vem se desmobilizando diante da profissionalização dos integrantes e da dificuldade de engajamento de novos participantes.

Núcleo da Virada Cultural

44O coletivo atua no campo do direito e acesso à cultura, buscando estabelecer parcerias com o poder público e com o setor privado para a realização de eventos. O coletivo organiza a Virada Cultural em Governador Valadares, evento que envolve exposições, oficinas de arte, debates, apresentações musicais, literatura, artes visuais e esporte. Busca valorizar a produção artística local e promover eventos economicamente acessíveis para toda a população. Também tem como pauta a ocupação dos espaços públicos para realização de atividades culturais e de lazer.

Coletivos de esporte e lazer

45Utilizando as práticas esportivas como marca identitária, estes coletivos desenvolvem redes e espaços de sociabilidade para ocupação do espaço urbano, buscando estruturas de lazer e desporto alternativas. Como grupos de sociabilidade e identidade, tendem a uma renovação contínua, tanto do quadro de praticantes quanto de suas atividades. Isto ocorre porque suas atividades exigem alterações e alternâncias contínuas. Constituem grupos que apresentam características de serem mais fechados e voltados para a sociabilidade, mas ganham visibilidade ao se reunirem em praças públicas ou ao circularem em grupo pela cidade.

Associação de BMX Street e Dirt

46Reúne praticantes de ciclismo na modalidade BMX Freestyle e atua na organização de campeonatos de BMX e eventos integrados com outras modalidades esportivas e arte de rua. O objetivo é proporcionar espaços de lazer para os jovens, assim como a troca de experiências e a profissionalização do esporte. A organização é horizontal, mas alguns integrantes se destacam por atuarem no esporte profissional ou representando o esporte em organizações sociais e junto ao poder público, o que lhes confere uma aproximação de modelos tradicionais de associativismo.

Coletivos de Ciclismo Grau

47Trata-se de um conjunto de coletivos formados por jovens da periferia, organizados a partir dos bairros onde residem, e que se reúnem para a prática do ciclismo de passeio. Cada grupo possui um administrador, responsável por convocar os encontros e manter contato com os grupos de outros bairros. Em geral, os passeios começam no centro da cidade e vão em direção à periferia; oportunizam para alguns dos integrantes uma forma de lazer e de conhecer a cidade com a segurança que o grupo o proporciona.

Coletivos de identidade e inclusão

48Estes são coletivos que instrumentalizam a cultura como forma de articulação de suas pautas, que ultrapassam as carências urbanas tradicionais, como moradia e serviços, abarcando demandadas culturais emergentes e ao tema da diversidade. As experiências em comum são um forte elemento para o engajamento e, a partir das discussões e reflexões sobre as manifestações do poder que reúnem, definem grupos, segregam e agregam, passam a ser problematizadas coletivamente, possibilitando assim a ressignificação de tais experiências. Possuem forte caráter de rede de apoio e, a partir do pertencimento e do desenvolvimento pessoal de seus participantes, o coletivo passa a promover ações voltadas para segmentos da população relacionados à sua pauta.

Abayomi

49Coletivo formado predominantemente por mulheres, mas seus integrantes são de diversas faixas etárias, incluindo crianças. Aborda a questão da negritude, discutindo materiais diversos que tangenciam a situação do negro, como livros e filmes, e também tem um caráter de integração e rede de apoio entre os participantes. Como intervenções de combate ao racismo, observam-se as rodas de conversa, palestras, as oficinas de turbante e as oficinas da Boneca Abayomi, que acontecem principalmente em escolas e universidades. O grupo prioriza a horizontalidade e a autonomia dos participantes, mas possui uma liderança que tem papel de referência, e não de direção.

Encrespa

50O Coletivo Encrespa está vinculado a um movimento de abrangência nacional, que parte da valorização estética para discutir a diversidade cultural e racial no Brasil. Em Governador Valadares, o grupo reúne principalmente mulheres e atua organizando eventos que integram arte e política, utilizando temas como a estética e os cuidados com o cabelo negro para abordar outras questões, especialmente a violência e a segregação social. O grupo possui organização horizontal e fluida, porém marcada pela referência a líderes do movimento negro na cidade.

Levante Popular da Juventude

51Com origem no Rio Grande do Sul, o Levante busca organizar os jovens na defesa de seus direitos. O coletivo está organizado em três segmentos, que são: a frente camponesa, com foco nos jovens do campo e vinculada ao movimento campesino; a frente territorial que vincula seu foco e pauta ao espaço de vida e de moradia dos jovens, com atenção especial às periferias das cidades; e a frente estudantil, com foco nos jovens estudantes do Ensino Médio e universitários. O coletivo se formou com a proposta de inovar a experiência organizativa dos movimentos sociais, valorizando a horizontalidade, a diversidade e a renovação dos repertórios de ação.

Diversidade, Gênero e Negritude – Sind-UTE/MG

52Este coletivo é integrado por profissionais da educação vinculados ao Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais, e foi construído a partir da compreensão de que era necessário promover formação para os profissionais, uma vez que lidam com situações discriminatórias no cotidiano escolar. Enquanto coletivo, não se articula com outras organizações, mas seus integrantes desenvolvem múltiplas filiações. Atuam organizando encontros de formação voltados para os docentes, em geral realizados nas escolas a partir das demandas apresentadas pelos próprios profissionais.

Nudis

53O Núcleo de Debates sobre Diversidade e Identidade é um coletivo que busca promover espaços de discussão sobre a diversidade de gênero e garantia de direitos da população LGBTQ+. Promove o diálogo entre a população, representantes do poder público e de organizações sociais, através de estudos, debates e ações, contribuindo para a promoção de igualdade de direitos, assim como para o respeito e valorização das diferenças. Além disso, o coletivo organiza e apoia eventos que articulam ações culturais e debates, como a Semana da Diversidade e a Parada Gay.

Quilombo

54O Quilombo é um coletivo vinculado à União Nacional dos Estudantes (UNE), mas que possui autonomia e organização mais flexível e horizontal que os movimentos estudantis tradicionais. Teve sua origem na Bahia, discutindo ações pela permanência de estudantes negros no Ensino Superior e questões relacionadas ao pertencimento étnico e igualdade de direitos entre os estudantes. Formado principalmente por estudantes de universidades públicas, o coletivo tem como suas principais pautas a questão da negritude e a luta antirracista, mas também aborda o feminismo, a diversidade sexual, o campesinato e outros temas.

Coletivos articuladores

55O principal meio de atuação deste conjunto de coletivos é a mobilização e a capacitação de pessoas e grupos para atuarem como liderança em suas comunidades e no espaço político, atuando principalmente na elaboração de repertórios temáticos, discussão de narrativas e na circulação de informações. Suas pautas podem ser mais abrangentes, mas no caso da adoção de pautas mais específicas, conseguem articular transversalmente diversos temas. Desenvolvem suas ações e propósitos através de reuniões de estudo, debates sobre questões sociais, assim como de eventos de formação e integração dos diferentes segmentos da população.

Frente Brasil Popular

56Este coletivo é uma organização de caráter progressista que atua no suporte a segmentos da população na defesa de seus direitos, assim como na articulação de redes e construção de estratégias para enfrentamento das contradições sociais. Tem ligação com uma rede nacional de coletivos e conta com a participação de pessoas de diferentes faixas etárias, profissões e segmentos sociais. Ainda, o grupo desenvolve ações que integram coletivos, sindicatos, movimentos sociais e setor público em torno de pautas comuns.

Mais Mulheres no Poder

57Este coletivo reúne mulheres de diferentes faixas etárias produzindo um espaço de capacitação e incentivo para que elas atuem nos espaços de decisão da sociedade. Trabalha principalmente a oralidade e a preparação para análise e discussão de políticas públicas. Por estas características, esse coletivo ainda atua em ações de outras organizações, contribuindo para a transversalidade de temas e para a elaboração de novas estratégias de intervenção social.

Ações-manifesto socioculturais

  • 5 Para Scherer-Warren (2014) uma ação-manifesto sociocultural é um movimento híbrido, com característ (...)

58Uma ação-manifesto5 pode ser provocada por uma demanda pontual ou emergente, que motiva uma intervenção específica e temporária no espaço público. Não se trata de eventos organizados por coletivos, mas uma forma de associação altamente fluida e com tendência a terem menor duração ou a alta renovação de seu quadro, uma vez que articula integrantes de outros coletivos ou organizações sociais para ações específicas. Outra característica das ações- manifesto é a estética e o uso do corpo, dando um aspecto de ato performático e ao mesmo tempo de enfrentamento direto para as intervenções realizadas.

8M

59O 8M reúne mulheres que atuam em coletivos e movimentos sociais tradicionais, profissionais da educação e de « equipamentos » públicos com o objetivo de promover atividades em torno do Dia Internacional da Mulher. O grupo tem uma organização fluida, com alternância na formação do coletivo a cada ano. O seu repertório é marcado por ações integradas que incluem atos performáticos, organização de rodas de conversa e manifestações de rua, podendo ser uma iniciativa do próprio coletivo ou uma colaboração com eventos de outras organizações.

60Outras iniciativas e grupos foram apontados durante as entrevistas, mas foram compreendidos como ações ou mesmo instrumentos utilizados pelos coletivos supraindicados. Alguns constituem repertórios de ação coletiva, ou como ações de difusão, como os festivais, rolezinhos e manifestações. Outros ainda podem existir, mas o estudo limitou-se a estes coletivos que a metodologia possibilitou contatar no tempo da pesquisa.

A multiterritorialidade dos coletivos

61A tipologia elaborada e a caracterização dos coletivos têm um fim didático de apresentar as possibilidades de engajamento e os formatos de ação desenvolvidos em Governador Valadares. Os limites entre cada coletivo são altamente permeáveis, uma vez que os jovens lidam com situações diversas em seu cotidiano e estabelecem uma multiplicidade de relações.

62Em meio a essa complexa rede de relações, a territorialidade pode ser vista através de marcas que os processos sociais deixam no espaço, e também das marcas que as relações com o espaço deixam nos sujeitos. Como algo presente, ela é a configuração de relações estabelecidas no espaço e no tempo, que aqui apresentamos na forma dos coletivos juvenis, das experiências que situam, orientam e permitem que os jovens projetem o espaço.

63Reiterando a discussão apresentada por Haesbaert, as territorializações mais flexíveis são aquelas que permitem uma sobreposição territorial, tanto sucessiva, quanto simultaneamente, sendo marcadas por processos que permitem maior justaposição de relações no espaço-tempo. Espaços públicos nos centros das cidades adquirem com isso um aspecto multifuncional e favorecem a sucessão de territórios, possibilitando o acontecimento de atividades diferentes, em tempos distintos. Praças e ruas são ocupadas por funcionalidades distintas conforme o dia e o horário, como os rolezinhos de bicicleta em que jovens ocupam as ruas em horários de menor fluxo de veículos automotores e de menor atividade comercial. Esta é uma estratégia para ocupar as ruas, sem entrar em conflito com a funcionalidade técnica e economicista prevista para a área central de uma cidade.

64Outro exemplo de territorialidade mais flexível é o uso de praças e parques, que incluem diferentes funcionalidades para diferentes grupos geracionais. Uma praça, idealmente, se constitui num espaço único. Os grupos podem fazer uso da praça concomitantemente, mas as trocas entre eles são limitadas e, mesmo que não haja barreiras físicas ou mecanismos de controle físico do acesso a cada setor, não ocorre uma integração entre os usuários. Semanalmente, a Praça dos Pioneiros, por exemplo, no centro de Governador Valadares é ocupada por usos distintos que ocorrem ao mesmo tempo, mas com delimitações espaciais visíveis, criando setores ocupados de diferentes formas.

65As parcerias entre coletivos, poder público e organizações sociais também são exemplos de processos de territorialização flexível. O estabelecimento de tais conexões produz territórios permeáveis para atuação de agentes com distintas funcionalidades e com fluxo variável de informações. As territorialidades se encaixam produzindo relações específicas e contextualizadas, com variado grau de integração. Na organização de eventos ou manifestações, os coletivos atuam conjuntamente com sindicatos, setores do poder público, organizações de fomento e outros. A integração nestes casos ocorre na construção de um produto, mas as funcionalidades das relações são especificadas para cada um dos sujeitos e pode ser vista no uso de equipamentos públicos e no financiamento de iniciativas culturais.

66Percebem-se as múltiplas territorialidades na medida em que ocorre uma justaposição de relações funcionais, tanto na articulação entre os coletivos para a realização de eventos e outras atividades, quanto no pertencimento dos sujeitos a diferentes coletivos ou organizações. Entretanto, na medida em que as relações se interpenetram e se integram numa rede complexa, torna-se possível a percepção de uma multiterritorialidade. Como um fenômeno que pode ser observado em seus aspectos qualitativos, a multiterritorialidade possui variações que não cabem em conceitos fechados ou em tipologias como estas apresentadas. Mais do que descrever as combinações territoriais que são encontradas em campo, destaca-se o caráter de integração das relações estabelecidas pelos jovens em diferentes espaços, escalas e tempos.

Considerações finais

67Entre os espaços pelos quais os jovens transitam, experimentam o mundo e dele se apropriam, destacam-se os coletivos juvenis por compreender que são espaços privilegiados para a construção de relações autônomas e de projetos de vida. A articulação entre a Sociologia e a Abordagem Territorial utilizada neste estudo possibilitou compreender as imbricações do espaço e alguns de seus desdobramentos, tanto materiais quanto imateriais. Este aspecto interdisciplinar ainda aponta para interseções sobre juventude e sobre a formação de redes, tanto das redes de ação coletiva e de sociabilidade, quanto das redes territoriais.

68A pesquisa deixa entrever que ocorre uma tendência para formação de organizações mais flexíveis entre os movimentos sociais, organizações civis e movimento estudantil. As organizações que emergem do contexto juvenil tendem a adotar modelos de participação e gestão horizontal, com foco na autonomia dos grupos. Outras organizações, herdadas e estruturadas historicamente, buscam uma aproximação deste modelo de gestão, ou mesmo passam a compor unidades de organização coletiva com o fim de atrair e favorecer a participação de jovens.

69Os coletivos de cultura, os grupos de sociabilidade e os coletivos mais próximos ao movimento estudantil apresentam maior capacidade de renovação dos seus integrantes, mantendo o caráter de associação com base no vínculo geracional. Já os grupos mais vinculados às pautas estruturais enfrentam maior dificuldade de renovação, mas permanecem atraindo grande número de jovens e renovando-se parcialmente. Semelhantemente, os coletivos que advêm de outras organizações sociais tornam-se em espaços para juventude. Como parte de organizações herdadas, apresentam um quadro de integrantes de outras faixas etárias e que desenvolvem atividades com a participação de jovens de forma a integrá-los, ou mesmo tomando-os como público-alvo. Tais grupos são reconhecidos como organizações coletivas que integram a rede de movimentos sociais.

70Existe uma variedade de ações táticas que envolvem a escolha de espaços menos disputados e a transitoriedade das ações, ou contrariamente, que possam evidenciar a presença dos jovens na cidade. No âmbito das relações presentes no conjunto dos coletivos, foi possível observar que múltiplas territorialidades se sucedem em meio à pluralidade de espaços de sociabilidade e ação social, mas destacou-se que as redes construídas ampliam o campo das relações ao estabelecer fluxos de informações entre pessoas e entre territórios em escalas diversas.

71A escolha metodológica de selecionar os participantes através da amostragem por conveniência limitou a pesquisa a uma rede específica. Nesta rede, identificou-se o movimento dos participantes que saem de seus bairros, periféricos ou não, para atuarem coletivamente no centro da cidade. Caberia, então, uma investigação a partir de outros parâmetros de busca, com o fim de identificar as iniciativas que podem ocorrer na periferia, ou em espaços de menor visibilidade e que, por isso, não são conhecidas (ou reconhecidas).

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Notas

1 A II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Eco-92, aconteceu no Rio de Janeiro, em 1992, e buscou discutir questões relacionadas às mudanças climáticas e ao desenvolvimento sustentável (NOVAIS, 1992).

2 Os Circuitos de Cultura foram um conjunto de eventos realizados em diversas cidades de Minas Gerais, promovidos por uma empresa de telefonia celular, que incluíam apresentações artísticas, intervenções em espaços públicos e oficinas de arte.

3 O Fórum Social Mundial é um evento articulado por movimentos sociais, ONGs e sociedade civil, e organizado inicialmente com o fim de discutir os efeitos da globalização, os modelos econômicos vigentes e as desigualdades sociais (TREVISOL, 2017).

4 A PEC 241 foi o Projeto de Emenda Constitucional, apresentado e aprovado no ano de 2016, que propôs o congelamento do teto de gastos públicos por até 20 anos com o objetivo de equilibrar as contas públicas. O projeto recebeu críticas por sua amplitude e impacto, que motivaram manifestações e protestos em diversas cidades por todo o país.

5 Para Scherer-Warren (2014) uma ação-manifesto sociocultural é um movimento híbrido, com características estéticas de manifestação pública, mas que possui uma organização com tendência para a continuidade histórica.

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Índice das ilustrações

Título Figura 1 – Localização do município de Governador Valadares
Créditos Fonte: Infraestrutura Estadual de Dados Espaciais de Minas Gerais
URL http://journals.openedition.org/geografares/docannexe/image/3202/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 311k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Michele Silva Maurer e Maria Terezinha Bretas Vilarino, «Ação coletiva e juventude: territorialidades dos coletivos juvenis da cidade de Governador Valadares-MG»Geografares [Online], 33 | 2021, posto online no dia 15 dezembro 2021, consultado o 18 abril 2024. URL: http://journals.openedition.org/geografares/3202

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Autores

Michele Silva Maurer

Universidade Vale do Rio Doce (Univale)
ms.maurer@hotmail.com

Maria Terezinha Bretas Vilarino

Universidade Vale do Rio Doce (Univale)
tevilarino@yahoo.com.br

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