Introdução

1Este artigo deriva de algu­mas inquietações que aparece­ram em meus trabalhos de cam­po, realizados entre os anos de 2009 e 2014, e que foram par­cialmente discutidas na minha tese de doutorado, defendida em 2015. Enquanto descrevia paisagens noturnas, cenários luminosos e práticas associa­das à vida noturna, me deparei com diferentes grupos sociais, formas de apropriação do espa­ço e políticas urbanas voltadas para a noite carioca. Em traba­lhos anteriores também discuti o passado e as atuais mudanças na vida noturna da cidade do Rio de Janeiro (Góis, 2014). O objetivo desse artigo é avançar um pouco sobre um dado par­ticular observado em campo: a concentração de pessoas em es­paços públicos durante a noite. A ideia aqui defendida é de que as práticas de sociabilidade ati­vam os espaços públicos duran­te o período noturno, algo de­fendido por Gomes (2012) em relação aos espaços públicos de forma geral. Esta ativação surge das atividades que são especificamente criadas para a diversão de um público, o qual se reúne, durante a noite, em al­guns poucos centros de grande visibilidade no espaço urbano.

2Como o ponto central de in­vestigação contido neste artigo não havia sido objeto de uma pesquisa sistemática anterior, a construção de novas perguntas sobre o fenômeno das práticas sociais em espaços públicos durante a noite foi um passo crucial nessa direção. A pri­meira questão, e mais básica, dirige-se para a transformação de espaços banais, públicos no sentido administrativo, em es­paços públicos de fato, ou seja, lugares onde pessoas em seus mais variados matizes sociais se encontram e respeitam um conjunto de regras de convi­vência com o intuito de parti­cipar de um jogo social. Esta questão se desdobra ainda em outras, mais fundamentais para o meu próprio trabalho: por que determinados lugares se ativam como espaços públicos durante a noite? O que se deposita so­cialmente nestes lugares? Que regras os organizam? Quem participa? Que conflitos emer­gem?

3A leitura do fenômeno a partir de um novo conjunto de questões se valeu de um proces­so de recuperação de dados de campo, como anotações, foto­grafias e croquis. De modo se­melhante esta oportunidade nos garantiu um retorno às fontes hemerográficas e aos dados de análises qualitativas de legis­lações sobre o espaço público carioca. Reorganizado por no­vas questões, brotou um novo conteúdo teórico e empírico para a análise. A partir disso, propõe-se um encaminhamen­to organizado em três partes: a primeira buscará apresentar o marco teórico da discussão sobre os espaços públicos no­turnos; a segunda tratará das questões metodológicas, da ob­servação e das peculiaridades da pesquisa sobre o noturno; e a terceira parte será dedicada a alguns exemplos inspirados no caso carioca.

Espaço público, noite e sociabilidade

4Todas estas questões são colocadas a partir de um lugar específico dentro de um plano teórico bastante restrito. Por isso, cabe dizer que o que estou chamando de espaço público é algo que envolve, ao mesmo tempo, um recorte espacial con­creto, um lugar, e uma forma de relação entre pessoas, um pú­blico (Gomes, 2001). O espaço construído é fundamental não somente como uma base ou um palco para a ação humana, mas também como elemento ao qual se atribuem significações, sen­tidos e desejos. Assim, tal ma­terialidade é recoberta por uma camada simbólica, constituída pelos valores sociais aí deposi­tados. Sua relevância não pode ser, no entanto, reduzida a uma mera formalidade, como um espaço administrado por um agente social; nem mesmo se li­mitar ao uso banal, como mera rota, passagem ou elemento do fluxo cotidiano desinteressa­do. Se entendido como espaço público, a materialidade do es­paço torna-se parte de um jogo social, ou melhor, um contexto para a participação de pessoas, um público (Crawford, 1995). Este público faz uso do espa­ço para dar visibilidade às suas ações e, ao fazer isso, dá visi­bilidade ao próprio espaço (Go­mes, 2012).

5O espaço público é caracteri­zado pela diversidade de pesso­as que aceitam dividir um mes­mo conjunto de regras sociais para conviver, para estar junto, apesar dos variados interesses e valores sociais que possuem enquanto indivíduos ou mem­bros de uma coletividade. Nes­te sentido, a ordem é um fator crucial para que se mantenha a unidade em meio à diversidade do público (Berdoulay, Gomes e Lolive, 2004). Ocorre que os conflitos são inerentes ao cará­ter social do meio e a sua visi­bilidade às vezes pode denotar uma fissão social. No entanto, parte do processo democrático consiste na aceitação de que os conflitos ocorrem e que podem ser discutidos e negociados a partir de um conjunto de nor­mas que regulam os direitos do cidadão e permitem a sua parti­cipação no jogo social.

6Quando ativados durante o período noturno, os espaços públicos dão visibilidade e este mesmo conjunto de problemas. Há grupos sociais que ocupam um espaço construído e o res­significam a partir de suas prá­ticas. No entanto, é necessário apontar que a noite não traz consigo um novo conjunto de regras ou um novo sentido para a vida pública. Ainda que certo ideário revolucionário aponte a noite como um período trans­gressivo (Cresswell, 1998), quando as leis se tornariam mais flexíveis e as práticas me­nos previsíveis, permanecem os esquemas sociais mais gerais que mantêm o respeito às nor­mas. Há um espaço concreto, regulado e compartilhado so­cialmente que, em alguns mo­mentos, apresenta conflitos de ordem social. Estes aconteci­mentos são, entretanto, comuns à noite e ao dia.

7As práticas sociais é que pa­recem ganhar um novo conteúdo. O interesse social pela noi­te passa a atender um público variado de pessoas que busca no contato com outros a reali­zação de algum desejo. Trata-se de um jogo no qual as peças se movem em busca da satisfação de um desejo a partir do lazer noturno, ou seja, em busca de atividades que permitam aos in­divíduos enredados na situação a solução de uma inquietação relacionada à diversão, ao pra­zer, à excitação ou à qualquer outra prática que envolva estar junto e compartilhar uma expe­riência, um acontecimento ou uma atividade naquele momen­to (Goffman, 2010). Pode se tratar daquilo que foi chamado de sociabilidade desinteressada por Georg Simmel (2005), ou seja, uma forma lúdica de sociação, que vê no estar junto a realização de uma satisfação, sem que haja, de fato, um pro­duto, um objetivo ou um resul­tado esperado. Desse modo, a noite é um momento no qual as práticas festivas ganham maior visibilidade, dando a impressão de que as regras se flexibilizam, quando, na verdade, se mantêm como pano de fundo das ações e das relações.

8A ativação dos espaços pú­blicos durante o período notur­no demanda, portanto, o encon­tro entre pessoas, que formam um público, em um dado lugar, em um dado momento, que buscam a realização de um de­sejo, mormente relacionado às práticas de lazer. Isto possui uma relação bastante complexa com a forma como cada meio social valoriza a noite e o seu papel na reconfiguração dos comportamentos em espaços públicos. De modo bem geral, este comportamento tende a ser associado às práticas de lazer e de entretenimento e tende a valorizar o caráter divertido e lúdico da noite. Não por acaso, a noite acaba sendo associada aos atos de ouvir música, dan­çar, beber, experimentar novas drogas, transar etc.

9A ativação desses lugares de­corre, portanto, de sua associa­ção a alguma forma de prazer no estar com outros realizando alguma atividade que seja mais flexível do ponto de vista mo­ral. Acredita-se que ir a tais lu­gares aumenta a chance de se realizar algo que é esperado, como encontrar certas pessoas e passar um tempo divertido fora dos ambientes de trabalho e de casa. Há uma certa expectativa pelo fim do dia e pelo início da noite, até mesmo porque « todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite ».

Notas metodológicas

10A observação dos espaços públicos noturnos pode ser con­cebida de diversas formas. A al­ternativa mais comum envolve a aplicação de um questionário ou de um roteiro de entrevista com os usuários. A pesquisa privilegiaria os sentidos e as razões que levam indivíduos e grupos a se encontrarem em ba­res, calçadas e esquinas durante a noite, suas redes de relaciona­mento e os valores atribuídos a tais ajuntamentos. Trata-se de uma reconhecida e eficaz me­todologia, utilizada em diver­sos estudos sobre o tema nas ciências sociais e na geografia (Margulis, 1997; Almeida e Tracy, 2003; Magnani, 2005; Turra Neto, 2011).

11Para responder às questões lançadas acima seguimos uma rota diferente. Decidimos va­lorizar a tradição geográfica da observação direta, o que inclui repetidas idas a campo, guia­das por registros imagéticos e textuais, que tentavam captar os movimentos e as estâncias escolhidas por um público em uma dada área. Croquis e fichas de registro de observação fo­ram acompanhados de rápidas intervenções por meio de per­guntas a usuários dos espaços, trabalhadores da noite e toda a sorte de pessoas encontradas no caminho. Em alguns momen­tos, os grupos eram seguidos – com a sua autorização e a minha identificação – no intuito de se descobrir os circuitos noturnos que conformavam os espaços públicos. Quase sempre me vi como um outsider, participando de atividades variadas, desde jogos de sinuca e karaokês até rodas de entusiastas de reggae. Cabe ressaltar que a decisão por um menor envolvimento não quer sugerir de modo al­gum uma pretensa neutralidade frente ao que foi pesquisado. A escolha sugere, sim, uma alter­nativa aos modelos que tendem a estudar a noite somente a par­tir de pequenos grupos, sem se pronunciar frente ao caráter di­verso da organização social da vida noturna, seu público e es­paços, o que, neste caso, possui nítida inspiração no trabalho realizado por Whyte (1980).

12A variedade de apresenta­ções no espaço público duran­te a noite constitui um desafio metodológico para as investi­das dos geógrafos. Há um con­junto praticamente infinito de possibilidades de trajetórias, incluindo um número também infinito de concentrações pos­síveis. Desta imensa variedade sobressaem, no entanto, pa­drões coreográficos, ou ainda, trajetórias e concentrações que se repetem. Há pontos mais atraentes, ligações mais fortes, caminhos mais recorrentes. O interessante é buscar algumas razões relacionadas a estes pa­drões. No campo vasto e apa­rentemente caótico de situações que se enquadram na noite de uma cidade há certa ordem es­pacial a ser exposta.

13O interesse em perceber as lógicas das trajetórias e das concentrações foi despertado a partir do trabalho de Hagers­trand (1967) sobre os produto­res rurais suecos, especialmente a partir da leitura feita por Allan Pred (1977). Ao estudar os lu­gares de vida noturna a partir da ideia de trajetórias e de concen­trações se quer reafirmar a im­portância dos padrões espaciais das práticas na composição dos cenários noturnos. Isto quer di­zer que se observam as práticas sociais sob um ponto de vista que busca ir além das implica­ções meramente relacionadas às formas de consumo. Nesse caso, os praticantes possuem papéis mais amplos do que somente consumidores de ser­viços (Hollands e Chatterton, 2003). Admite-se aqui que os agentes sociais são indivíduos com poder de agenciamento e de negociação dos seus papéis e de seus lugares no espaço. Ao afirmamos a capacidade de agenciamento na definição dos padrões socioespaciais valori­zamos as práticas e atribuímos novo sentido ao espaço cons­truído, como uma estrutura fí­sica que coloca limitações para trajetórias e concentrações, mas que também permite a negocia­ção das posições, sendo parte integral dos cenários noturnos.

14A repetição de trajetórias e de concentrações possui ex­pressividade na apresentação de um determinado lugar durante a noite. Queremos dizer com isso que os cenários de vida noturna possuem uma centralidade que absorve os fluxos de outros lu­gares da cidade, concentrando­-os em torno de suas atividades. Muitas trajetórias individuais se entrecruzam em lugares como a Lapa, a Praia de Copacabana ou o Largo do Machado e, em alguns casos, essa concentração é mais intensa durante a noite. Ao mesmo tempo, em cada lu­gar que apresenta intensa vida noturna se formam trajetórias e concentrações internas, as quais dão ao lugar a sua característi­ca socioespacial. Nesse caso, trajetórias e concentrações são como desenhos gráficos que su­gerem, pela prática recorrente, uma forma de estar e de ser na vida noturna.

15Finalmente, a noite tem os seus próprios circuitos forma­dos pelas práticas sociais de cada lugar e segundo os ritmos dos lugares, ou ainda, a noite fornece novos dados para que as práticas sejam renegociadas e reconstruídas em forma de pa­drões espaciais (Gwiazdzinski, 2005). Neste sentido, o estudo dos ritmos é uma boa forma de inspiração para a busca de pa­drões, pois permite que o co­tidiano seja agrupado a partir do lugar e não somente do in­teresse individual ou de grupos em relação a ele. A proposta de Lefebvre (1992) em relação à análise dos ritmos é relativa­mente conhecida e apresenta a possibilidade de compreender a cidade como um conjunto de múltiplas temporalidades colo­cadas em jogo cotidianamente. Por isso, para Lefebvre, não se trata de um estudo sobre a singularidade, mas de como o ajuntamento de ritmos diferen­tes em um dado lugar pode criar um padrão do lugar. Para Lefe­bvre, sempre que há interação entre um lugar, um tempo e um gasto de energia, há ritmo. Este ritmo é fundamentalmente for­mado por repetições.

16Em geral, tende-se a pensar o ritmo noturno de um lugar como diferente de seu ritmo diurno, como uma ruptura em relação ao ritmo do dia. Para Lefebvre a noite tende a desa­celerar o ritmo da cidade, re­duzindo o tráfego de pessoas e de veículos, levando a cidade à arritmia social. Outros, como Mike Crang (2001), sugerem que, em geral, a noite tende a exibir um ritmo irregular para os setores mais tradicionais da sociedade, sendo associada aos distúrbios provocados pe­los seus usuários. Ao que tudo indica, em nossa pesquisa, a noite seria um novo momento de negociação das práticas so­ciais, revelando atividades no­vas que são afinadas a partir de um novo diapasão. Os ritmos noturnos obedeceriam, assim, às renegociações dos lugares em que determinadas práticas poderiam ocorrer. Logo, em alguns lugares da cidade pode­ria prevalecer a arritmia notur­na, enquanto em outros a noite anuncia a saída de um estado de arritmia e a chegada de um ritmo organizado ou mesmo de uma polirritmia, como pode ser visto na comparação entre a densidade observada durante o dia e a noite em duas áreas do centro da cidade do Rio de Ja­neiro: o largo da Carioca (figura 1) e o largo da Lapa (figura 2).

17Cada área possui certo nú­mero de trajetórias e de con­centrações que são de alguma maneira orientadas segundo um conjunto de variáveis es­paciais como, por exemplo, a disposição do mobiliário, a proximidade com um elemento de transição, a centralidade de um determinado ponto, a dis­ponibilidade de iluminação, o ambiente sonoro etc. Todas as variáveis possuem um peso nas decisões sobre o caminho que será traçado ou o lugar em que se ficará mais demoradamente. Por um lado, esses elementos são estruturantes das escolhas, pois são parte de um aprendi­zado social sobre o espaço. Por outro lado, os indivíduos têm capacidade de negociar com es­ses elementos e utilizá-los con­forme o seu interesse. Um bom exemplo pode ser obtido na obra de Perec (2016 [1975]) ao observar o efeito da chuva na circulação de pessoas em uma praça parisiense.

18Cada área possui uma com­posição diversa de elementos socioespaciais e é isto que dá o seu caráter peculiar e dife­renciado em relação a outros lugares. Os indivíduos po­dem, assim, mudar as práticas e as formas de negociação já que também mudam as ca­racterísticas do espaço cons­truído. A excepcionalidade ou particularidade de um lu­gar não é, no entanto, alheia aos padrões, pelo contrário, todo lugar é uma forma de combinação única de elemen­tos comuns a outros lugares (Massey, 1994). Em alguns casos até mesmo a combina­ção entre os aspectos tende a se repetir. Em geral, formas de construir, de agir ou de iluminar tendem a se reprodu­zir em diferentes lugares. Os padrões de intervenção se ba­seiam em experiências com­partilhadas que têm origem no passado da vida noturna: nas soluções urbanísticas, nas práticas sociais consolidadas e na base morfológica pre­gressa. O aprendizado social dessas estruturas socioespa­ciais é empregado no presente e prevê a sua continuidade no futuro, reproduzindo aspectos que tiveram algum sucesso no desenvolvimento de vida so­cial noturna. Este talvez seja o aspecto estrutural da vida noturna.

19O aprendizado dessas prá­ticas e dessas formas de com­por não se dá, no entanto, como mera reprodução, mas possui um caráter criativo e um espírito renovador, já que a novidade é bastante apre­ciada para a vida noturna. Por isso, o passado é reorganizado a partir de novas premissas: a boemia retorna sob uma nova função social, os belvederes mudam de lugar, as práticas de lazer se reorientam, as pes­soas jogam o jogo social de outra forma. Maneiras de ser e de viver a vida noturna tam­bém passam a ser importadas de outros lugares, e os lugares de referência mudam: Paris, Nova York, Ibiza etc. A pai­sagem noturna é o resultado provisório dessas experiên­cias compartilhadas por estes grupos e os padrões nos aju­dam a organizar a observação dentro desta variada gama de situações. Dessa forma, po­demos dizer que há também agenciamento, ou melhor, que a vida noturna possui também como característica o envolvi­mento de agentes nas práticas que ocorrem nos espaços pú­blicos.

20Voltamos o nosso olhar sobre as práticas, mas agora o fazemos a partir das consi­derações levantadas acima, ou seja, buscamos padrões estruturados pelas formas dos espaços públicos, seus ritmos e usos, vendo-as como ações deliberadas e intencionais que visam objetivos. Des­sa forma, nem nos deixamos encantar pelas peculiaridades dos casos, nem enveredamos pela busca obsessiva de re­gras gerais do comportamento nos espaços públicos. Esta­belecemos aqui somente uma interpretação possível de um conjunto de situações que se apresentaram ao nosso olhar geográfico.

Uma observação so­bre espaços públicos noturnos

21Há pelo menos duas for­mas de tentar compreender como e porque um lugar se ativa durante o período no­turno. A primeira delas de­corre de um olhar diacrônico, que busca ver em um período mais longo de tempo a evolu­ção deste lugar até se tornar um espaço público noturno; a segunda forma lida com situ­ações hodiernas, ou seja, ob­serva como cotidianamente estes espaços são ocupados e têm os seus ritmos alterados por esta ocupação. A intenção deste breve artigo é abordar a primeira forma para que ela forneça dados importantes para a interpretação da segun­da. Por isso não se busca uma gênese dos espaços públicos, mas alguns elementos de sua história que podem ajudar a compreender as diferentes formas de ativação de espaços da cidade durante a noite.

22Iniciamos por uma obser­vação de mais longo prazo, abordando a constituição do espaço público como um pro­cesso de criação social de um lugar concreto para a reali­zação de práticas ligadas ao noturno. Para isso olharemos para o caso do atual bairro da Lapa, na área central da cida­de do Rio de Janeiro. A Lapa é associada como o mais im­portante centro da vida notur­na carioca (Guterman, 2012). Essa tradicional associação decorre de seu passado, es­pecialmente ao longo das décadas de 1920 e 30, quan­do esteve vinculada ao lazer noturno boêmio, concentrado em seus opiários, bares, cafés e cabarés. No interior de uma sociedade conservadora, o bairro se manteve até meados da década de 1940 como um local onde práticas considera­das transgressoras poderiam se manifestar (Costa, 1993). É interessante notar, no en­tanto, que boa parte destas práticas ocorriam em espaços privados, raramente se expon­do ao olhar dos agentes da or­dem pública.

23O bairro passou posterior­mente por uma fase de estag­nação decorrente de medidas estatais que procuraram tor­nar a área em um corredor viário de ligação entre a zona central e a zona sul da cidade após a década de 1940 (Abreu, 2006). A Lapa precisou passar por um processo de revalori­zação do seu espaço construí­do e de reorganização de suas práticas sociais para voltar a interessar a um público (Irias, 2007). Algo que só voltou a ser discutido no fim da década de 1970, com iniciativas pú­blicas que tentaram garantir o retorno da « vida divertida » ao centro do Rio. Este processo começa no debate social aber­to pelo projeto Corredor Cul­tural, voltado para a revitali­zação apoiada na preservação patrimonial e na promoção de uma economia diurna liga­da à cultura e ao comércio e uma economia noturna ligada ao lazer e ao entretenimento (Rio Arte, 1985; Pinheiro e Del Rio, 1993; Lima, 2007). É importante apresentar este caso para reafirmar o que já foi dito anteriormente: os es­paços públicos se ativam a partir das práticas sociais, as quais, por sua vez, necessitam de um espaço concreto para se manifestarem.

24A demanda pública por essa área da cidade ensejou uma ação administrativa e teve desdobramentos nas ações de certos grupos. Os anos 1990 são caracterizados como a fase de criação das primeiras casas de show, eventos notur­nos e aglomerações em espa­ços públicos. A fase seguinte pode ser considerada como sendo a do auge do espaço público noturno, quando ele passa a ser reconhecido como um centro da vida noturna da cidade, uma referência para quem quer se divertir à noi­te. Isto implica em maiores aglomerações, recorrentes conflitos e significativos im­pactos no bairro, com novas regulações e debates políticos sobre o lugar. As recorrentes alterações no espaço físico, nas regulações dos compor­tamentos e na orientação aos comerciantes revelam o pro­cesso conflituoso que carac­teriza a composição desse cenário (Rosa, 2014). Não por acaso, tais elementos nos ajudam a compreender a cen­tralidade desse espaço na vida pública noturna da cidade, ou seja, não só a Lapa se torna um lugar valorizado e visita­do, como também se trans­forma em uma área de grande visibilidade pública.

25No auge, na era de ouro do espaço público noturno, o lugar passa de uma área as­sociada a um grupo específi­co para se tornar o centro de interesse de uma sociedade (ver Souza, 2014). Ali se dão os encontros de diferentes tra­jetórias e as combinações de interesses diversos sobre uma mesma área. Este processo reorganiza a polarização ur­bana, deslocando as centra­lidades diurnas e ocupando novos centros. Muitos desses centros estão localizados em bairros residenciais, o que dá visibilidade a inúmeros con­flitos, especialmente aqueles ligados aos problemas da cir­culação, do barulho e da se­gurança. A atuação do Estado nesse processo se dá por meio das regulações de uso do es­paço público e em meio às demandas, reclamações e dis­putas entre os agentes sociais. A falta de um consenso acar­reta em ações que impactam diretamente a organização do espaço físico e das práticas sociais.

26Todas as reclamações que apareceram no debate in­cluíam desde moradores e visitantes até políticos, co­merciantes, empresários e agentes públicos. Isto revela que a centralidade ou a publi­cidade de um lugar afeta di­retamente o interesse público não somente para o uso, mas para o debate sobre a cidade, seus cidadãos e seus compor­tamentos e seus espaços cons­truídos. No caso aqui estuda­do são as práticas noturnas desta sociedade que estão no centro do interesse. Práticas que são consolidadas ao lon­go do tempo, a partir do uso recorrente do espaço público.

27É bem comum que nos tra­balhos que estudam a vida noturna se dê maior atenção aos lugares em que se con­centram os indivíduos do que às suas trajetórias. Em geral, sabemos as características das atividades e as formas de relação, mas não entendemos como os indivíduos lá chega­ram e como se deslocam nes­ses lugares. Aqui queremos demonstrar a partir do espaço público formado nos arredo­res dos Arcos da Lapa algu­mas dessas concentrações e trajetórias comuns nos finais de semana. Padrões observa­dos em outras áreas da pes­quisa serão, por hora, igno­rados, ainda que possam ser encontrados em Góis (2015). Os circuitos aqui apresenta­dos derivam das observações realizadas por Corrêa (1996) para a escala das redes urba­nas.

28Começaremos pelo padrão multivariado de circuitos no­turnos da Lapa. Neste caso, trata-se de um padrão que tem um caráter mais complexo, apreendido como sendo múl­tiplo, revelando que não há uma lógica geométrica na dis­tribuição dos pontos. Neste caso, a organização dos pon­tos no espaço não respeita a orientação de uma única via ou a concentração em torno de um quarteirão ou esquina. Trata-se, na verdade, de um padrão orientado pela densi­dade de atividades, expressão da centralidade do lugar e da facilidade de sua dispersão na área. Em quase toda a exten­são do bairro há atividades atrativas aos usuários (figura 3). Ainda que concentre boa parte das trajetórias ao lon­go da Avenida Mem de Sá, sua principal via, a área da Lapa se estende até quase a Praça Tiradentes e até o Pas­seio Público. Em meio a esta multiplicidade de trajetórias, é comum que os circuitos não obedeçam apenas às prefe­rências dos usuários, os quais podem escolher trajetórias di­ferentes, em busca de novida­des. A área da Lapa é, aliás, reconhecida por esta carac­terística de ser um lugar que permite diversas estratégias de apresentação ao público.

29Ao observarmos o croqui do bairro da Lapa notamos que as atividades ligadas ao noturno têm uma forte pre­dominância, ocupando quase todos os lotes. Há grandes es­tacionamentos (em tom ocre), múltiplos bares e restauran­tes (em vermelho escuro) e ainda boates e casas de show (em lilás). As trajetórias são múltiplas, seguindo o traça­do das ruas, mas recortando os estabelecimentos de varia­das formas. O caso da Lapa é exemplar de uma caracterís­tica da vida noturna carioca: o interesse dos agentes pelo percurso, pelo desfile e pela exploração do espaço. É mui­to comum que a escolha do percurso envolva paradas em lugares de concentração que servem como elementos para a decisão sobre que caminho seguir.

30A título de demonstração da imprevisibilidade das traje­tórias relatamos um aconteci­mento. Ao seguirmos (com au­torização) um grupo de jovens rapazes (com cerca de 25 anos de idade em média) pelas ruas da Lapa, notamos que se for­mava um padrão de percurso. Ao nos encontrarmos na Praça dos Arcos, seguimos em dire­ção à rua Joaquim Silva, onde paramos para comprar cerveja em um ambulante e ouvir o que ocorria em uma roda de rap; seguimos então em direção a um samba em um bar na esqui­na com a travessa do Mosquei­ra, voltamos a comprar cerve­jas em um depósito e seguimos em direção à portaria do Circo Voador, onde esperamos para entrar em um show. O per­curso teve nas paradas certo elemento de improviso, decor­rente das necessidades geradas pelo grupo, da atratividade dos acontecimentos que se dispu­nham no momento e das de­mandas de tempo que o grupo tinha que negociar antes de en­trar no show. Poderíamos ten­tar imaginar outros caminhos caso eles tivessem mais tempo ou escolhessem outra rota, se houvesse uma oferta diferente de atrações etc. Naquele mo­mento, segundo aquela oferta de lugares e os interesses do grupo, aquela trajetória fez todo o sentido para a atividade do « esquenta », de preparação enquanto esperavam o início do show.

31O caminho que fizemos também recobriu questões im­portantes: as condições impos­tas pelo espaço físico e pelo mobiliário urbano, a identifi­cação com as atividades e os públicos presentes, o consumo de bebidas baratas e comidas rápidas, a relação simbólica entre lugares e práticas. Tudo isso nos ajuda a ver a relação entre as escolhas dos grupos, as repetições de trajetórias, a estruturação de suas práticas e o reconhecimento de objetos do passado como elementos simbólicos que identificam e valorizam certas práticas.

32Estes padrões de trajetórias e de concentrações são consti­tuídos pela materialidade que os delimitam e que sugere per­cursos, mas também são parte das práticas ligadas ao noturno que reforçam as suas marcas sobre o espaço. Observamos que alguns desses padrões de­moraram a se constituir, não sendo absolutamente dados pela morfologia, mas reorga­nizados a partir dela. O caso específico ilustra, de fato, uma atitude recorrente, na qual o ato de circular é uma forma de estar presente no espaço, de se apresentar e de ser apresentado a um público. Três situações podem ajudar a elucidar o que foi exposto.

33Em primeiro lugar, nas es­tâncias onde se concentravam públicos notamos a existência de diferentes camadas de vi­sibilidade estabelecidas pela posição relativa dos partici­pantes. Algumas estratégias de localização ou de posiciona­mento se apresentam como re­lações entre alturas diferentes porque privilegiam um sentido quase universal de que o ponto de vista modifica a forma pela qual se estabelecem relações de importância (Gomes, 2012). O exemplo das sacadas e va­randas do casario preservado e transformado em centros de lazer e cultura no centro da ci­dade do Rio ilustra em boa me­dida esta situação. Neste caso, a posição privilegiada é aces­sível apenas aos clientes das casas de show e centros cultu­rais, pois, ainda que ofereçam espetáculos em suas áreas in­ternas, esses lugares permitem, com a abertura e o livre acesso às suas sacadas, que outro tipo de espetáculo seja observa­do: o espetáculo público que ocorre na rua, níveis abaixo. Quando apreciam este espetá­culo, aquelas pessoas também se tornam parte de uma cena a ser observada, e dentro des­te jogo social criam formas de interação. Para quem está aci­ma se oferece um panorama ou um contexto de sua inserção na cena; para quem está abaixo se apresenta uma possibilidade de entender parte daquilo que se oferece quando se muda de nível.

34Em segundo lugar, a posi­ção no espaço público durante a noite não pode ser orientada somente dentro de uma lógica do tipo insider-outsider. Ain­da que ela exista, ela não se faz presente de modo impera­tivo. Assim, os percursos e as concentrações existem porque há certa margem de manobra para o posicionamento no es­paço, na interface entre públi­co e privado. Estar dentro ou estar fora significa, nesse caso, negociar o seu papel e as con­cessões que são criadas: serei servido ou poderei me servir? Em que medida tenho o direi­to de me sentar? Posso usar os bancos para descansar ou devo consumir algo para isso? Posso me proteger da chuva embaixo da cobertura improvisada? A área demarcada pelo uso muda a lógica do mobiliário urbano, dos comportamentos, dos usos e das regras e isto não está nor­malmente sinalizado e, mesmo quando está indicado, isto pode não ser uma imposição, pois pode ser negociado. Em boa medida, essa forma de intera­ção entre um dentro e um fora flexível dá vida aos circuitos e trajetórias da vida noturna, concentrando-os em um local no qual se pode buscar, mesmo estando fisicamente fora, uma entrada ou uma janela para o olhar.

35Em terceiro lugar, os pontos de encontro da vida noturna criam barreiras físicas, mas, mais do que isso, podem criar fronteiras identitárias, limiares de identificação que podem ser observados e devassados exa­tamente porque se encontram em espaços públicos. Lugares demasiadamente identifica­dos a um grupo podem repelir a entrada de outros públicos, seja pelas marcas simbólicas deixadas no espaço, seja pelos comportamentos de seus usuá­rios. A vida noturna nos espa­ços públicos adquire, portanto, um caráter mais « aberto », que respeita a diversidade de for­mas de apresentação pública e que, por isso, tende a con­centrar um maior número de pessoas. Em virtude disso, nos espaços públicos admite-se um meio-termo entre elementos de forte identificação e elementos de relativa generalidade. Neste sentido, estar em algum lugar representa uma forma diferen­ciada de participação em uma organização social. Essas po­sições falam dos agentes, mas também falam dos lugares, in­dicam os códigos que são par­tilhados e sugerem potenciais formas de interação.

36As observações das áreas e dos lugares de vida noturna nos levaram a buscar padrões da organização no espaço das práticas em sua relação com a morfologia. Essas duas dimen­sões incorporaram diferentes níveis de observação, sendo a última dedicada aos cenários da vida noturna, onde encontra­mos muitas situações na qual a negociação da posição acaba­va por sugerir limites físicos, comportamentais e de exposi­ção. Ao estudarmos os limites notamos que o « meio-termo » era o lugar preferencial para as práticas dos participantes em ajuntamentos sociais e que « circular » ou « perambular » era uma prática fundamental para a existência da vida noturna. É no intervalo entre as concen­trações, no meio do caminho, que muitas coisas acontecem. Há consumo, mas há também conversas, paqueras, aprecia­ções da música, cumprimen­tos, degustações etc. A densi­dade permite isso e amplia as possibilidades de uma noite no caminho, entre dois luga­res. Em outro momento (Góis, 2015) avaliamos que havia no carioca uma preferência pelo « meio-termo », pelo « lusco­-fusco ». Agora podemos seguir adiante e afirmar que os espa­ços públicos são o interlúdio da sociabilidade noturna, ou seja, eles dão unidade e visibilidade aos ajuntamentos sociais.

Considerações finais

37Como um ponto final de discussão seria importante fa­lar sobre o debate acerca dos limites e potencialidades dos espaços públicos. Quer seja resolvido no lugar, quer seja incorporado em outros am­bientes políticos, ele é uma necessária ferramenta de for­talecimento da democracia. Ao mesmo tempo, esta demo­cracia ocupa um lugar físico para o seu acontecimento. O debate sobre o que pode e o que não pode durante o pe­ríodo noturno remete dire­tamente ao caráter público dos espaços de realização da sociabilidade, da interação e da diversão. Quando a dimen­são pública do espaço se per­de, seja pela incapacidade de aceitação da presença do ou­tro, seja pela dificuldade em se respeitar as regras ou ne­gociar conflitos, a democracia perde o fôlego, as praças emu­decem e as práticas desapare­cem. Neste sentido, o espaço público noturno é ainda mais frágil, especialmente quan­do se trata da violência ou da tentativa de se resolver por outros meios os conflitos so­ciais. Segundo dados do Insti­tuto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro para o ano de 2016, metade dos crimes violentos da cidade do Rio de Janeiro ocorreram du­rante a noite ou a madrugada. Isto é ainda mais grave quan­do pensamos que o fluxo de pessoas durante este período é quase cinco vezes menor do que durante o dia. É nessas condições que os espaços pú­blicos entram em decadência e mantêm somente o seu esta­tuto administrativo, esvazia­dos de sua dimensão social. A insegurança é um fator que limita a presença, a circula­ção e a interação. Variáveis fundamentais para se compre­ender os espaços públicos no­turnos, variáveis sem as quais não se pode pensar em espa­ços públicos noturnos.