2Para fundamentar a discussão, o texto está dividido em três par­tes. Na primeira, são apresentados argumentos para o debate neces­sário sobre a compreensão da política como um sistema institucional e operacional de resolução de conflitos de interesses que se materia­lizam em leis e normas de comportamento, apresentando os riscos da falácia, muito comum na literatura sociológica, de considerar a política como uma esfera abstrata. Na segunda, o espaço político é apresentado como um conceito, que apesar da origem na ciência po­lítica, foi apropriado e ampliado na geografia política como espaço de ação das políticas públicas e das leis, mas também dos movimen­tos sociais e dos atos políticos; além de categorizado na antropologia como espaços das muitas possibilidades e facetas dos protestos de grupos organizados. Na terceira, são elaborados os argumentos da tese central deste texto, respondendo à questão sobre quando, como, em que circunstâncias e em que graus os espaços públicos podem se transformar em espaços políticos.

1. Afinal, o que com­preendemos quan­do usamos a palavra política?

3Nesta parte propõe-se trazer, mesmo que de modo bastante sucinto, o debate sobre o cam­po da política como prática e conhecimento acadêmico em oposição à fragilidade concei­tual de considerar a ação políti­ca uma esfera abstrata.

4O ponto de partida é que a política é um sistema institucio­nal e operacional de resolução de conflitos de interesses que se materializa em leis e normas de comportamento. Todas as sociedades complexas, mesmo na antiguidade, tiveram neces­sidade de estabelecer normas impositivas para o conjunto da sociedade. Trata-se de um con­ceito que, embora definido nos termos oferecidos por Aristóte­les de conciliação de interesses opostos, é amplamente aceito, porém com a ressalva de que nenhuma conciliação de inte­resses pode ser alcançada sem que exista uma entidade com maior poder de se impor sobre cada um dos lados, mesmo que esta entidade seja o contrato ou o acordo para que vivam em harmonia (Scruton, 1982, p. 362).

5Nesse campo, como em ou­tros campos do conhecimento, existem duas possibilidades: uma que busca a construção de uma teoria geral empiricamente orientada (Easton, 1968, p. 21) e outra orientada pela especula­ção filosófica, ou seja, a evasão do mundo dos fenômenos que permite avaliá-los e modificá­-los (Sartori, 1981, p. 36). Neste sentido, é possível apontar, de modo sucinto nos limites deste artigo, duas vertentes de com­preensão e análise política: na primeira, o trabalho de Maquia­vel que ao demonstrar a impor­tância da política como prática virtuosa do Príncipe, teorizou sobre a prerrogativa do poder de mando e obediência centra­lizado no território do nascente Estado Moderno, que constitui ainda uma questão empírica e teórica importante para as ciên­cias sociais. E aquela da política deduzida da especulação filosó­fica, cujo exemplo mais impor­tante é a elaboração de Marx, que inverte a ideia do Universal ético político de Hegel (o Esta­do) e transfere esse ethos para a sociedade (Sartori, 1981, p. 38). Grosso modo, temos duas matrizes do pensamento sobre a política. A primeira mais fre­quente na ciência política, mas também na sociologia analítica e empírica de Max Weber, fo­cada nas relações institucionais de poder e a segunda, mais im­portante nas correntes socioló­gicas especulativas, centradas nos fenômenos sociais e mais voltada para as ações indivi­duais de onde emergem esses fenômenos (Bronner e Géhin, 2017, p. 75). Esta última tem influenciado fortemente a geo­grafia humana, e não apenas em sua vertente crítica.

6Há na diferença apontada acima uma questão interessan­te sobre o lugar da política: nas instituições fundadas para gerir conflitos nos limites de um ter­ritório ou na sociedade, ou seja, no interior das relações sociais? É possível neste ponto recorrer à ideia de verticalidade e hori­zontalidade utilizada por Sarto­ri (1983, p. 170) para estabele­cer uma diferença fundamental entre o mundo da política e o mundo social. Para ele,

quanto mais nos afastamos do formato da polis, da pequena comunidade-Estado, mais os aglomerados humanos adquirem uma estruturação vertical. Esta verticali­dade é a tal ponto estranha à ideia helêni­ca de « política » que foi teorizada durante milênios, com a ajuda de um vocabulário latino: principatus, regnum, dominium, gobernaculum, imperium, potestas etc. O fato de que no século XIX esta termi­nologia refluiu sobre o termo « política » constitui uma perturbadora inversão de expectativa. Hoje acolhemos a dimensão vertical da política em uma palavra que demonstrava, ao contrário, sua dimensão horizontal. Com essa alteração, a dimen­são horizontal terminou sendo advogada pela sociologia, enquanto a esfera da po­lítica se restringe, tendendo a limitar-se a uma atividade do governo: em substância à esfera do Estado. Contudo, (..) registra­mos agora um fato novo, a democratiza­ção e massificação da política (Sartori, 1983, p. 170).

7Esta massificação tem con­sequências importantes sobre a ubiquidade dos sistemas po­líticos e sobre o alargamento do próprio conceito de Estado; no entanto, a essência da verti­calidade como característica da autonomia da política perma­nece. Um bom exemplo são os processos eleitorais, que consti­tuem métodos de recrutamento para cargos políticos, ou seja, integram os processos verticais do sistema político (Sartori, 1983, p. 171) ou as relações das instituições políticas com o ter­ritório como analisado por Mi­chael Mann (1992).

8Neste ponto vale mencionar o debate entre polítólogos e so­ciólogos, cada um reivindican­do o primado da competência para a análise da política. Para os últimos, a sociologização da política estaria associada à democratização da política e a uma verticalidade ascendente que refletiria um poder popu­lar. No entanto, para os críticos desta premissa, as reduções so­ciológicas « achatam » a política e sua verticalidade resultaria de uma variável dependente do sistema social e das estru­turas socioeconômicas, além do risco de ao considerar a ubiquidade da política fazê-la perder sua especificidade e de­saparecer nas próprias relações sociais (Middelaar, 2015). Para os primeiros, por sua vez, as decisões políticas se referem a uma gama variada de assuntos de política econômica, social, religiosa educacional etc., mas, o que as tornam políticas é o fato de serem tomadas por pes­soas em posições políticas, ou seja, o que define a natureza da política é o seu lugar no sistema social. E este lugar é aquele das decisões erga omnes, ou seja, aquelas que sob a forma de leis (ou com outra forma), são apli­cáveis coercitivamente à gene­ralidade dos cidadãos (Sartori, 1983, p.172; Easton, 1968, p. 89; Rémond, 1988, p.444; Bob­bio, 2004, p. 956). Em outras palavras, « enquanto um siste­ma político se mantém de pé, os comandos (...) erga omnes são aqueles que emanam de sua di­mensão propriamente política », capazes de decisões soberanas, mais difíceis de evitar, seja pela determinação territorial seja pela intensidade coerciti­va (Sartori, 1983, p. 172/173; Mann, 1992).

9Há um extenso debate na fi­losofia política, na ciência polí­tica e na sociologia que não cabe recuperar neste espaço, embora o desencanto com a política venha inspirando boa parte do pensamento contemporâneo que ao focar as transformações por que passam as sociedades e os muitos problemas sociais, econômicos, ambientais etc. arrisca-se a negar a própria po­lítica (Middelaar, 2015; Innera­rity, 2017) e, paradoxalmente, diluí-la nas relações sociais, não mais coordenadas por um poder coercitivo centralizado, mas dispersa em um mundo de indivíduos « tribalizados », onde desaparece toda e qualquer au­tonomia e mesmo importância do campo (Maffesoli, 1992).

10Este debate tem ecos na ge­ografia humana, especialmente na vertente que de modo dire­to ou indireto aproxima-se das correntes da sociologia crítica. Também a geografia política é impactada por esta dispu­ta sobre o lugar da política, se institucional ou diluído nas re­lações sociais, e defronta-se com o paradoxo de manter o nome da disciplina, porém es­vaziando seu conteúdo (Castro, 2005). Neste sentido, as esco­lhas são necessárias e devem ser orientadas pela força e co­erência dos marcos conceituais e das evidências empíricas dos argumentos à disposição dos pesquisadores. A opção deste texto é clara e fundamenta-se na convicção de que a geografia política tem muito mais a ga­nhar na aproximação das refle­xões e das pesquisas da ciência política do que da sociologia, tendo em vista a objetividade dos impactos espaciais das de­cisões erga omnes da política e para evitar os riscos da falácia, muito comum na literatura so­ciológica, de considerar a po­lítica como uma esfera a mais do mundo social. Além do pro­blema identificado por Furet (apud Middelaar, 2015, p. 221) de que um pensamento indivi­dualista e anti-histórico é inca­paz de compreender a política. Mas, no debate e nas escolhas da geografia há sempre lugar para o pensamento orientado por ficções abstratas e pela uto­pia como lentes que distorcem e simplificam a realidade com­plexa.

11Em relação ao tema central do debate objeto deste texto, a pesquisa de Paolo Gerbaudo (2017) sobre as manifestações nas ruas e praças nas últimas décadas em diversos países trouxe evidências da diferença entre a horizontalidade e verti­calidade como condição do ca­ráter mais e menos político das manifestações. Segundo esse autor, houve duas fases nas mo­bilizações políticas que sacudi­ram diferentes países nas últi­mas décadas: antes e depois de 2011. A primeira fase foi mar­cada basicamente pelas ocupações de praças, com um modo de organização que primava por relações horizontais, de co­operação e solidariedade entre os ativistas, inspirada em ver­tentes ideológicas mais libertá­rias, autonomistas e anarquis­tas. Estas negavam a política e sua verticalidade, o que contri­buiu para o rápido esgotamento dessas mobilizações, uma vez que não foi possível ampliar esta horizontalidade para além dos limites dos espaços ocupa­dos pelos ativistas. A segunda fase, ao contrário, buscou esta­belecer canais de comunicação com as instituições políticas para reclamar suas pautas. A verticalidade foi formalizada e assumida por líderes publica­mente reconhecidos que bus­cavam integração com esferas institucionais, inclusive criando novos partidos políticos, como ocorreu na Espanha e na Gré­cia. A democracia representa­tiva não era negada, mas vista como uma condição necessária da política contemporânea a ser aprimorada e resgatada das mãos de oligarquias políticas e econômicas.

12Aqui podemos adiantar uma diferença substancial entre o espaço público e o espaço polí­tico. O primeiro é caracterizado por relações sociais horizontais em seu cotidiano, um espaço que segundo Berdoulay, Go­mes e Lolive (2004) remete à existência de códigos legais es­tabelecidos sobre a urbanidade e sobre as maneiras adequadas de utilizar esse espaço urbano, que é acima de tudo um espaço social, e o segundo é o espaço transformado pelas manifesta­ções políticas onde as relações transitam verticalmente entre atores sociais e as instituições do sistema político como ca­nais de encaminhamento das demandas vocalizadas por es­sas mobilizações (Gerbaudo, 2017). Há uma diferença essen­cial entre ambos: as relações moldadas pela sociabilidade no primeiro e aquelas definidas pela política no segundo.

2. Espaço político, o que é?

13Nesta parte propomos uma discussão sobre o espaço polí­tico, uma ideia que apesar da origem na ciência política, foi apropriado e ampliado na geo­grafia política e tem sido anali­sado como espaço de ação das políticas públicas e como palco de demandas sociais frente às instituições políticas.

15A condição para buscar uma compreensão do espaço políti­co como um conceito capaz de distinguir um objeto com qua­lidade, características distintas e significação para a reflexão e pesquisa na geografia política foi dada a partir do que Glas­sner et al. (1967) chamaram de « notável mudança de escala nas questões estudadas » pela dis­ciplina após a década de 1960, que abriu a possibilidade para trabalhos na micro escala e para novos enfoques na abordagem de problemáticas característi­cas dos conflitos de interesses nos espaços subnacionais. Mas, algumas décadas foram neces­sárias para o processo de reco­nhecimento do espaço político como uma categoria de análi­se na disciplina. Este tem sido desde então um desafio para pensar o espaço e a política não como duas acepções distintas ou interligadas numa compre­ensão generalizante, mas como passíveis de um sentido próprio quando a política torna-se um atributo de um determinado es­paço e este uma parte constitu­tiva daquela. Ou seja, quando este espaço qualifica a política que o diferencia de outros espa­ços e lhe atribui uma dinâmica própria da qual resulta um con­teúdo diferenciado desse espa­ço.

16Mas o recurso à noção de es­paço político não está restrito à geografia, nem a disciplina foi pioneira na ideia, nem requer a materialidade do espaço que os geógrafos reivindicam em suas análises. O conceito de es­paço político foi utilizado pio­neiramente por Antony Downs (1957) como o espaço da com­petição eleitoral, na qual elei­tores racionais se alinham num continuum de esquerda-direita. A partir de seus estudos, fir­mou-se uma corrente de análise espacial na ciência política nor­te americana, importante para estudos de competição elei­toral na qual se identificavam os espectros ideológicos da preferência dos eleitores como conservadores ou progressis­tas (Stokes, 1963). Sintetizan­do esta corrente, D’Alimonte (2003, p. 392), explica que « por espaço político se enten­de a área de conflito que cons­titui a relação entre eleitores e partidos, num dado sistema político e num certo momen­to histórico ». Mesmo se nesta perspectiva teórica o espaço seja metafórico e não conside­re qualquer componente que permita identificar este espaço abstrato da competição eleitoral como geográfico, é importante observar, como fizeram muitos geógrafos, o quanto existe de expressão espacial do voto, já identificada pela geografia elei­toral desde os trabalhos de An­dré Siegfried (Sanguin, 2010), e o quanto o espaço político da competição eleitoral adquire visibilidade e materialidade nos espaços legislativos.

17Mas a mudança de escala nos estudos de geografia política e o recurso às teorias desenvolvi­das pela ciência política, já na década de 1970, favoreceram maior compreensão sobre como os conflitos políticos nos espa­ços subnacionais podem defi­nir espaços qualitativamente diferentes. Neste período, Soja (1974) chamou a atenção para o problema da análise locacio­nal dos conflitos de interesses, negligenciada nos estudos dos sistemas políticos. A crítica dos geógrafos americanos à ciência política recaiu sobre a neces­sidade de ênfase também nos fundamentos territoriais, na es­trutura espacial e na expressão locacional do sistema político, além dos processos e das rela­ções que o moldam. Os geógra­fos, muito corretamente, cri­ticaram a perspectiva abstrata em relação ao espaço assumida pelos politólogos. Nesta mesma linha, o autor criticou o fato de os sistemas – social e político – serem pensados, « em essên­cia, frequentemente e totalmen­te divorciados de seu contexto geográfico » (op.cit.:59). Em reforço a esta observação, Soja (1974, p. 61-62) utiliza a ex­pressão espaço político como o espaço da comunidade política que se torna definida em termos territoriais e aponta a necessi­dade de maior interação entre a ciência política e a geografia como possibilidade para futu­ras pesquisas cooperativas (op. cit. p. 66). Estimulados pela mesma problemática coloca­da na década, Cox, Reynolds e Rokkan (1974, p. 29) afirmam que sistemas políticos são tam­bém sistemas espaciais, pois a localização tem significância crítica para os conflitos loca­cionais e para as suas soluções. Na década de 1970, o debate da geografia política norte ameri­cana sobre as abordagens loca­cionais do poder e dos conflitos foi uma resposta às análises sistêmicas da ciência política e da sociologia que teimavam em ignorar a importância do espa­ço geográfico como parte da di­nâmica das relações sociais. A partir da leitura atenta pelos ge­ógrafos políticos das teorias da ciência política e da sociologia e da sua incorporação à agen­da da disciplina, não era mais possível desconhecer que uma análise consistente dos arranjos espaciais dos conflitos sociais necessitava de uma compreen­são mínima daquelas teorias. Estavam postos neste debate os elementos necessários ao avanço de uma compreensão da política como possibilidade, recurso e estratégia para as con­figurações do espaço.

18A partir do final da déca­da de 1970, Kevin Cox (1979) aprofunda as pesquisas sobre os conflitos espaciais nas aloca­ções de políticas públicas, tra­zendo para a geografia o tema da « public choice », consolida­do da ciência política. Nessa época, seus estudos eram so­bre as estratégias políticas de grupos de pressão para atrair investimentos em políticas pú­blicas favoráveis aos seus lo­cais de moradia. Mas, em tra­balhos posteriores, a questão do espaço como necessária, e não contingente, tanto às relações sociais como à política, contri­buiu para as muitas possibilidades concretas da relação espaço e política. Esta era evidente, não apenas como reflexão con­ceitual geral, mas como proble­mática para a investigação em­pírica que focava determinados espaços como objeto para com­preensão do fenômeno estuda­do (Cox, 1991, p. 161).

19Mas, foi no início da déca­da de 1990 que a ideia do es­paço político como objeto de reflexão se colocou de manei­ra mais clara, embora ainda não completamente formula­da. Esta, afinal, pressupunha ir além da perspectiva já ampla­mente aceita da interação entre a política e o espaço. Era neste sentido que um número espe­cial da revista Espaces Temps, número 43-44 de 1990, reedi­tado posteriormente como livro (Lévy, 1991) começava com a indagação: « Espaço político, mas do que se trata exatamen­te? » Especialistas, não apenas geógrafos, foram convidados para responder brevemente à questão: « O que você entende por «espaço político»? » (Lévy, 1991, p. 17). Mas as respostas, naquele momento, não foram muito além da necessidade de reconhecer os espaços recor­tados pela função política das instituições de governo com a mediação das ações da socie­dade civil. O espaço político foi percebido como uma dimensão da sociedade, como um nível espacial particular (Lévy, 1991, p. 209). Ainda era pouco claro o que seria este « nível espacial particular ».

20Porém, já era possível iden­tificar nessas discussões a emergência de duas questões centrais: a necessidade de con­siderar as instituições políticas como potências organizadoras dos conflitos entre o espaço po­lítico e o espaço civil e a regula­ção crescente da vida política e dos movimentos sociais (Lévy, 1991, p. 210). Mas é em obra posterior que Jacques Lévy (1994, p. 15) propõe o espaço político como objeto a partir da consideração « da política (...) como um poder sobre as coi­sas, uma potência de transfor­mação, seja direta, seja como patamar para outras ações e finalmente uma modificação do espaço civil (...) », que ele não chega a definir muito bem. Para o autor, o espaço político incorpora a vida social e os mo­dos como esta pode modificar a geografia da decisão políti­ca, seja na geografia eleitoral, seja a intencionalidade do ator espacial individual para a ação concreta sobre o habitat. Anali­sando com um pouco mais de atenção, as questões levantadas pelo autor eram dirigidas ao es­forço de renovação e ampliação da agenda da geografia política, sendo a ideia de espaço políti­co um recurso importante para legitimar na disciplina as dife­rentes escalas e os recortes es­paciais demarcados tanto pela ação do poder público, como aqueles das preferências elei­torais ou mesmo das escolhas residenciais. Mas, o espaço po­lítico considerado pelo geógra­fo francês também poderia ser visto como o espaço da políti­ca, ou seja, o espaço de toda a sociedade, ou ainda, de modo mais específico, o espaço polí­tico torna-se uma invenção permanente da sociedade (Lévy, 1994, p. 248/258). O que não deixa muito claro como iden­tificar e recortar na prática este espaço, uma vez que ele recorre um grau de abstração que mais confunde do que esclarece.

21Ainda na década de 1990, Smith (1996, p. 82) dá conti­nuidade ao debate sobre a in­corporação da teoria política para a análise das questões da geografia humana e os movi­mentos sociais são destacados pela capacidade de criar no­vos espaços políticos para no­vas geografias. Nesse trabalho, os movimentos sociais, como agentes de transformação só­cio-espaciais e de controle do poder, são focados tanto como novas formas coletivas de ação política nas sociedades pós­-industriais como importantes nas escalas comunitárias para a configuração do que ele chama de espaço político.

22Mesmo se a partir da década de 1970 até a década de 1990 a renovação da geografia po­lítica implicou a incorporação de conceitos da ciência polí­tica para compreender de que modo fenômenos políticos tais como: ação coletiva; alocação de recursos governamentais; políticas públicas; decisão do eleitor; divisões político admi­nistrativas; movimentos sociais etc. impactavam o espaço, ain­da não havia uma compreensão clara sobre o espaço político e quais as possibilidades do con­ceito para a pesquisa empírica. Este era definido ora como o espaço da sociedade, ora como o espaço da resistência social, também como o espaço das escolhas eleitorais, ou mesmo como o que era chamado de espaço da política, aquele con­templado nas análises da geo­grafia política, tanto na escala global como na escala nacio­nal, regional ou local, especial­mente nos espaços urbanos. Ou seja, com tantas possibilidades, o espaço político poderia ser todo e qualquer espaço tratado na geografia política, o que reti­ra toda e qualquer possibilidade operacional do conceito para a pesquisa, tendo em vista sua indefinição e seu grau de abs­tração tal que impede qualquer reflexão acadêmica consistente sobre um e outro na disciplina.

23No campo intelectual da democracia, as discussões so­bre a necessidade de espaços e fóruns para a sua efetivação e legitimidade social (Young, 2000), consolidou a discussão e as pesquisas sobre espaços políticos nas ciências sociais. Estes são categorizados, de modo mais geral, como espa­ços de lutas, de mobilizações por direitos, envolvimento dos cidadãos na governança, de rei­vindicações, de protestos etc. (Daniel, 2002; Koebel, 2011; Holston, 2013; Cornwall, 2002, 2007; Brockett, 2015). Mas, es­tes espaços podem ser também aqueles das redes virtuais, sem materialidade, mas importantes por conectar movimentos em diferentes lugares do globo ou por facilitar a conexão entre o espaço virtual e o espaço con­creto das mobilizações (Cas­tells, 2015; Smith, 2015; De­Angelis, 2015).

24Nessa literatura, um bom exemplo da convergência indicada por Grahan Smith (1996) do conceito de espaço político dos movimentos sociais para aquele aplicado na geografia encontra-se também na antro­pologia com Cornwall (2002). Os espaços políticos, objeto de análise da autora, possuem materialidade, representam arenas políticas dentro e além do Estado-nação e constituem « alguma coisa que pode ser criada, aberta e remodelada. (...) O ato de participação pode ser visto dando vida a espaços, bem como esculpindo novos espaços e criando novas formas sociais com seu próprio domí­nio e ímpeto » (Cornwall, 2002, p. 2). Esses espaços estão as­sociados a arenas políticas e à governança, cuja função é abrir canais de comunicação com o poder político institucionaliza­do com objetivo de ampliar o atendimento às demandas so­ciais por voz e inclusão. Frente às possibilidades e complexida­de das formas de participação e dos espaços escolhidos e mol­dados para isto, a autora orga­niza uma tipologia de espaços políticos com base em critérios de: relação entre participantes e instituições; efemeridade, ou seja, espaços que se abrem com propósitos particulares e se fecham novamente; espaços escolhidos; espaços abertos das manifestações. Estas são algu­mas formas que assumem os espaços de ação de atores so­ciais e institucionais com obje­tivo de mudança, ou de conser­vação. Para a autora, diferentes possibilidades de participação e do envolvimento público na go­vernança reforçam a cidadania e legitimam esses espaços. Ou seja, a questão central, subsu­mida nas suas reflexões concei­tuais e na pesquisa empírica, é: de que modo os espaços políti­cos forjados pela sociedade, em aliança ou em confronto com as instituições, adquirem funcio­nalidades e formatos diferen­ciados, o que vem ao encontro dos argumentos e propostas que procuramos aqui apresentar.

25A ideia da necessidade de um espaço para a realização da política encontra-se também em Hanna Arendt, quando in­dica que o homem - como ser que age - constitui o centro da política (Arendt, 1998, p. 21- 23). Elaborando a ideia do es­paço político como um lugar, a autora argumenta que a ação política transborda das casas le­gislativas - espaços instituídos por excelência - para outros que constituem o seu repto. Mas, ao ponderar que o agir em comum dos homens acontece essencial­mente no espaço político, Arendt (1998, p. 78-79) destaca a fun­ção primordial da política na re­lação entre a força, possibilida­de do indivíduo ou da minoria, e o poder, potência da maioria, como base dos acordos neces­sários à ordem social e política.

26Na discussão até aqui ex­posta, a questão mais geral da relação entre o espaço e a po­lítica é o substrato analítico de onde emerge o espaço político como objeto que merece aten­ção na geografia. Tendo em vista as muitas possibilidades do conceito para a pesquisa na disciplina, em suas diferentes escalas, e para o estabeleci­mento de um diálogo enriquecedor com as ciências sociais, especialmente a ciência política mais atenta à relação entre te­oria e prática, a reflexão sobre ele permanece na agenda.

27Nesse diálogo, a expansão contemporânea da democracia de massas que resultou na mul­tiplicação e visibilidade das es­feras públicas e das arenas polí­ticas tem balizado na geografia política a aplicação do concei­to de espaço político (Castro, 2016). Nesta aplicabilidade do conceito há uma compreensão de que a política é uma prática e se revela em espaços concretos e que a qualificação do espaço pela política supõe uma dimen­são da sociedade e possui no mínimo três atributos: a escala, a métrica e a substância (Lévy, 1999), mas que interagem com a dimensão conflitual do mundo social. É neste sentido que ato­res políticos constroem escalas de ação (Cox,1998) que confe­rem visibilidade e estabelecem recortes operacionais, cujas métricas se definem pelo alcan­ce, na sociedade, dos impactos das decisões tomadas. Neste processo, os parlamentos e os espaços escolhidos pela socie­dade para dar voz e visibilidade às suas demandas constituem espaços políticos que podem ser menos ou mais ativos.

28O espaço político é então um tipo de espaço ao mesmo tem­po de disputa sobre interesses conflitantes, cujos acordos re­velam a capacidade de algumas vontades imporem-se sobre outras. Não se trata aqui, por­tanto de abstração, mas de prá­tica social, visível e acessível e personifica a materialidade inerente à vida política que su­põe pensar e falar como meios de persuasão e o agir como fi­nalidade dos atores institucio­nais (Castro, 2012). O espaço político é então um lugar mo­bilizado para o confronto, onde os homens agem coletivamente com uma intenção, o lugar da defesa de interesses, da nego­ciação e da disputa de poder sobre os acordos em relação às normas necessárias ao convívio pacífico entre diferentes visões de mundo. Há, pois na ação no espaço político uma dimensão instituinte, ou seja, uma cone­xão com o poder decisório go­vernamental, qualquer que seja a sua escala.

29Os espaços políticos podem ser pensados como objetos ge­ográficos que apresentam dife­renciações e a princípio podem ser classificados segundo crité­rios de escala, métrica e subs­tância, como já indicado, como fundamentos da sua visibilidade (reconhecimento), abrangência (alcance) e efetividade (efeitos desejados) respectivamente. Como outros autores nas ciên­cias sociais citados já o fizeram (Cornwall e Coelho, 2007), é possível estabelecer uma tipo­logia de categorias básicas de espaços políticos que podem ser tratados na geografia, com uma terminologia que remete à qualidade mais essencial de cada tipo considerado. Neste sentido, identificamos três tipos básicos de espaços políticos: exclusivos, limitados e abertos, tendo em vista a característica da verticalidade mais essencial da ação política em cada um.

30Os Parlamentos, as Assembleias ou Câmaras Legislativas são decerto espaços políticos exclusivos, ou seja, são cons­truídos e organizados essen­cialmente para o debate e a deliberação política. Possuem ampla visibilidade e reconhe­cimento formais, são espaços onde se debatem interesses ge­rais conflitantes e cujos efeitos das decisões tomadas, sua subs­tância, são erga omnes, ou seja, afetam o conjunto de cidadãos representados nos recortes ter­ritoriais da sua jurisdição e sua métrica, demarcada pela escala da ação. A ideia de exclusivida­de decorre do fato de que nas democracias representativas, apenas nas instituições legisla­tivas, espaços políticos por ex­celência, é possível estabelecer normas impositivas para toda a sociedade no limite da sua cir­cunscrição (Bobbio, 1987).

31Os espaços políticos limita­dos correspondem aos muitos espaços de debates e represen­tação de interesses particulares nas sociedades contemporâne­as. São institucionalizados e facultados por normas de parti­cipação em diferentes modelos de democracia como os muitos tipos de conselhos e de fóruns temáticos, além de associa­ções, inclusive as de moradores (Azevedo, 2016). A qualifica­ção de limitado remete mais à demarcação temática e deci­sória do que à escala dos seus efeitos. Ou seja, esses espaços podem ter resultados efetivos de suas ações em diferentes es­calas, mas são restritos à agen­da temática, como parte da sua atribuição.

32Os espaços políticos abertos (Castro, 2016), que Cornwall (2002) chamou de espaços polí­ticos de movimentos e momen­tos efêmeros, se expressam nas ruas e praças, lugares do coti­diano social que se metamorfo­seiam em arenas de demandas, conflitos e ação, o que os inves­te de evidente caráter político (Machado Filho, 2017). Estes são espaços da visibilidade e da performance política em bruto, ou seja, como forma que precisa ser interpretada (Bucci, 2016; Gerbaudo, 2017; Routledge, 2017). Sua escala e métrica são variáveis e instáveis, mas seus afeitos, como condição da sua substância podem afetar pro­fundamente algumas decisões políticas de prazo mais longo, estabelecendo um nexo vertical entre a « praça » e o « palácio », ou mais objetivamente, entre a sociedade e seus governan­tes. Estes são espaços de ação abertos a toda a sociedade, qua­lidade intrínseca aos espaços escolhidos para manifestações, protestos, passeatas, ocupações e tudo mais que a imaginação dos ativistas sociais decidir criar para alcançar seus objeti­vos políticos. Nunca é demais lembrar que quanto mais livres, numerosos e reconhecidos pela sociedade esses espaços, maior será o vigor da sua participação política na organização e defesa dos seus interesses.

33A tipologia aqui exposta, muito mais sintética do que a proposta por Cornwall (2002), por exemplo, tem se mostrado útil para a geografia política na medida em que ela estabelece os três lugares privilegiados da ação política nas condições do mundo atual. O suposto é que os diferentes tipos de espaços políticos modelam e são mode­lados por determinados tipos de ação de atores sociais, tornan­do-se o lugar de discussão, de deliberação ou apenas de ma­nifestação de vontades. Mas, o que é peculiar nesses espaços é a sua qualidade de estabelecer nexos entre os interesses que neles se expressam e a produ­ção de normas favoráveis àque­les capazes de se impor aos demais, questão central da po­lítica. Se do ponto de vista da operacionalidade da pesquisa, a identificação desses três tipos de espaços pode parecer à pri­meira vista restritiva, na reali­dade ela tem o mérito de supe­rar a imprecisão da ideia de que o espaço político é o espaço da competição eleitoral, ou o espa­ço da vida social ou ainda o es­paço recortado pelas escalas de ação da gestão pública. Desse modo, a consideração da políti­ca supõe reforçar a perspectiva das instituições como potências organizadoras da agenda po­lítica, tendo em vista as dife­rentes formas de mobilização da sociedade como potências instituintes que dialogam e se confrontam permanentemente com o status quo. Mas, deve ser destacado que estas ações qua­lificam um dado espaço onde é possível identificar e descrever um cenário real no qual nor­mas são colocadas em questão. É nesta força dinâmica que se delineiam os cenários múltiplos e complexos dos espaços políti­cos, cada vez mais apropriados como objeto de pesquisa das ciências sociais, mas que me­recem ser estudados e compre­endidos pela geografia, tendo em vista o desafio que colocam para a compreensão mais obje­tiva da relação entre o espaço e a política como ação.

3. Quando, como, em que circunstâncias e em que graus os es­paços públicos podem se transformar em espaços políticos?

34Nas duas partes anteriores apresentei os argumentos para a tese, defendida na abertura deste artigo, de que os espaços públicos não são por natureza espaços políticos, mas espaços da socialidade, ou seja, o lugar do encontro, do ver e do ser vis­to, com limites físicos, normas e regras de comportamento de­finidos pelos poderes políticos institucionalizados. Mas são passíveis de qualificarem-se como espaços políticos quan­do invadidos por fenômenos da política que, temporariamente transformam sua natureza de lugar do encontro, do ver e do ser visto em palco de atividades que alteram suas rotinas e seu público usual. A questão central dessa perspectiva é aquela que trata a política a partir da sua própria autonomia, dos seus imperativos, das suas leis e que não pode ser reduzida a outra coisa (Sartori, 1973, p. 178).

35Nesta parte, discuto a incon­gruência dos argumentos que defendem uma essência políti­ca no espaço público a partir da ideia geral da espacialidade da política e da assertiva da ação política como uma esfera abstrata (Gomes, 2012, p. 32-37). Esta incongruência reside, pois no fato de ignorar a autonomia da política, questão central no debate da ciência política, e de tomá-la como uma palavra va­zia, ou seja, como um objeto sem qualidade e de pouca uti­lidade, seja para a reflexão seja para a pesquisa empírica. Este é o mesmo equívoco da ciência política ou da sociologia quan­do tratam o espaço de modo metafórico e abstrato, esva­ziando seu significado material e sua densidade conceitual tão debatida na geografia.

36Para encaminhar o debate aqui proposto, recupero a ideia central contida na definição mais restrita de espaço públi­co na geografia e ainda usual na sociologia e no urbanismo. Na geografia, Brunet, Ferraz e Théry (1992, p. 195) o definem como uma extensão aberta ao público e mantida ou equipa­da para este fim: praça, espaço verde, jardim, aleias, passeio, parque. Mas o conceito não é consensual e está sujeito a con­tínuos debates, na geografia e fora dela.

38Para Saskia Sassen, soció­loga, os espaços públicos con­tinuam a ser uma característica fundamental das cidades (...). E, assinala o que considera a diferença política entre a rua e a praça da cidade contemporâ­nea e o bulevar e a piazza da clássica cidade europeia. As primeiras seriam palco de ações e as últimas de rituais. Para ela, a rua global é o espaço emer­gente onde os que têm menos poder estão fazendo história a sua maneira. Luiz Guilherme Rivera de Castro, arquiteto e urbanista, propõe um conceito para o « espaço público » no sin­gular e para « espaços públicos » no plural. O primeiro como a esfera pública, o domínio dos processos propriamente polí­ticos, das relações de poder e das formas que estas assumem nas sociedades contemporâne­as. Nos espaços das cidades, na mídia ou na internet, é a esfe­ra da cidadania e da expressão política das forças sociais. O segundo, no plural, compreen­de os lugares urbanos que, em conjunto com infraestruturas e equipamentos coletivos, dão suporte à vida em comum: ruas, avenidas, praças, parques. Nes­sa acepção, são bens públicos, carregados de significados, pal­co de disputas e conflitos, mas também de festas e celebrações. Fadi Shayya, urbanista destaca em Beirute a invasão dos espa­ços públicos por ativistas desde 2005. Para ele a cidade entrou em uma nova era de territoria­lidade espacial e ideológica « Nos últimos oito anos, praças públicas, parques e ruas estão sempre ocupados por diferen­tes facções protestando contra um grande espectro de agen­das ». Paula Santoro, urbanista, destaca que nas manifestações públicas por todo o País, foi no espaço público que o movimen­to cívico e apartidário tomou as ruas do Brasil. Mas, claro, apenas nas ruas que estavam aber­tas. Para ela, não há mais o lu­gar do encontro das massas que não seja nas ruas.

39Desta exposição muito sinté­tica, três perspectivas chamam a atenção. Aquela dos espaços urbanos criados e equipados para uso público; aquela desses espaços como lugar de ações, de agitações, de manifestações e de conflitos e aquela do es­paço público no singular como homólogo à ideia de esfera pú­blica.

40Mas, é importante traçar uma linha do tempo sobre o conceito na geografia em três dicionários de referência na disciplina que vai da definição de Brunet et al. (1992, p. 195) explicitada acima, àquela de Ja­cques Lévy (2003, p. 333-340) e posteriormente Gregory et al. (2009). Neste período o concei­to apresenta uma clara deriva a partir da assimilação das dis­cussões sobre a esfera pública realizada por Habermas (1984).

41Mondada (2003, p. 333) cri­tica o limite da análise padroni­zada do espaço público na geo­grafia, arquitetura e urbanismo a partir da década de 1980: uma abordagem que trabalhada no sentido da « esfera pública », pela filosofia e ciência política, levou a traçar a priori o espaço público como espaço virtuoso da cidadania, portador intrinse­camente das virtudes da troca interpessoal, o quadro ideal da realização perfeita da discussão cidadã livre e igualitária. Para ela, trata-se de uma concepção que remete ao tipo-ideal mito­lógico da praça pública: aque­le da ágora grega, constituída como origem e matriz de todo espaço público.

43Voltando a Mondada, a auto­ra conclui que a noção se impôs a tal ponto que apagou aquela de espaço público urbano utili­zado por arquitetos, geógrafos e urbanistas anteriormente. E, considerando essas ambigui­dades, ela sugere que seria ju­dicioso sistematizar o emprego de esfera pública para designar a cena deliberativa e o domínio da opinião pública e reservar o emprego de espaço público para analisar as características espaciais de objetos de socie­dades específicas (praças, ruas, jardins etc.).

44Mas a influência da esfera pública de Habermas na discus­são sobre o espaço público na geografia é evidente também no verbete do The dictionary of human geography (Derek et al, 2009). O texto destaca que falar de espaço público é necessaria­mente falar da esfera pública, o reino da opinião e ação coletiva que estabelece a mediação en­tre sociedade e Estado, embora reconhecendo que esfera pú­blica e espaço público não são intercambiáveis. A perspectiva aqui é mais nuançada e reco­nhece ser no espaço público que conversas e encontros da vida pública se tornam físicos e reais, o que afinal é o esperado nesses espaços, ao contrário da imaterialidade da esfera públi­ca, lugar abstrato da formação da opinião pública.

45Porém, em elaboração pos­terior, Habermas (1997, apud Borges, 2017) propõe que exis­tem diferentes tipos de esferas públicas que podem ser defi­nidos de acordo com sua com­plexidade organizacional e de seu alcance, sendo destacados três tipos de esferas públicas: as esferas públicas episódicas – bares, cafés, teatros; as esferas públicas da presença organiza­da – reuniões de pais, associa­ções de moradores, movimen­tos sociais e as esferas públicas abstratas – rádio, televisão, jornais e revistas. Portanto, as esferas públicas são sempre formadas por fluxos imateriais – ideias, opiniões – mesmo que os lugares de encontro dos debates e exposição de ideias sejam diferentes. Esta materia­lidade, portanto não é inerente ao conceito.

46Em seu livro Direito e de­mocracia, Habermas (1997, p. 92, apud Borges, 2017) acaba por redefinir seu entendimen­to sobre a esfera pública ao compreendê-la como fluxos comunicacionais, afastando mais uma vez a ideia de que a esfera pública necessitaria de materialidade ou de um espaço público. Para o autor a esfera pública contemporânea pode ser definida como « uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de po­sição e opiniões, nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de conden­sarem opiniões públicas enfei­xadas em temas específicos ».

47Jacques Lévy (2003, p. 336- 338) enfrenta as injunções do tema na geografia fazendo da civilidade uma dimensão não política e do espaço público uma utopia que, onde é adotada, participa ativamente da vida ur­bana concreta. No entanto, para ele os laços fracos que possibi­litam os lugares públicos, re­velam exigências estritas sobre as quais não se pode cometer excessos, se se quer conservar seu caráter aberto. Ele destaca que o caráter público do espaço vem daquilo que ao menos aí circula de político, compreen­dido por ele no contexto do de­bate sobre espaço público como valores da sociedade urbana, o mais frequente sob a forma de civilidade, quer dizer sob a figura da assimilação silenciosa cujos laços distantes organizam a co-presença em cada lugar ur­bano.

48Trata-se para ele dos valores da sociedade urbana e de sua implementação. A civilidade seria o político – o que foi acor­dado - sem a política – o con­fronto de interesses. Esta ma­neira não institucional de fazer política supõe a outra vertente explícita, qual seja, a governa­mental (a realização e a gestão do espaço público) ou a cidadã (o civismo do engajamento em caso do conflito sobre o uso). Para ele, a civilidade é uma política de forte componen­te interativo, que se constrói a cada instante sem deixar traço visível, mas se incorporando sub-repticiamente nos objetos.

49Nesta perspectiva, para Lévy, a política é relacional, e está na sociedade, mas também na instituição governamental, e o espaço público confere vi­sibilidade ao que é acordado formalmente ou informalmen­te. Neste sentido, começamos a perceber que uma melhor com­preensão sobre a política co­loca-a nos sistemas decisórios – formais e informais – da so­ciedade que impregnam todos os seus espaços, e não apenas aqueles públicos urbanos, com a civilidade, mas também com comportamentos transgressores e com os obrigatórios segun­do regras impostas legalmente pela maioria através das leis. Não parece então evidente que haja nos espaços públicos qual­quer natureza política pelo fato de a civilidade, como afirma Lévy, incorporar-se sub-repti­ciamente nos objetos. Afinal, um observador mais atento verá que a civilidade é uma marca que vai muito além dos limites daqueles espaços.

50Neste ponto, a questão da cidadania e da civilidade, re­ferências sempre presentes nos argumentos sobre a existência de uma natureza política no es­paço público, pode ser retoma­da a partir dos argumentos de Schnapper (1994, p. 118-119) sobre a cidadania. Embora ela discuta também a soberania na­cional, este ponto não será aqui desenvolvido. Para ela, ambas são ficções abstratas em torno das quais não se pode congregar ou mobilizar indivíduos. A co­munidade de cidadãos somente pode surgir se esse tipo de va­lor for incorporado por práticas sociais e instituições políticas, uma conformidade subjetiva entre cidadãos não bastaria para isso. Em outro trabalho mais es­pecífico, a autora destaca que a cidadania tem por princípio um sentido jurídico. « O cidadão não é um indivíduo concreto », ele é resultado de definições resultantes de conflitos e com­promissos, entre grupos sociais opostos, de acordo com as re­lações de força que se estabe­lecem entre eles. Neste sentido, a cidadania só pode organizar a sociedade se ela personifica as regras jurídicas e, de modo geral, um conjunto de institui­ções e práticas sociais, que não cessam de evoluir (Schnapper, 2000, p. 138).

51Outra questão importante em relação à cidadania é relati­va ao papel das instituições po­líticas que formam os cidadãos e organizam o debate entre eles. A multiplicidade de formas concretas pelas quais este deba­te é instituído demonstra que as soluções alcançadas para conci­liar os direitos do indivíduo ci­dadão e as exigências da orga­nização coletiva não são jamais boas para todos e para sempre (Schnapper, 2000, p.153). Para a autora, instituições como a es­cola, os parlamentos, os meios de comunicação são centrais para a formação de uma opi­nião pública, por mais abstrato e discutível que este conceito seja. Na mesma linha Haber­mas (1997, apud Borges, 2017), citado acima, chama a atenção para espaços de debate das es­feras públicas, como os bares, cafés, teatros, reuniões de pais, associações de moradores, mo­vimentos sociais, bem como os meios de comunicação – rádio, televisão, jornais e revistas.

52Dessa forma, o debate moti­vado por interesses divergentes como meio de alcançar o com­promisso sobre a civilidade e a cidadania se faz nos muitos fóruns adequados aos muitos temas, públicos e locais que não podem ser confundidos genericamente com os espa­ços públicos urbanos. Portan­to, nem o debate público, nem a cidadania, nem a democracia são condições substantivas para qualificar esses espaços como políticos. Afinal o debate pú­blico vai bem além da ideia da co-presença; a cidadania é um construto legal e diferenciado em muitos países onde pessoas gozando de direitos limitados frequentam espaços públicos; espaços de uso público existem e são frequentados em socieda­des não democráticas.

53No entanto, como já indi­cado acima, a compreensão do espaço público como extensão aberta ao público e mantida ou equipada para este fim: praça, espaço verde, passeio etc. guar­da uma simplicidade operacio­nal e pouca sofisticação con­ceitual. A tradução equivocada da esfera pública de Habermas para espaço público ampliou as possibilidades intelectuais do conceito ao custo de torná-lo uma quase ficção, um modelo abstrato do ideal republicano da cidadania, da democracia, do debate público em torno dos conflitos de interesses. Nesta perspectiva, este espaço com tantas atribuições e responsabi­lidades perde a qualidade dada por sua materialidade, tão cara à geografia e torna-se um cons­truto intelectual que pode che­gar a substituir a própria ideia de sociedade, neste caso de pouca originalidade, uma vez que esta já é objeto de muitos campos do conhecimento nas ciências sociais.

54Finalizando e reiterando o que já foi explicitado, os es­paços públicos são objetos de análise importantes na geogra­fia urbana e nas últimas déca­das têm sido invadidos por um novo tipo de protagonismo que tem revelado suas possibili­dades como espaços políticos. Lutas, mobilizações por direi­tos, envolvimento dos cidadãos na governança, reivindicações, protestos etc. são ações no es­paço que têm sido amplamente estudadas pelas ciências so­ciais. Trata-se do mundo real da política, da sua concretude revelada em atos e decisões, requalificando a materialidade do espaço público, tão caro às análises da geografia urbana, tornando-o outro tipo de espa­ço, qualificado pela política e aberto à investigação e debates na geografia.