Introdução

1O Seminário Internacional « Espaço Público, Espaço Polí­tico », realizado nos dias 06 e 07 de junho de 2017 na Universi­dade Federal do Rio de Janeiro, teve como objetivo revelar as relações entre os dois conceitos que batizaram o evento. Apesar de muitas vezes convergentes, a proposta geral desse artigo é defender que não podem ser tratados como sinônimos, pois, caso contrário, estaríamos tra­tando fenômenos distintos sob o mesmo esforço conceitual. Se Deleuze e Guattari (1992, p.25) estão corretos, « todo con­ceito remete a um problema, a problemas sem as quais não te­ria sentido » e, por conseguinte, transforma-se em utensílio para suas soluções. Espaço Público e Espaço Político se relacionam, mas lidam com problemas que podem ser diferentes.

2A noção de espaço político é fundamental para compreen­der o funcionamento de regi­mes democráticos. Entretanto, mesmo sendo a democracia uma palavra que está na boca de todos, discursos de muitos e na vida de cada vez mais pes­soas pelo mundo, essa forma de governo não é, nem de longe, de fácil definição. Ideologias políticas discutem e transfor­mam os significados do termo, muitas vezes o condenando a uma quimera teórica de difí­cil compreensão. De qualquer modo, esse artigo defende que em qualquer projeto (« pro-je­tar », em sentido sartriano, sig­nifica o mundo futuro a alcan­çar, que se unifica num mundo desejável, porém ainda inexis­tente) no qual a democracia é pensada como solução, atores sociais trazem a necessidade de construção e aprimoramento de espaços políticos, mesmo sem usar esse conceito.

3Nesse sentido, este artigo está estruturado em três se­ções, além dessa introdução e das considerações finais: na primeira, o conceito de espaço político será apresentado, deba­tendo, principalmente, de que modo um espaço público se transforma em espaço político e quais são suas principais ca­racterísticas estruturantes. Essa discussão nos levará a definir o espaço político como sendo aquele que se constrói e funcio­na como intermediação entre a sociedade e o Estado, lugar de atos políticos, encaixando-se nos princípios que regem uma sociedade democrática.

4No segundo momento, o ob­jetivo será trazer o modelo de democracia que foi denominado como democracia participativa. A ideia é demonstrar como esse modelo contemporâneo de de­mocracia necessita de espaços políticos para sua efetivação, isto é, a teoria se constrói na prática por meio de um conjun­to de instituições que precisam ser verdadeiros espaços políti­cos. A tese defendida é que ao passo que a existência de espa­ços políticos bem difundidos e qualificados beneficiariam a de­mocracia, o contrário, a sua au­sência, fortaleceria relações au­toritárias de poder, favorecendo a ascensão e a manutenção de regimes ditatoriais. Controlá­-los, restringi-los e destruí-los seriam metodologias eficazes para o desmantelamento de uma sociedade democrática.

5Em último momento, um su­posto espaço político produzi­do pelo modelo da democracia participativa será analisado: os Conselhos Municipais (CMs). Tendo o foco nos Conselhos Tutelares, a pesquisa qualitati­va e quantitativa realizada entre os anos de 2014-2016 nos CMs do município do Rio de Janeiro será exposta e, com o auxílio da discussão teórica anterior, apontaremos como essas novas instituições não se configuram como espaços políticos, não favorecem o modelo proposto e, consequentemente, não se constituem e não promovem práticas democráticas.

Espaço Político: Ele­mentos Estruturais

6Como já indicado anterior­mente, o espaço político aqui é definido como o espaço mate­rialmente construído que serve como intermediação e condi­ciona as relações entre Estado e sociedade. Nele, atos políti­cos tomam corpo, ganham visi­bilidade e podem influenciar a agenda política do poder insti­tuído. Essa relação, entretanto, está baseada nas regras de um sistema democrático, limitando a ação individual à noção de li­berdade democrática.

7A definição acima proposta nos leva a um emaranhado te­órico importante de ser desata­do. Pode parecer, por exemplo, anacrônico afirmar a importân­cia da materialidade dos espa­ços políticos em uma época que o mundo virtual ganhou tanta importância. A internet é vista por muitos autores como um grande modo de revolucionar a democracia e seu funcionamen­to. Sem dúvida, concorda-se que o mundo virtual introdu­ziu novos elementos à prática política, como ficou bastante claro nas manifestações de ju­nho pelo Brasil em 2013 (FER­NANDES e ROSENO, 2013; CASTELLS, 2013; SAKAMO­TO, 2013). Entretanto, segui­mos aqui Parkinson (2012) ao afirmar que enquanto dermos atenção ao meio de comunica­ção, negligenciaremos o que está sendo comunicado. As re­voluções são televisionadas, mas as imagens e narrativas são de um espaço físico e não de um ciberespaço. Assim, para justificar sua pesquisa, o autor já defende na primeira página de seu livro:

• 1 «Things that are communicat­ed involve real people who take up, occupy, share, and contest physical (...)

Coisas que são transmitidas envolvem pessoas reais que acordam, ocupam, di­videm e contestam no espaço físico. Ge­ralmente, aqueles que negam a importân­cia do espaço físico confunde o meio e a mensagem: ao se focar nos meios de co­municação, eles negligenciam o que está sendo transmitido. Enquanto as revolu­ções quase sempre são televisionadas, o que a TV, Youtube, Twitter, e outros são fotos e narrativas de eventos físicos, não apenas fluxos de digitações. (PARKIN­SON, 2012, p.1)1.

9O espaço político permite experimentar uma pessoa com os sentidos nus (GOFFMAN, 2010), isto é, as interações face a face transmitem mensagens incorporadas para receptores que são também emissores e emissores que também são re­ceptores. A internet, o mundo virtual, não se baseia na inte­ração face a face. Defende-se aqui a ideia de que o contato face a face é uma das gran­des características do espaço político e fundamental para a performance democrática. Ao longo das passeatas de junho de 2013 no Brasil, cartazes le­vantados com a frase « saímos do Facebook » mostravam que a geração mais jovem teria saído da zona de conforto do mundo virtual e teria ido para a zona de risco do espaço político.

11Ao seguir uma certa linha teórica-conceitual, não estamos aqui apagando a importância dos espaços de subversão para a fundação de uma sociedade democrática. Durante momen­tos de ditaduras militares e ci­vis, os espaços políticos são suspensos pela força autoritária de um regime e, em seu lugar, podem entrar em cena os espa­ços de subversão, que são espa­ços para a política e não espa­ços políticos tout court, como definimos aqui.

12Essa estratégia analítica baseia-se na construção teó­rica-conceitual realizada até então. Ao definirmos espaço político como interseção entre Estado democrático e socieda­de, exclui-se, por conseguinte, os espaços de subversão, que são, por sua própria natureza, construídos contrários à forma de Estado e ao sistema políti­co existentes no momento. Os espaços políticos, apesar de se­rem ambientes de contestação, não objetivam a destruição da forma democrática do Estado: eles servem, ao contrário, para a sua preservação e fortaleci­mento (CASTRO, 2012).

13Essas características tornam o espaço político um agente de interseção do e com o Estado democrático, tornando-o, de certo modo, mais ou menos in­tensamente um espaço institu­cional. Como o objetivo de sua existência é a ação, ele é o es­paço onde a sociedade tem con­tato direto com as instituições de poder, podendo influenciá-lo por meio da simples pressão da copresença ou mesmo pela pos­sibilidade de atuar ativamente. Por conseguinte, a relação exis­tente entre o espaço político e o Estado se constrói em dois sen­tidos: primeiro, na relação pas­siva do primeiro em relação ao segundo, pois é regulamentado e limitado pelas regras de con­vívio social dentro de uma no­ção de liberdade democrática; e, segundo, em seu papel ativo como zona de contato entre a sociedade e as forças do poder instituído, construindo possibi­lidades de influir diretamente na agenda política. Por essas razões, os espaços políticos não existem a priori, isto é, um edifício não é automaticamente um espaço político sem o pres­suposto da intencionalidade.

15É a intencionalidade para to­car a agenda política que difere um espaço público de um espa­ço político. É possível dizer que todo espaço político é um espa­ço público; mas o contrário não é verdade. Parkinson (2012) apresenta quatro definições de público que são normalmen­te utilizadas: 1. É abertamente acessível; 2. Utiliza recursos comuns; 3. Os seus efeitos são para todos; 4. É utilizado para performances de funções políti­cas. Ao abandonar a concepção de espaço público em oposição ao que é de propriedade de uma pessoa, o autor afirma que a de­mocracia necessita do sentido 4 e, às vezes, no sentido 1, além de ter como objetivo os senti­dos 2 e 3.

16Desse modo, nem sempre o espaço político possui irrestrito acesso. Essa ideia de público está ligada mais aos espaços identificados como ruas, pra­ças, parques aleatórios. Todos esses seriam espaços públicos no sentido 1. O público no sen­tido 2 e 3 são aqueles espaços que preocupam, afetam ou são em benefício a todos da socie­dade. Destacam-se os espaços públicos ligados às arenas es­portivas, casas de show, praias, passeios públicos, parques flo­restais. Há ainda os hospitais, bibliotecas, escolas e banheiros públicos e elementos ligados à infraestrutura, como ciclovias, bicicletários e transportes pú­blicos.

18O espaço político, desse modo, é o espaço público no sentido 4 e que objetiva tam­bém ser o 3, isto é, produtor de efeitos para toda a sociedade que abrange. Mas, não é sem­pre o sentido 1. Há, por exem­plo, regras de vestuário em certos espaços políticos, como Câmara de Vereadores e a ne­cessidade de portar documenta­ção em Conselhos Municipais. Em contrapartida, essas restri­ções devem ocorrer de modo isonômico entre os diferentes grupos da sociedade, isto é, es­sas regras não podem funcionar de um modo para um grupo (ra­cial, de classe, gênero, posição ideológica...) e não para outro.

19As imagens abaixo se refe­rem ao mesmo espaço geográ­fico, mas com usos diferentes. Na figura 1, é possível ver a Praia de Copacabana em um dia de sol. Ali os diferentes se veem, se aturam, se sentem. A importância desse espaço pú­blico para o viver democrático é claro e evidente. Por isso, não se descarta aqui a importância do espaço público para a demo­cracia. É nele que os conflitos sociais cotidianos aparecem e, muitas vezes, ganham forma no e pelo espaço (GOMES, 2012).

20Por outro lado, há uma total reconfiguração da relação entre as pessoas e o espaço na figura 2, em uma manifestação contra o deputado Marcos Feliciano (PSC-SP) (naquele momen­to presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câma­ra). Diferentemente da primei­ra imagem na qual podemos ver pessoas mais dispersas, na segunda, há um aglomerado de manifestantes caminhan­do unidos na mesma direção, chamando a atenção, prova­velmente, das pessoas na praia, nos prédios da orla e de outros transeuntes. O grande painel feito de pedras portuguesas é agora parcialmente coberto pelo grupo com bandeiras, fai­xas e gritos de ordem. Esses indivíduos, agora em grupo, agem coletivamente com a in­tenção clara de atingir a agenda política do Estado. Se, como afirma Hannah Arendt, a condi­ção da ação é a pluralidade hu­mana (ARENDT, 2009b), logo, a ação está fundada na convi­vência entre os homens. A ação não termina em si mesmo; ela é iniciativa, isto é, tem objetivo previsível, mas desdobramen­tos imprevisíveis. É a partir de uma ação – « agir significa to­mar iniciativa, iniciar, começar, ser o primeiro » (op. cit., p.191) – com intenção de influenciar a agenda política do Estado que o espaço público torna-se espaço político.

21Entretanto, apesar de pare­cer um bloco homogêneo, já foi demonstrado em pesquisas so­bre outras manifestações (MA­CHADO FILHO, 2017) que há diferença considerável entre os participantes, destacando, in­clusive, as posições espaciais que esses indivíduos ocupam no protesto (à frente, nas late­rais, no interior e atrás).

22Na mesma imagem ainda é possível ver o carro de polícia que acompanha a manifestação. Como um reflexo claro da no­ção de liberdade democrática, a viatura tem como objetivo asse­gurar o direito à livre manifes­tação, mas, ao mesmo tempo, garantir que esse movimento não restrinja o direito do dife­rente de usar o espaço, como podemos perceber na foto com um rapaz caminhando na dire­ção contrária.

23A transformação desse es­paço público em espaço polí­tico não é fortuita. A escolha da Praia de Copacabana para a manifestação respeita as condi­ções materiais de publicidade e acessibilidade que tal espaço fornece, além da força simbó­lica historicamente construída pela praia mais famosa do país. Isso se reflete no carro da rede Globo que está à frente da pa­trulha policial: todo esse mo­vimento político estava sendo acompanhado de perto pelo maior meio de comunicação do país. Se a intenção era incluir uma pauta na agenda política, a escolha do espaço para a mani­festação não pode ser feita ale­atoriamente, isto é, estratégias espaciais são necessárias para que a ação intencionada atinja seus objetivos. O espaço políti­co aqui apresentado é, portan­to, ao mesmo tempo, material, imaterial e intencional (CAS­TRO, 2012).

24As imagens revelam o mo­mento no qual um espaço pú­blico é acionado, transformado e usado como espaço político. É essa configuração espacial que nos interessa aqui.

Democracia partici­pativa e espaço políti­co

25Como afirma Pieterse (2001, p.1), desde o trabalho de Carole Pateman em 1970, a democra­cia participativa (DP) tornou-se um « slogan genuíno, popular e progressivo da democratização entre os teóricos da democra­cia ». Em Democratization and Research Methods (2012), Mi­chael Coppedge realizou um le­vantamento das diferentes defi­nições que já foram feitas sobre democracia. Segundo ele, a de­mocracia participativa é uma das definições mais usuais den­tro do debate teórico contempo­râneo. Esse crescente interesse pela democracia participativa é concomitante ao aumento das críticas ao sistema representati­vo como um todo.

26Destaca-se a correlação en­tre os movimentos sociais que surgem na década de 1960 e a teoria da democracia partici­pativa que aparece em 1970. É preciso lembrar que a teoria apresentada por Pateman nasce na esteira da crítica contracul­tural dos movimentos sociais da década anterior (LAVAL­LE, 2011; TENÓRIO & KRO­NEMBERGER, 2016), em con­denação à visão de participação limitada ao voto nas eleições. Estabelece-se, a princípio, uma oposição entre representação e participação:

O ideário participativo construído a partir dessa década conjugou diversos signifi­cados. Em primeira instância, a participa­ção era, por definição, popular. O ideário participativo como participação popular não remetia às eleições, nem às institui­ções do governo representativo, e tam­pouco era liberal no sentido de invocar um direito que contempla o livre envolvi­mento dos cidadãos, de toda a população com maioridade independentemente da sua inserção nas classes sociais. (...) o ideário participativo não foi vertebrado por um princípio de restauração demo­crática, mas de emancipação popular. (LAVALLE, 2011, p.34).

28Mecanismos de participação do cidadão, baseando-se em no­vos conceitos como accounta­bility, governança, empodera­mento, sociedade civil e capital social são constantemente trazi­dos à tona pelos mais diferentes autores que defendem a neces­sidade da superação ou comple­mentação da democracia repre­sentativa e a construção de um suposto novo modelo que seria denominado democracia parti­cipativa.

29Ao defender a DP, Tenório (2016, p.20) acredita que « a participação tem uma estrei­ta vinculação ao processo de descentralização, podendo con­tribuir, não só para a democra­tização do poder público, mas também para o fortalecimento de uma cidadania ativa ». Um importante método para atingir esse objetivo seria a recapaci­tação do local, pois é nele que a população poderia sentir a política de fato. Descentraliza­ção, portanto, seria um proces­so sine qua non para alcançar esse objetivo, visto como uma eficiência escalar da gestão pú­blica (ARRETCHE, 1996; PIE­TERSE, 2001; BAIOCHE et al, 2004; GOLDFRANK, 2007).

30No modelo da democracia participativa são sugeridos e de­fendidos novos tipos de espaços políticos que seriam, segundo os autores, fundamentais para promover uma real transforma­ção da democracia representati­va. O grande diferencial desses espaços políticos propostos em relação aos já existentes da DR (como assembleias legislativas, câmaras municipais, etc.) seria, segundo os autores, a incorpo­ração de cidadãos e associações da sociedade civil diretamen­te na deliberação de políticas (AVRITZER, 2008). Por essa razão, o referido autor os deno­minou como instituições parti­cipativas (IP) para diferenciar das instituições políticas tra­dicionalmente discutidas pela ciência política da democracia representativa.

31Assim, a intencionalidade por trás da criação desses espa­ços políticos seria a de trazer a sociedade civil para interferir nos aparelhos de poder do Es­tado pela possibilidade de atu­ar ativamente na construção da agenda política. Por meio deles, os autores acreditam ser possí­vel ressignificar a democracia, utilizando da crise da democra­cia representativa para a cons­trução de um novo modelo de­mocrático.

32O Brasil seria, segundo os defensores da democracia par­ticipativa, um caso importante de análise. Além do voto para escolha de seus representantes, na Constituição de 1988 novos direitos políticos foram incluí­dos direta ou indiretamente na Constituição, a citar: (a) plebis­cito; (b) referendo; (c) inicia­tiva popular; (d) conselhos na­cionais, estaduais e municipais; (e) orçamentos participativos, e outros. Fung & Wright (2003) afirmaram que esses novos ele­mentos de participação podem ser denominados como « empo­deramento de governança par­ticipativa » (Empowered Par­ticipatory Governance), pois aspiram que pessoas comuns possam efetivamente participar e influenciar nas políticas pú­blicas que afetam diretamente suas próprias vidas.

33Os Conselhos seriam, segun­do a literatura, o grande exem­plo de participação que geraria o empoderamento de gover­nança participativa. Os con­selhos são instituições criadas para assessoria e controle de administração pública; são te­máticos, ou seja, i) vinculam-se às políticas sociais específicas como educação, saúde, emprego, infância, etc.; ii) preveem a participação voluntária de representantes de organizações sociais da sociedade civil; iii) são deliberativos, abrangentes e permanentes, em relação às temáticas as quais estão vincu­lados, e iv) incidem sobre todo o circuito de gestão de uma po­lítica pública, desde a formula­ção até a sua implementação. A paridade entre representantes da sociedade civil e do poder público é exigência legal para o funcionamento dos conselhos.

34Os conselhos seriam, te­oricamente, mecanismos de participação da população na formulação, deliberação e fis­calização das políticas públi­cas e se constituiriam, segundo grande parte da literatura, como uma importante inovação ins­titucional da Constituição de 1988 (SANTOS JÚNIOR et al, 2004; GOHN, 2004; VAZ, 2011; TENÓRIO, 2016). San­tos Junior et al (2004, p.205) argumentam que « os conselhos municipais representam uma importante inovação institucio­nal na gestão das políticas so­ciais » e seriam exemplos de ins­tituições de democracia direta. Seriam, então, novas formas de interação entre governo e socie­dade, capazes de construir uma gestão mais democrática (SAN­TOS JÚNIOR et al, 2004). Por fim, os autores afirmam enten­der que « os conselhos munici­pais são a maior expressão da instituição, pelo menos em pla­no legal, do modelo de gover­nança democrática no âmbito local » (op. cit, p.21).

35A partir de dois anos de pesquisa nos Conselhos Mu­nicipais do Rio de Janeiro, a pergunta que se busca respon­der na próxima e última seção é: essas novas instituições se constituem como verdadeiros espaços políticos? Em outras palavras, os Conselhos Munici­pais aprofundam e qualificam a democracia no Rio de Janeiro?

Conselhos Municipais do Rio de Janeiro: o caso dos Conselhos Tutelares

36Sete conselhos cariocas fo­ram selecionados para a pes­quisa mais ampla: o Conselho dos Direitos da Criança e Ado­lescente (CMDCA), o Conse­lho Tutelar (CT), o Conselho de Educação (CME), o Con­selho de Assistência Social (CAS), o Conselho de Saúde (CS), o Conselho dos Direitos dos Negros (Comdedine) e o Conselho Antidrogas (Comad). Pesquisas qualitativas foram realizadas entre os anos de 2015-2016.

37Devido à limitação natural de um artigo e o objetivo cen­tral aqui traçado, focaremos no caso específico do Conselho Tutelar, por ser o único no qual os representantes são eleitos diretamente pela população do município. Apesar de o méto­do eleitoral-representativo ser questionado pela teoria da de­mocracia participativa, esse é o único Conselho no qual al­guma participação cidadã foi possível ser visualizada. Todos os outros possuem metodolo­gias particulares endógenas na escolha de seus líderes: elei­ção promovida exclusivamente entre instituições interessadas diretamente no tema, como ONGs (CDMCA, CAS, Co­medine e CMAD) e represen­tantes oriundos de instituições tradicionais, como os sindica­tos (CMS e CME). Em outras palavras, a única participação cidadã direta nessas novas ins­tituições continua sendo via eleições no Conselho Tutelar, apesar de sérios problemas que serão expostos a seguir. Essa pesquisa, portanto, questiona veementemente a afirmação de Avritzer (2008) que os Conse­lhos Municipais são institui­ções democratizantes no con­texto das novas « instituições participativas » criadas.

38Segundo o site oficial do Conselho Municipal dos Direi­tos das Crianças e dos Adoles­centes do Rio de Janeiro:

• 7 http://www.cmdcario.com. br/index.php?op=page&id=13. Acessado dia 10 de janeiro de 2016.

O conselho tutelar foi criado conjunta­mente ao ECA, instituído pela Lei 8.069 no dia 13 de julho de 1990. Órgão muni­cipal responsável por zelar pelos direitos da criança e do adolescente, deve ser es­tabelecido por lei municipal que determi­ne seu funcionamento tendo em vista os artigos 131 a 140 do ECA. Formado por membros eleitos pela comunidade para mandato de três anos, o Conselho Tutelar é um órgão permanente (uma vez criado não pode ser extinto), possui autonomia funcional, ou seja, não é subordinado a qualquer outro órgão estatal. A quanti­dade de conselhos varia de acordo com a necessidade de cada município, mas é obrigatória a existência de, pelo menos, um Conselho Tutelar por cidade, consti­tuído por cinco membros. Segundo cons­ta no artigo 136 do ECA, são atribuições do Conselho Tutelar e, consequentemen­te, do conselheiro tutelar, atender não só as crianças e adolescentes, como também atender e aconselhar pais ou responsá­veis. O Conselho Tutelar deve ser acio­nado sempre que se perceba abuso ou situações de risco contra a criança ou o adolescente, como por exemplo, em ca­sos de violência física ou emocional7.

40Mesmo estando inserido no Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CMDCA), ele tem, como já dito, funções es­pecíficas e traçadas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Além disso, o Conselho Tute­lar é dividido territorialmente no município, como é possível ver no mapa a seguir.

41Diferentemente das elei­ções ordinárias para os cargos do Executivo e Legislativo nas escalas municipais, estaduais e federais, o voto para o CT não é obrigatório. Basta apresentar o título de eleitor, comparecer no dia de votação no colégio eleitoral e votar para o conse­lheiro no bairro onde está re­gistrado seu título de eleitor (muitas vezes não é o mesmo onde o eleitor mora). O quadro e o mapa abaixo revelam o bai­xíssimo grau de participação eleitoral na votação de 2012: candidatos foram eleitos com 153 votos em áreas com mais de 658.000 pessoas votantes. Em nenhum Conselho Tutelar hou­ve mais do que 1,86% de elei­tores possíveis. Destaca-se que são eleitos cinco conselheiros por ordem dos mais votados. No quadro abaixo, é possível ver a menor quantidade de votos que um conselheiro eleito recebeu e o montante recebido pelo mais votado, além do total de candi­datos que disputou o pleito:

42Apesar de a fraca presença dos cidadãos no processo eleito­ral em 2012 ser reconhecida pe­los conselheiros, havia, nos me­ses antecedentes às eleições de 2015 (para o mandato que se ini­ciaria em 2016), uma expectati­va de maior presença de votantes no novo pleito. A partir de 2016, no Rio de Janeiro, foram criados dezesseis novos CTs (e mais dois a serem inaugurados em breve), reconstruindo sua geografia po­lítica, cujos cinco conselheiros são eleitos diretamente por toda a população que possui registro eleitoral na área de abrangência do respectivo Conselho Tutelar.

43No dia da votação, 04 de ou­tubro de 2015, o clima era de ten­são, pois, pela primeira vez, ha­via sido definido um salário para os cinco conselheiros vencedores (R$3.500/cada) e uma nova redi­visão das zonas eleitorais estava sendo testada pela primeira vez, contando com mais seis. Até esse momento, os conselheiros rece­biam uma « ajuda de custo » (em torno de R$1.000/cada) e havia apenas dez CTs. Com a mudan­ça no mapa dos CTs e o aumento salarial, houve um crescimento expressivo no número de candi­datos.

44Em entrevista na favela Dona Marta na casa do então candida­to Woney para o cargo de con­selheiro do CT02 duas semanas antes da votação, foi relatado que houve mais de 80 inscrições, porém mais da metade teria sido eliminada na prova de seleção e teriam sobrado apenas 37 pesso­as. Uma avaliação de português e conhecimentos sobre os direitos da criança e adolescente foi apli­cada para aqueles que desejavam concorrer ao cargo. Soma-se a isso a exigência mínima de 2o grau completo. Há, portanto, em primeiro momento, um proces­so meritocrático para a seleção dos candidatos representantes no Conselho Tutelar, eliminan­do pessoas que não possuem conhecimentos específicos para essa representação. Isso também é visto no curso de capacitação que é mandatório para todos os conselheiros eleitos.

45A expectativa do Conse­lho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes era, como confirmado em entrevista dois dias antes (02 de outubro de 2015) por três funcionários, ter uma maior participação da população na eleição devido ao grande número de candidatos, a nova divisão territorial dos CTs e a criação de novos conselhos mais próximos do cidadão. En­tretanto, por falta de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, as urnas eletrônicas não foram dis­ponibilizadas para a votação. Por conta disso, o CMDCA resolveu organizar as eleições por meio de notebooks, cujo funcionamento apresentou muitos problemas no dia 04 de outubro de 2015. Além da dificuldade de muitas pesso­as no uso de um aparelho novo, houve problemas técnicos rela­cionados à falta dos dados de al­guns candidatos e à transmissão de dados da votação. O dia de votação foi anulado e o CMDCA teve que organizar outra data.

46Em entrevista ao periódico O Globo, o vereador Eduardo Moura (PSC), presidente da Co­missão dos Direitos da Criança e do Adolescente na Câmara Mu­nicipal, declarou à época:

• 9 http://g1.globo.com/rio-de-ja­neiro/noticia/2015/10/eleicao-pa­ra-conselho-tutelar-do-rio-e-can­cel (...)

Ocorrências que contribuem para macular o já conturbado processo, evidenciando a necessidade de anulação do pleito e mar­cação de uma nova data. Computadores ficaram fora do ar, impedindo a votação em diversas zonas eleitorais. Há locais em que a espera chegou a três horas9.

47Ao apontar que o processo já seria conturbado, o vereador cor­roborou com a opinião do funcio­nário Eddy Bezerra do CMDCA que contou em entrevista proble­mas na eleição e no funciona­mento do Conselho Tutelar. Ele afirmou que a eleição de alguns CTs é marcada, às vezes, até pela força de traficantes de drogas:

Você tinha que ter acompanhado a vo­tação num local dominado [por trafi­cantes]. Eles descem com fuzil na mão com os moradores para eles votarem no candidato que querem. Eles sabem que o Conselho é um canal com o Estado de um jeito ou de outro, além de ter um dinheiro legal. Eles não vão deixar um qualquer ser conselheiro ali. Como poucas pesso­as vão votar, eles acabam conseguindo mobilizar praticamente todo o número necessário para eleição – Eddy Bezerra, 12 de novembro de 2015.

48Apesar de ser conhecida a existência de influência similar nas eleições para o Legislativo municipal (JUWER, 2013), a baixa participação geral de elei­tores gera uma menor necessida­de de votos para a eleição de um conselheiro, diferentemente de um cargo de vereador. Assim, a mobilização de votantes apenas na favela controlada pelos tra­ficantes já seria suficiente para levar uma pessoa para dentro do CT que apoiaria seus desejos.

50Nas entrevistas, era evidente que os candidatos para o CT são conhecidos pessoalmente pelas pessoas que os elegem. Em to­das as entrevistas realizadas com conselheiros eleitos, os aspectos « carisma » e « conhecerem pesso­almente » foram destacados como razões para eles terem sido esco­lhidos. Além disso, como des­tacou Wolney (então candidato para o CT02 no momento da en­trevista) uma candidata que « vi­ria de fora », isto é, que não havia morado toda a vida na área, não teria, segundo ele, legitimidade de se eleger.

51Soma-se a isso, a informa­ção dada pelos funcionários do CMDCA que o Conselho Tute­lar seria um « Conselho de pobre para pobre ». Os eleitos viriam majoritariamente de favelas ou de bairros pobres, assim como a demanda pelas funções exerci­das pelo Conselho. Apesar de ser uma informação relevante, esse é um dado já conhecido dentro de pesquisas sobre os Conselhos Municipais, como podemos ver em Santos Júnior et al, (2004), Vaz (2011) e Tenório & Kronem­berger (2016). Isso foi confirma­do pelos conselheiros candidatos entrevistados (quatro no total, três ao final eleitos). Apesar de afirmarem que também atendiam casos de pessoas de classe alta como denúncias de maus-tratos à criança, a grande parte da de­manda viria mesmo das áreas mais pobres.

52A votação do dia 28 de feve­reiro de 2016 ocorreu com nor­malidade, exceto em três dos dez pontos cobertos: Bairro de Fátima, Catete e Rio Comprido. No primeiro, uma senhora não conseguiu votar porque sua zona eleitoral não era naquele edifício e ninguém soube informar aonde ela deveria ir. Segundo Ruth, 67 anos e moradora do Bairro de Fá­tima, ela já teria ido a dois postos diferentes e não teria conseguido votar. As informações eram dis­persas e divergentes: uns diziam que sua zona eleitoral era no bairro de São Cristóvão e outros teriam falado que era na Zona Portuária.

53Já no bairro do Catete, alguns idosos reclamavam também que não acharam seus nomes nas zo­nas que normalmente votavam. No bairro do Rio Comprido, foi relatada na maioria dos casos entrevistados (em 16 pessoas das 23 pessoas entrevistadas) a mudança de seção e, como con­sequência, muitas pessoas teriam sido impedidas de votar (a zonal 229/218 teria passado para a 006, em outra localidade). De acordo com uma entrevistada, « a moça lá de dentro disse que eu tinha que ter olhado na internet pra ter certeza da minha seção e zona ».

54Ao buscar na página virtual do CMDCA as zonas e as seções eleitorais, abre-se uma planilha do Excel que até mesmo pesso­as mais experientes teriam difi­culdades de compreender. Com mais de 9.833 linhas e quatro colunas (zona anterior; seção an­terior; zona atual; seção atual) a dica dada pelo site é « use o filtro para consultar com maior agili­dade ».

55Esses problemas foram gera­dos porque as zonas de votação para o Conselho Tutelar são dife­rentes daquelas estabelecidas nas eleições tradicionais para os car­gos dos Executivos e Legislati­vos municipal, estadual e federal. Por ter menor aparato adminis­trativo e tudo ser organizado pelo CMDCA, houve a necessidade de aglomerar seções eleitorais em poucas zonas. Assim, pessoas que estavam acostumadas a vo­tar em um local, precisariam ter entrado no site do CMDCA para descobrir sua seção naquele dia de votação.

56A organização da votação se mostrou extremamente frágil. Ao observamos os dez pontos visitados, apenas no Vidigal, Rio Comprido e Estácio havia a pre­sença de carros de Polícia Militar dando suporte ao processo elei­toral. Em todos os outros, nem mesmo a Guarda Municipal se fazia presente.

57Em conversas informais com transeuntes nos bairros, era vi­sível o total desconhecimento sobre o que estava ocorrendo nesses locais. Isso se refletiu na votação em 2016. Apesar do crescimento expressivo no nú­mero de candidatos e também do número total de votantes, a quantidade de votos necessária para a eleição de um conselhei­ro permaneceu quase intacta. Em vários casos, o número mínimo para eleição diminuiu drastica­mente. O que ocorreu foi o au­mento de votantes trazidos pelos novos postulantes ao cargo, e não um aumento generalizado do grau de representatividade.

58Como podemos perceber na tabela, mesmo com uma nova divisão territorial das áreas abrangidas pelo CT, a quan­tidade de votantes continuou extremamente baixa. Em todos os CTs já existentes houve au­mento expressivo do número de candidatos: mínimo de 43% no CT 05 até 372% no CT 09. Isso ocorre ao mesmo tempo em que oito dos dez conselhos antigos passaram a precisar de menos votos para eleger seus representantes (salvo o CT03 e o CT07).

59Desse modo, o Conselho Tu­telar, além de não se apresentar como um espaço de participa­ção direta da população em sua atuação, tem representantes com baixo grau de legitimida­de tendo em vista a quantidade de votos no processo eleitoral. Assim, no único conselho em que há votação aberta a todos os moradores do munícipio, a participação eleitoral se mostra ínfima, ainda mais se compa­rarmos com as eleições dos re­presentantes legislativos.

60Para o Conselho Tutelar 13, Evânio de Paula foi eleito o conselheiro mais votado, com 188 votos, enquanto Bernadete foi eleita a quarta conselheira com 79 votos. Wagner obteve 89 ficando em terceiro lugar, enquanto o segundo teve 95 e a última apenas 50 votos. É importante lembrar que a par­tir dessas eleições, cada conse­lheiro passou a receber remu­neração mensal de R$3.500,00 da prefeitura do Rio, isto é, ao multiplicar esse valor por todos os 90 conselheiros dos dezoito CTs do município do Rio de Janeiro, tem-se um total de R$315.000,00 dispendido mensalmente pelo poder públi­co municipal com salários. De acordo com os conselheiros e os funcionários do CMDCA, o plano é que haja 30 CTs em todo o município, para respei­tar o Estatuto da Criança e do Adolescente que determina um Conselho Tutelar para cada 100.000 habitantes (assim, po­deria existir, por exemplo, um CT apenas para a Rocinha), ele­vando o custo municipal para R$525.000,00.

61Em resumo, a análise sobre os Conselhos Tutelares em seu processo de constituição por meio de eleições diretas reve­lou a precariedade democrática desse novo recurso instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, a noção de precariedade demo­crática se refere ao papel pou­co vinculante existente entre as instituições e o cidadão. Como suporte para essa ideia, é im­portante recorrer a Charles Tilly (2007). O autor afirmou que de­cisões democráticas e não de­mocráticas se diferenciam pelo caráter vinculante entre quem decide e os cidadãos. A ideia de relação se torna, pois, central. Tilly define « um regime [como sendo] democrático na medida em que as relações políticas entre o Estado e seus cidadãos engendram consultas amplas, igualitárias, protegidas e mu­tuamente vinculantes » (TILLY, 2007, p.28).

62Como vimos, os conselhei­ros são eleitos por uma margem de participação quase nula, tor­nando sua legitimidade ques­tionável. Defende-se que esse fenômeno seja consequência direta de uma fraca apropriação do recurso pelo cidadão, gera­do, inclusive, pelo total descaso com o próprio processo eleito­ral. O caos registrado pela falta de apoio do Tribunal Superior Eleitoral, a difícil organização de um processo tão complexo feito pelo Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, a redivisão ter­ritorial das zonas eleitorais e a pouca publicidade são, segura­mente, elementos que podem ajudar a explicar a precariedade democrática desse novo recurso institucional.

63Importante frisar que o que se problematiza aqui não são os fins, mas os meios que se estabelecem na construção de novos recursos institucionais na política brasileira. Em outras palavras, mesmo que resultados importantes sejam alcançados na prática cotidiana do Conse­lho Tutelar no Rio de Janeiro – como a defesa de crianças e adolescentes em situações de risco constante – cabe ques­tionar se isso é suficiente para qualificá-lo como uma expan­são das instituições democráti­cas na sociedade brasileira.

Considerações Finais

64Esse artigo buscou alcançar dois objetivos complementa­res: (a) caracterizar o conceito de espaço político e sua relação com o bom funcionamento de qualquer modelo de democra­cia e (b) analisar o Conselho Municipal, considerado por muitos autores como o prin­cipal espaço político proposto pelo modelo contemporâneo da democracia participativa.

65Nesse sentido, defende-se que a análise de espaços de participação é fundamental na mensuração da qualidade da de­mocracia. Segue-se, portanto, o que foi defendido por Bobbio:

Em outros termos, quando se deseja sa­ber se houve um desenvolvimento da democracia num dado país, o certo é procurar perceber se aumentou não o nú­mero dos que têm o direito de participar nas decisões que lhe dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este direito. (BOBBIO, N. 2000, p.40).

66A análise dessas novas ins­tituições deixou claro o caráter pouco participativo direto do cidadão. Não há nos Conselhos analisados nenhuma delibera­ção tomada por participação di­reta da população; todas elas se exercem por um tipo também de representação. Todavia, di­ferentemente dos tradicionais espaços representativos, em ne­nhum Conselho Municipal ana­lisado houve participação elei­toral dos cidadãos do munícipio do Rio de Janeiro, com exceção dos Conselhos Tutelares, desta­cados nesse artigo. Apesar dis­so, ficou evidente a precarieda­de democrática dos eleitos para estes conselhos. Afirma-se, portanto, a impossibilidade de qualificar os Conselhos Tutela­res como verdadeiros espaços políticos.

67Muitos trabalhos, ainda, analisam o Conselho Municipal pelos seus produtos. Wampler (2007, p.44) afirma que « o ob­jetivo principal que fundamenta a criação e o funcionamento da maioria das Instituições Par­ticipativas é o de melhorar a qualidade dos serviços públi­cos prestados diretamente pelo Estado ou indiretamente, por meio de terceirização ». Assim, se há uma melhoria nas políti­cas públicas, o Conselho Muni­cipal, muitas vezes, é analisado como « bom » para o sistema de­mocrático. Entretanto, é impor­tante ressaltar que o que se pro­duz não é mais válido do como se produz. O caráter precário de representatividade e/ou partici­pação direta do cidadão presen­te nesses novos recursos conta­mina seu produto e o torna, no contexto democrático, ilegíti­mo. Persistir em denominá-los como « instituições participa­tivas » porque em alguns casos se obtêm bons resultados é de um valor ideológico duvidoso no qual os fins justificariam os meios.

68Sem dúvida, a existência de órgãos especializados na luta pelas crianças e adolescentes é fundamental em uma socieda­de onde há constantes crimes perpetrados contra esse grupo. Entretanto, a ilegítima roupa­gem democrática pode ajudar a esconder práticas que, ao fi­nal, tornam esses novos recur­sos não um avanço na relação entre instituições e cidadãos, mas sim, instrumentos na per­petuação de hábitos nocivos ao já frágil sistema democrático brasileiro.