1Há uma leitura corrente na bibliografia especializada segundo a qual os espaços públicos só funcionam politicamente quando são investidos por grandes movimentos sociais que os ocupam e, por meio de sua mobilização, ganham publicidade e reconhecimento. Recentemente, a eclosão de grandes manifestações políticas, em diversas partes do mundo, veio apenas reforçar esta abordagem. Também nos últimos anos observou-se uma rápida difusão de um modelo de mobilização dos espaços públicos que ficou globalmente conhecido como « ocupação » (Castells, 2013). Trata-se de uma estratégia de reivindicação empregada por alguns movimentos sociais que se caracteriza pela permanência de um grupo de pessoas em espaços públicos como modo de comunicar o desacordo ao poder constituído.
2Em sua forma mais recente o fenômeno parece ter tido origem, ou pelo menos ter ganhado grande repercussão quando da ocupação da praça de paz celestial (Tiananmen), em Beijng, por estudantes e outros grupos que reivindicavam reformas no regime político, com maior democratização da vida social na China. Desde então, movimentos similares ocorreram em diferentes contextos e países, como por exemplo, na conhecida primavera árabe, entre 2010 e 2015, em 2011 na Espanha, com os indignados e, também em 2011, no Occupy Wall Street que fez da própria ação, de ocupar, sua denominação. A partir de então esse nome passaria a designar um conjunto bastante heterogêneo de manifestações.
3Também no Brasil, sobretudo a partir de 2013, diversas manifestações dessa natureza têm sido observadas. Entretanto, neste caso, a palavra ocupação já esteve anteriormente associada a processos de mobilização política que se utilizam da permanência em um lugar como estratégia de luta e contestação. Os lugares ocupados eram, em geral, edificações, públicas ou privadas e, até os dias atuais, essa modalidade de ocupação é a que possui maior repercussão e visibilidade, como no exemplo dos movimentos que, no final do ano de 2015, ocuparam as escolas da rede pública do estado de São Paulo, e que obtiveram amplo êxito em suas reivindicações.
- 1 Cotejar com a noção de genoespaço, desenvolvida por Paulo Cesar da Costa Gomes, em A condição urba (...)
4Os movimentos de ocupação ao redor do mundo apresentam a seguinte estrutura em comum: a contestação de alguma proposição advinda do poder constituído, a permanência continuada e a gestão coletiva de espaços públicos ou institucionais. Durante a permanência há uma intenção explícita de demonstrar a possibilidade de se criar uma forma de organização social e política diversa daquela que constitui a sociedade dominante. Esta forma de organização alternativa estaria baseada na solidariedade, na horizontalidade e na inexistência de uma liderança clara. A prática destes movimentos pretende demonstrar a viabilidade de se construir uma democracia direta, contestando o modelo da democracia representativa. Harmonia, vontade coletiva, forte solidariedade são os valores mais amplamente veiculados, aproximando-se assim da ideia de uma comunidade1 (Castells, 2013).
5Em termos de estratégias espaciais, destaca-se, nas ocupações, o controle progressivo do acesso aos recursos e do ingresso e circulação de pessoas, dada a alegada ameaça representada pela própria ordem social constituída. O perfil demográfico dos ocupantes é, em geral, formado majoritariamente por extratos mais jovens da população, usuários intensivos das redes sociais que difundem rapidamente suas pautas e estabelecem canais de comunicação internos e externos para estes grupos. Em um primeiro momento, essas ocupações durariam, em princípio, até o recuo da proposição que gerou o próprio movimento. Mais recentemente, no entanto, a duração tende a não ser mais delimitada já que o objetivo promulgado seria a implantação de um modelo alternativo exemplar de uma nova sociedade fundada em novos valores.
6Em abril de 2018, durante a ocupação do centro Pierre-Mendès-France – um anexo da Universidade de Paris 1, também conhecido como « Tolbiac » –, iniciada como reação ao projeto de lei do governo francês que visava alterar as condições de ingresso às universidades, um dos manifestantes assim se expressou:
Aqui na ocupação as pessoas aprendem, leem livros, produzem. É a primeira vez que alguns fizeram as tarefas de casa para outras pessoas. Essa experiência permite a conexão com coisas da vida concreta, do cotidiano, e acaba com essa lógica burguesa das universidades, porque os alunos do ensino superior são pessoas que foram selecionadas, de uma certa forma. Não devemos fazer oposição ao projeto de lei, por princípio, mas a uma ordem social (O Globo, 13/04/2018)
7A palavra ocupar em sua acepção mais básica designa o ato de preencher um espaço. Este ato pode traduzir tanto o sentido de simples permanência como aquele no qual a permanência constitui uma forma de reivindicação, ou ainda de estabelecer a autoridade, o controle sobre um território.
8Embora a « ocupação » seja um dos modelos mais recentes de manifestação política que se vale dos espaços públicos, é preciso reconhecer, no entanto, toda uma gama de tipos de mobilização da população, como as barricadas, passeatas e comícios que, almejando alcançar objetivos claramente políticos, se valem também da visibilidade, propriedade inerente aos espaços públicos, para veicular suas demandas. A própria escolha dos lugares atua no grau de visibilidade alcançado pelas manifestações. Além disso, essa escolha agrega às demandas certos significados que são conotados pelos espaços selecionados, potencializando assim as ações.
9Desde o final do século XVIII, movimentos políticos têm nas ruas uma arena privilegiada de reivindicação e empoderamento. Para muitos a revolução francesa de 1789 teria constituído o exemplo paradigmático, tomado como referência por inúmeros outros movimentos políticos ocorridos a partir do século XIX (Ozouf, 1988). Este é o caso das revoluções de 1848 até a sociedade contemporânea, que tem no movimento de maio de 1968 na França, com seus paralelepípedos, suas barricadas e seus slogans gritados e escritos nos muros da cidade, uma revisão do modelo revolucionário. Em todos esses casos, o domínio das ruas significa a possibilidade de transformação das estruturas sociais.
10Essas manifestações têm a sua eclosão associada, comumente, a um evento catalizador. Como estratégia global, tal associação contribui para ampliar a mobilização e alargar a adesão ao movimento, mas, simultaneamente, implica uma diminuição da expressão individual dos manifestantes, bem como uma limitação da possibilidade de aparecimento de dissenso, de hesitações. A uniformização dos participantes com cores e adereços identificadores é um dos elementos que simbolicamente homogeneíza a manifestação.
- 2 O mecanismo do «microfone humano» é a expressão mais clara desta veleidade de produzir uma voz úni (...)
11Considerando apenas os casos mais recentes de manifestações políticas nas ruas brasileiras, seria possível reconhecer uma variedade no grau de organização, coesão e controle da participação e da expressão. Nesta gradação há manifestações mais organizadas, que se caracterizam pela centralidade, palavras de ordem, oradores previamente definidos, roteiros físicos e narrativos, aglomerações finais e clímax; até versões menos organizadas, nas quais predominam menores densidades, um aspecto mais « carnavalesco » (iniciativas pessoais de apresentação pública, criatividade e menor controle dos sentidos evocados e das formas de fazê-lo), percursos pouco orientados, e concentrações em grandes logradouros. Contudo, a despeito desta gradação, a força destas manifestações está vinculada, em grande medida, a sua capacidade de produzir uma voz, a « voz das ruas »2 que, em uníssono, apresenta seus pleitos.
12Via de regra, manifestações desta natureza são consideradas o fundamento da ação política nos espaços públicos. E, também por isso, sua ausência é comumente interpretada como um dos principais sintomas da chamada morte do caráter político dos espaços públicos. Por outro lado, a bibliografia especializada raramente atribui um significado político forte ao uso ordinário dos espaços públicos. Por não produzir uma voz unificada ou explicitamente orientada, a ocupação cotidiana destes espaços não constituiria um ato político. É justamente esta interpretação que gostaríamos de colocar em questão.
13Aquilo que denominamos de « vida pública » na cidade, ou seja, o conjunto de rituais que regulam a co-presença de pessoas com expectativas, interesses e valores muito diversos sob o mesmo espaço, não é o resultado de uma ação espontânea. Trata-se de um longo processo de conquista de direitos que define um tipo de espaço, o espaço público, no qual a isonomia é um valor central. Desde a modernidade essa ideia de público não cessa de se alargar e de tomar um sentido mais e mais universal. O espaço público garante a convivência, sobre um terreno comum, de pessoas com interesses diferentes mediante a discussão e a construção de acordos que se expressam na sociabilidade pública (Gomes, 2012).
14De tão generalizados, os rituais da vida pública podem parecer naturais, embora não o sejam. Permanecer nos espaços públicos, com todos os direitos que eles asseguram, é um ato que constitui, de fato, um exercício político da vida social. É neste sentido que a palavra « político » se religa com suas raízes históricas da pólis.
15Como sugeriu a geógrafa Mona Domosh (1998), tomando como base fontes históricas que retratavam o uso das ruas na cidade de Nova Iorque no século XIX, os mesmos códigos que regiam os comportamentos considerados « adequados » ou « respeitáveis » nos espaços públicos davam ensejo e, de fato, criavam as condições para a emergência daquilo que ela denominou de « transgressões táticas », especialmente por parte de mulheres e de negros. Nos termos propostos por Domosh, « transgressões táticas » representam os « atos triviais de polidez » que, sem desafiar ostensivamente as normas de comportamento dominantes tendem, no longo prazo, a alterá-las significativamente. Neste sentido, o uso cotidiano dos espaços públicos de fato enseja formas opositivas de política, mas uma política « polida », na qual as transgressões, embora sutis, são, ainda assim, profundas.
16É de se notar ainda que para que a convivência nos espaços públicos seja garantida cotidianamente, não há uma contrapartida de renúncia à diferença, ou seja, trata-se de um espaço que abriga a heterogeneidade. Assegurar a livre expressão da heterogeneidade nestes espaços constitui um dos fundamentos da vida social democrática.
17Três exemplos na cidade do Rio de Janeiro podem nos ajudar a refletir sobre esta questão. Como é reconhecido, a praia goza de uma centralidade absoluta no imaginário associado à cidade do Rio de Janeiro. O encontro de diferentes segmentos da sociedade nas praias litorâneas, ao mesmo tempo que gera conflitos, produz as condições para que sejam estabelecidos acordos e delimitações que possibilitam a convivência nesses lugares (Gomes, 2001). Não à toa, a praia carioca é identificada, pelo público em geral, como o lugar privilegiado da vivência democrática. Mesmo durante o período do regime militar (1964-1985), a praia era tida como um lugar de resistência pelas práticas de convivência que aí vigoravam.
18Os lugares de intensa vida pública da cidade do Rio de Janeiro não estão, entretanto, exclusivamente circunscritos aos espaços associados à sua função balneária. No período noturno, se ativa um outro lugar central da sociabilidade pública carioca. O bairro da Lapa, que durante algumas décadas permaneceu como uma zona de obsolescência da área central da cidade, a partir dos anos 1990 testemunhou um forte afluxo de pessoas variadas, oriundas de bairros muito distantes e com perfis sociodemográficos muito distintos. No início foram atraídas pela variedade de gêneros musicais aí presentes. Hoje, além das casas noturnas, dos bares e restaurantes, são as ruas do bairro que concentram o maior número de pessoas. É propriamente neste espaço público que se apresenta o leque maior de diversidade dos frequentadores do bairro da Lapa. Assim como na praia, também aí surgiram variados conflitos e discussões importantes que dizem respeito à toda sociedade urbana – o uso de drogas, a ocupação das calçadas pelo comércio, a presença de ambulantes e de pessoas em situação de rua, o barulho, a segurança. Essas questões não se limitam a este logradouro, mas são aí intensificadas em virtude da forte densidade de pessoas e de sua heterogeneidade. Os debates adquirem, assim, maior visibilidade uma vez que surgem em um lugar que goza de grande centralidade no tecido urbano (Souza, 2015).
19A frequência heterogênea nos espaços públicos, entretanto, nem sempre é vivida por todos como um valor positivo. Uma parcela reduzida do público que frequentava as ruas da Lapa se deslocou, nos últimos anos, para uma pequena praça de um bairro residencial na zona mais nobre da cidade – Praça São Salvador, no bairro do Flamengo. O perfil dos frequentadores da praça é bastante homogêneo (jovens, universitários, oriundos majoritariamente das imediações). Essa dinâmica também pode ser observada nas praias da cidade. Em certos momentos é possível identificar uma frequência que busca maior exclusividade identificando a um perfil específico de banhista e a um trecho determinado da faixa de areia.
20Essa busca de exclusividade que resulta em certa homogeneidade é uma tendência recorrente na vida pública nas cidades e, neste sentido, remete muito mais a um ideal comunitário do que propriamente público.
21Nesta breve exposição procuramos demonstrar que existem, pelo menos, dois eixos que nos permitem analisar a relação entre a política e espaços públicos. Trata-se, na verdade, de duas formas divergentes de pensar a vida em comum, que se associam a dois tipos de espacialidade antagônicos.
22No primeiro eixo há uma razão que estabelece que quanto maior a homogeneidade maior a força do movimento político. Segundo este critério, as manifestações de rua e, sobretudo, as ocupações representariam o ápice desta escala que concede maior força quanto mais uníssono, mais consensual forem as reivindicações e mais homogêneo o perfil dos manifestantes.
23Já no segundo a razão se inverte, e quanto maior a heterogeneidade das ocupações dos espaços maior seria sua capacidade de transformação social. Concebendo a política desta forma, a vida cotidiana nos espaços públicos, sobretudo nesses que possuem grande visibilidade e centralidade, constituem o horizonte básico daquilo que é visto como a vida política em sociedades democráticas. Não há necessidade de se suprimir as diferenças e o dissenso, ao contrário, estes são o motor de transformações que integram a diversidade e complexidade da vida social.
24Todos os dias, os espaços públicos abrigam ações que poderiam ser vistas como verdadeiras manifestações políticas: formas de apresentação, comportamentos, atitudes que tem potencial reivindicativo, transgressor e de questionamento de valores e de regras. Ao se manifestar produzem formas de adesão e de conflito, ou seja, um diálogo a respeito da possibilidade de se incorporar ou não essas ações. Em outros termos, um diálogo político.
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