Introdução

1O ambiente político interna­cional dos anos finais da primei­ra década do presente século foi agitado por protestos de massa, manifestações de rua e rupturas políticas. A indignação gene­ralizada que emergiu de pra­ças e vias públicas espalhadas pelo mundo expôs frustrações populares, indignação com in­justiças e opressões, um senti­mento de decepção e descrença em relação às instituições polí­ticas, o descontentamento com democracias disjuntivas, mas, também, a esperança nas pro­messas democráticas e a ânsia por mudanças.

2As mobilizações irrompe­ram, inicialmente na Islândia e na Tunísia, ao mesmo tempo, foram noticiadas e ou transmitidas instantaneamente para ou­tras partes do mundo, do local ao global, pelas redes sociais e tecnológicas. Estas passam a desempenhar um papel central na estruturação dos episódios de confronto recentes – organi­zação, mobilização e ação cole­tiva –, ou seja, tanto nas estraté­gias de organização e ação local quanto na conexão, interação e ação de ativistas fisicamente distantes, porém unidos por in­teresses comuns.

4Isso tem ocorrido em um contexto onde é possível encon­trar, notadamente, uma série de trabalhos com prognósticos ne­gativos a respeito da condição e do destino de espaços públicos de grandes metrópoles, bem como posicionamentos que de­fendem a existência de um pro­cesso de recuo desses espaços tanto no que se refere à exten­são física quanto em relação à função, a exemplo da ausência de sociabilidade. Essa discussão será melhor aprofundada na se­ção dois.

5Ao mesmo tempo, observa­-se que tem havido uma profu­são de escritos que valorizam, em demasia, o papel da internet e das novas tecnologias para as ações coletivas e para os movimentos sociais contem­porâneos, resvalando em uma negligência com a dimensão es­pacial do fenômeno político e, por conseguinte, em relação à importância do espaço comum e do espaço político para a ação política.

6Diante disso e dos estímulos lançados pelos organizadores do Seminário Internacional Es­paços públicos - Espaços po­líticos, considerou-se ser bas­tante oportuno refletir sobre a conversão de ruas e praças em espaços políticos abertos, bem como sobre a conexão existente entre estes e os espaços de deci­são política. Os palestrantes do referido Seminário foram con­vidados a responder sob quais condições os espaços públicos tornam-se espaços políticos?

7Faz-se necessário, de iní­cio, dizer que o espaço político aberto é aquele lugar qualifica­do pela política ou por fenôme­nos políticos, fundado pelo agir intencional, ou seja, pelo fito de instituir uma mudança legítima e abrangente a um público. São ruas e praças transformadas em arenas políticas de deman­das (CASTRO, 2017a), espa­ços efêmeros de movimentos (CORNWALL, 2002). Assu­mem, pela própria diversidade do social, dos repertórios do confronto e da materialidade, diferentes formas categorizá­veis em espaço político com­petitivo (EPC), espaço político reativo (EPR) e espaço político pró-ativo (EPPA); enquanto que os espaços políticos exclusivos são os Parlamentos, as Assem­bleias ou Câmaras Legislativas, ou seja, espaços onde interesses comuns são debatidos e o resul­tado, as decisões políticas, afe­tam o conjunto da sociedade.

8Com base nessas ideias ini­ciais, o presente artigo foi es­truturado em três partes. Na primeira, discute-se a relação entre rua e política e aponta para a potência de logradou­ros públicos quando transfor­mados em espaços de conflito e ação. Em seguida, buscou-se fazer uma distinção entre prá­ticas cotidianas e ações com implicações substantivas sobre mudanças políticas. Por fim, procurou-se, através de um le­vantamento empírico, explici­tar a tensão entre as instituições e as ruas, bem como a potência política dessa última.

1. A política das ruas

9Occupy! Vem pra rua! Re­claim the Streets!. Essas e tantas outras expressões forjadas por coletivos e movimentos políti­cos fazem alusão à rua e à pre­sença de indivíduos nos espaços abertos das cidades. Dotadas de grande força imperativa, essas frases aparecem com frequência como slogan ou grito de guerra em episódio de confronto políti­co ou de movimentos sociais.

10« Manifestantes tomaram as ruas... », « Nas ruas, milhares protestaram... », « Centenas de pessoas saíram às ruas para pro­testar... » É bem comum encon­trar manchetes como essas em jornais e revistas como destaque noticiário para episódios políti­cos e para a consequente trans­formação de ruas e praças em espaços políticos abertos.

11Frases e palavras como essas chamam atenção para uma con­dição essencial da rua: a potên­cia política. A Praça é do povo, já dizia o poeta. As demonstra­ções de rua revelam que uma multidão está indignada com o Palácio. Essa relação, tensão permanente entre a rua (Praça) e as instituições dos poderes constituídos (Palácio), subjaz à democracia moderna.

13Nesse sentido, observa-se um potencial político nas ruas quando nelas irrompem mani­festações políticas com reivin­dicações legítimas. Isso ocorre quando ativistas e manifestan­tes agem para: (i.) comunicar – indivíduos movem-se com o objetivo direto de informar, emitir, influir e formar uma opi­nião; (ii.) contestar e pressionar – sugestionar o debate político; e (iii.) obter um efeito político abrangente – influenciar a agen­da governamental ou interferir nas decisões políticas. Essa po­tência política torna-se explíicita nos protestos recentes, uma vez que a rua é utilizada como um recurso de luta para a conquista de resultados políticos específi­cos.

15Demonstrações de rua recen­tes corroboram com isso. Em diversos episódios de confron­to político do ciclo de protestos pós-2008 tornou-se evidente que a rua é um recurso democrá­tico para a ação política, capaz de obter efeitos abrangentes so­bre a sociedade.

16Julho de 2017: o presiden­te da Polônia vetou duas leis controversas que promoveriam uma reforma da Suprema Corte do país e do Conselho Nacional de Magistratura. Aprovada pelo parlamento, a medida provocou oito dias de intensos protestos no país (Figuras 1 e 2) passeatas nas seguintes cidades: Cracóvia, Paris, Bruxelas e Londres. Para os críticos, a reforma ampliaria o controle do partido sobre o sistema judiciário e reduziria a independência da instituição.

17Abril de 2017: milhares de manifestantes protestaram no Paraguai após o senado aprovar um projeto de emenda à Cons­tituição que permitiria a candi­datura e uma possível reeleição do então presidente Horacio Cartes. A aprovação da medida motivou violentos protestos em Assunção. O confronto se espa­lhou por diversas ruas do centro da cidade e desaguou em um incêndio parcial do Congresso e na morte de um dirigente ju­venil opositor do governo. Após esses acontecimentos e da forte pressão de opositores, o presi­dente anunciou que não buscará um novo mandato e, no final do mês, a Câmara de Deputados ar­quivou o projeto.

18Fevereiro de 2017: milha­res de manifestantes saíram às ruas em Bucareste, Romênia (Figuras 3 e 4), por seis dias consecutivos contra a aprova­ção de um polêmico projeto de lei que despenalizaria alguns crimes de corrupção ativa e passiva e conflitos de interes­se. Após a maior e mais osten­siva onda de protestos ocorrida no país desde 1989, o governo recuou e anunciou a revogação do decreto-lei e levou o minis­tro da justiça a renunciar ao cargo.

192013: uma onda de protestos teve início em Istambul, Tur­quia, para impedir a derrubada do Parque Taksim Gezi (Figu­ras 5 e 6). O governo pretendia construir um centro comercial no local. Depois de quase uma semana de intensos protestos e confronto entre polícia e mani­festantes, o primeiro ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, anunciou que não mais iria construir o centro comercial no local do parque.

20O que esses episódios de protestos político têm em co­mum? As seis imagens repre­sentam paisagens políticas de espaços urbanos que fo­ram transformados, através de ações coletivas, em espaços políticos abertos. É importante destacar que, apesar das gran­des diferenças e especificida­des históricas e de contextos sócio-espaciais existentes entre as lutas pela redemocratização no Oriente Médio e as grandes mobilizações e manifestações ocorridas na Europa, deflagra­das no contexto da crise eco­nômica internacional de 2008, observa-se similitudes entre os episódios de confrontos citados e representados pelas imagens.

22Dito isso, deve-se salientar que a ação coletiva envolve intencionalidades diferentes daquelas relativas às rotinas cotidianas dos indivíduos nos espaços do dia a dia, o que por sua vez engendrará comporta­mentos e práticas sociais par­ticulares. Além disso, o con­fronto político tem o objetivo e busca alcançar resultados ou efeitos políticos (FAVRE, 2007) abrangentes a uma co­letividade. Apoiado nessas ideias, no repertório e nas per­formances de episódios de con­frontos políticos ocorridos no Brasil entre 2013 e 2017, será exposto, mais à frente, que as performances políticas teatra­lizadas em praças e ruas por manifestantes projetam tipos e subcategorias de espaços polí­ticos abertos e, ainda, revelam uma conexão permanente entre os espaços político abertos e as instituições políticas.

2. A micropolítica do cotidiano e o espaço político

25Monteiro (2006) faz uma crítica a essa glorificação do espaço urbano moderno como o lugar da liberdade e debates, ou, em outras palavras, como o espaço da cidadania. O autor chama atenção para a referência feita por diversos pensadores e urbanistas, qualificados por ele como pós-modernos, a um pas­sado mítico e para a forte ten­dência à idealização dos pontos de encontro e convivência so­ciais modernos.

26Constata-se que esse eixo analítico é o mais vulgar nas ciências sociais e que ele é acompanhado por um generali­zado diagnóstico sobre a morte da vida pública na experiência social moderna (ou implosão da vida pública na cidade mo­derna), em decorrência de uma suposta decadência ou desapa­recimento do espaço público (àquele mitológico), de modo que se torna oportuno refletir sobre o ideal moderno de es­paço público, bem como com­preender a condição, o caráter e a natureza desses no mundo contemporâneo.

27As principais causas para essa « implosão da experiência de vida pública na cidade mo­derna » (CALDEIRA, 2003) são, no geral, atribuídas: (i) ao planejamento urbano moder­nista, (ii) à violência urbana, incivilidades, intolerância e discriminação, e (iii) à degra­dação ou deterioração dos es­paços abertos de uso comum; o que leva Rogério Leite (2008) a identificar a existência de um « generalizado obituário » em torno da « discussão contempo­rânea sobre cidades e vida ur­bana ».

29Em suas análises sobre esses tipos de espaços, alguns estu­diosos como Serpa (2004) e Gomes (2012, 2005) partilham desse mesmo ângulo analítico. Ambos os autores atribuem um caráter político intrínseco aos espaços do cotidiano social. Além desses, Staeheli & Mit­chell (2006) também enxergam a presença de um potencial político no espaço público. Os autores analisam o processo de emergência de shoppings centres nas cidades norte-ame­ricanas e a anunciação desses ambientes como a nova praça da cidade. O fato é que Staeheli & Mitchell questionam e argu­mentam contra aqueles que ten­dem a considerar os centros co­merciais como sendo o « novo coração da vida pública e so­cial » (p.977), isto é, os autores abordam a situação de aban­dono de lugares históricos de sociabilidade pelos citadinos e o processo de apropriação des­ses ambientes por moradores de rua e traficantes de drogas, sendo estes responsáveis por criar sensações de ameaça ou insegurança a muitas pessoas. Esse é um dos pontos em torno do qual converge o pensamento daqueles que idealizam o espa­ço público moderno.

30Nesse debate contemporâ­neo, Leite (2008) aventa que o espaço público não existe a priori como rua ou praça, por exemplo, pois ele não antecede ações e espaços. Essa sugestão analítica é problemática na me­dida em que indica que qual­quer espaço da cidade pode ser transformado em um espaço público, pois estes são consi­derados, sobretudo, uma cons­trução social. O espaço público, sob esta perspectiva, não é algo dado; ele se constitui a partir de ações e ou prática sociais. De acordo com Leite, « em uma rua, a despeito de ter fluxo con­tínuo de pessoas em movimen­to, a ausência de ações voltadas à interação pública de dife­rentes pontos de vista faz com que inexista uma qualificação política que possa distingui-la como espaço público » (LEITE, 2008, p.48).

31Entretanto, o autor não avan­ça em termos propositivos no sentido de repensar e reconcei­tuar os diferentes espaços aber­tos de uso comum com base nas diferentes ações realizadas pelos indivíduos. Ao refutar a ideia corrente de perda ou de prejuízo de um suposto caráter político dos espaços públicos, em decorrência de obras de re­construção urbana, o autor dá como exemplo as reformas rea­lizadas no Marco Zero, em Re­cife, durante os anos de 1990, responsáveis pelo fim de uma « pequena pracinha com bancos de madeira, onde se podia, à sombra das suas árvores, con­versar a qualquer hora do dia » (op. cit., p.38). No lugar da pra­cinha surgiu um enorme vazio, o resultado foi:

a transformação de um espaço que tinha potencial para o encontro público em um espaço para espetáculos públicos. Sem bancos e sem sombra, o novo Largo do Marco Zero repetia uma experiência co­mum nas metrópoles brasileiras: a remo­ção dos utensílios urbanos que assegura­vam a permanência fortuita de pessoas nos locais.

33Pelo contrário, o espaço pú­blico moderno não é uma are­na de encontro e discussão de assuntos públicos. De acordo com Bobbio (1986):

• 10 No original: «la ‘piazza’ non è sede di discussione, dove si vada per dibattere un problema e decid (...)

a « praça » não é um fórum de discussão, onde você vai para debater um problema e decidir em conformidade. Nela se reú­nem porque já têm um propósito comum, de alguma forma já pré-determinado. (...) Ao contrário da ágora clássica, a « praça » tanto em regimes autocráticos, como nos regimes de democracia indireta ou repre­sentativa, não é um lugar onde você toma decisões: decisões que contam já estão tomadas pelos próprios manifestantes (que se manifestam porque querem tomar uma determinada ação ou contestar uma decisão já tomada), ou pelo ditador (e a multidão fala em monossílabos: « sim », « não », « para nós ») (BOBBIO, 1986, p.2 apud MACHADO FILHO, 2016)10.

34É interessante notar que, ao mesmo tempo em que a difusão dessas interpretações pessimis­tas e a denúncia de perda da presumida essência política da ágora moderna, tem-se adquiri­do fôlego a defesa e o enalteci­mento do espaço público como arena do debate público e polí­tico, especialmente após o ciclo de protestos pós-2008.

36Pelos motivos expostos até aqui, considera-se um equí­voco a utilização da categoria espaço público na tentativa de dar conta de certos fenômenos políticos. Todo esse imbróglio impulsiona a consolidação de um conceito alternativo, espaço político. Os fundamentos desse, sua consistência teórico-con­ceitual e sua aplicabilidade se­rão desenvolvidos na pesquisa.

Quando o político entra em cena

37Os espaços cotidianos da rua e da praça são locais da experiência ordinária do in­divíduo urbano e da micropo­lítica citadina, onde cidadãos exercem seus direitos espa­ciais – de ir e vir (por exem­plo) – e deveres escritos em leis (TONKISS, 2005), ao mesmo tempo em que nego­ciam sua presença com outros indivíduos e agentes de go­verno, modos de uso e formas de ocupação.

38Considerando a rua como a unidade básica da vida públi­ca na cidade, conforme suge­re Tonkiss, permite-se com­preender os espaços abertos compartilhados como local de encontros informais, de interação e troca social, me­diadas por regras tácitas ou formalmente instituídas e có­digos sociais de condutas que podem coibir, restringir ou condenar moralmente certas práticas; logo, estão submeti­dos ao controle e à regulação de governantes, disciplinado e normatizado por leis.

39Esses argumentos são, de modo inalterável, invocados pelos que advogam a ver­são mais literal sobre esses espaços, aquela baseada em um tipo ideal e em uma noção de público como comunidade política, para considerar os espaços públicos como uma expressão da cidadania e da cultura cívica, ou seja, um espaço virtuoso regido por práticas essencialmente polí­ticas.

40Longe de querer negar a micropolítica dos espaços abertos compartilhados, con­sidera-se ruas, praças, parques e praias como espaços onde a civilidade está presente, po­rém, esta é o político sem a política ou uma política de forte componente interativo (LÉVY & LUSSAULT,2003), sem que necessariamente os embates decorrentes do seu uso assumam a dimensão de um problema público e exi­ja a mediação de autoridades competentes.

41Esses espaços têm sim a política como fundamento. É o que possibilita que a di­versidade da pluralidade hu­mana presente, representada pelas diferenças individuais, e que os conflitos decorrentes desse compartilhamento não descambem para a violência. Disso, pode-se depreender-se que a micropolítica organiza a vida social nesses espaços e as disputas inerentes ao uso partilhado desses ambientes.

42Por sua vez, quando um problema da vida pública emerge, adquire destaque, é debatido, problematizado e convertido em demonstrações públicas, pois mobilizou uma ação coletiva, cuja intenção é expressar, influenciar e cons­tituir uma opinião capaz de confrontar contendor e com o potencial de obter efeitos po­líticos abrangentes tem-se aí a manifestação da potência po­lítica da rua, que transborda aquela de cunho interacional ou a micropolítica ordinária.

43Quando determinada ten­são entre reclamantes e adver­sários torna-se explicita, as­sumindo a forma de confronto político, ocorre a conversão de lugares abertos comparti­lhados – praças e vias públi­cas – em espaços políticos e revela-se a interação entre o instituído e a força que busca instituir certa mudança políti­ca e social.

44E quando espaços públi­cos são ocupados e utilizados para a realização de ações políticas, pondo em segundo plano rotinas realizadas co­tidianamente em ruas, praças e praias, por exemplo, tem-se a emergência de um espaço político aberto. Dessa trans­formação, três elementos dis­tintivos aparecem: (i.) comu­nicar – indivíduos movem-se com o objetivo direto de in­formar, emitir uma opinião; (ii.) contestar e pressionar – sugestionar o debate político; e (iii.) obter um efeito políti­co abrangente – influenciar a agenda governamental ou in­terferir nas decisões políticas.

45O espaço político é, nes­ses termos, « um lugar onde o homem age coletivamente com uma intenção [– insti­tuir uma mudança política] » (CASTRO, 2017b, pg??. grifo nosso). Alguns exemplos po­dem ajudar a entender melhor como isso se dá e a pensar como diferentes tipos de mo­bilizações: de ambientalistas, protestos estudantis, de mino­rias, seus objetivos e os espa­ços escolhidos criam tipos de espaços políticos abertos.

46A Praça Mohamed, em Sidi Bouzid, na Tunísia, berço da Primavera Árabe, representa bem o primeiro tipo, Espaço político competitivo (EPC). Em 2010, as ruas e praças de Tunis e outras cidades do país foram transformadas por mi­lhares de manifestantes con­trários ao regime autoritário personificado pelo presiden­te Zine El Abidine Ben Ali, que ficou no poder durante 23 anos. O espaço político com­petitivo foi acionado por per­formances contenciosas. Ruas e praças transformaram-se em uma grande arena política competitiva para a manifesta­ção de uma oposição e riva­lidade coletiva ao sistema de governo instituído e às impli­cações práticas desse na vida dos tunisianos.

47Outros países da Primavera Árabe, Egito, Iêmen e Líbia, também são exemplos de pro­testos populares que fomenta­ram a deposição de ditadores em revoluções iniciadas pelo povo. Espaços políticos com­petitivos rivalizaram com os sistemas dominantes e com­petiram para implodir o status quo instaurado nesses países.

3. Tensão democráti­ca e nexo entre os es­paços políticos

• 15 Roberto Romano, Demofobia em marcha, Estadão, publicado em 30 de Junho de 2013. Dis­ponível em: <http://opiniao.estad­ao.com.br/noticias/geral,demo­fobia-em-marcha-imp-,1048604. Acessado em 02 de Junho de 2017>

Manifestações de rua significam a multi­dão de pessoas indignadas com os palá­cios.
A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões.
Quem para ela se dirige tem alvo comum:
reivindicar direitos, ouvir líderes. (RO­MANO, 2013)15.

• 16 «Vista dal palazzo la piazza è il luogo della libertà licenzio­sa; visto dalla piazza è il luogo de (...)

Vista do palácio, a praça é o lugar da liber­dade licenciosa;
visto da praça, o palácio é o lugar do poder arbitrário.
Se cai a praça, o palácio também é des­tinado a cair.
(BOBBIO, 1986, Il Palazzo e la Piaz­za.)16.

51A metáfora utilizada por Norberto Bobbio para se refe­rir à relação existente entre go­vernantes e governados revela uma essência das democracias modernas de massas – o nexo entre os espaços da política e a conexão entre governo e socie­dade civil –, que não pode, de modo algum, ser negligenciada ou relegada a um segundo pla­no pela Geografia Política.

52Innerarity (2017) lembra que essa tensão entre as insti­tuições e a rua é uma idiossin­crasia própria da democracia, esta sendo entendida como um formato político e uma prática social (CASTRO, 2013), por­tanto, como um problema para a Geografia.

53Para verificar o potencial das ruas e praças, « espaços públicos do cotidiano social que se me­tamorfoseiam em arenas de de­mandas, conflitos e ação, o que os investe de evidente caráter político » como espaços políti­cos abertos (CASTRO, 2017b, s.p.), e em analisar e evidenciar o nexo existente entre as ruas e as instituições políticas, rea­lizou-se um levantamento sis­temático de iniciativas legislativas apresentadas e discutidas no Congresso Nacional durante o período de ocorrência das manifestações de 2013.

54Durante as jornadas de pro­testos de junho de 2013, algu­mas medidas foram anunciadas pelo Palácio do Planalto en­quanto ações foram propostas e apreciadas pelo Congresso Na­cional. A justificativa utilizada pelos parlamentares foi avalia­da com o objetivo de encontrar algum tipo de menção explícita às manifestações. Verificou-se que proposições foram feitas, aprovadas ou recusadas após a pressão política que emergiu das ruas em todo o país.

55A análise do Quadro 01 per­mite dizer que certas reivin­dicações foram utilizadas por alguns parlamentares como justificativa em iniciativas apresentadas à casa legislativa. Nota-se que o tema das propo­sições emergiu quanto mais in­tensidade e força tinham os atos iniciados em junho. O tema e os conteúdos das iniciativas se re­lacionam com as demandas dos manifestantes, que, por sua vez, foram utilizadas como justifica­tivas e defesa da aprovação das proposições.

56Também é possível perceber que o termo ‘rua’ aparece diver­sas vezes em várias das justifi­cativas, evidenciando-se o po­tencial da rua como um espaço político aberto (MACHADO FILHO, 2016; MACHADO FI­LHO & BORGES, 2017).

58A análise desses documen­tos revela que tanto o debate legislativo quanto o executivo absorveram, em certa medida, o tema das jornadas de Junho de 2013 e que, em alguns ca­sos, a agenda governamental foi influenciada pelas vozes das ruas. No caso do governo federal, a presidência tomou cinco decisões diretamente re­lacionadas com as principais exigências dos manifestantes.

60É possível verificar que projetos ou iniciativas também foram aprovados ou recusados após as pressões dos manifes­tantes. Medidas polêmicas que suscitaram um amplo debate na sociedade brasileira e am­plas manifestações contra a aprovação, a exemplo da Pro­posta de Emenda à Constitui­ção (PEC 37/2011), que limi­taria o poder de investigação do Ministério Público. Notou­-se, também, que proposições cujos temas mobilizaram uma grande agitação nas ruas e ad­quiriram destaque nos noticiá­rios nacionais foram colocadas em discussão no Congresso Nacional.

Considerações finais

61O propósito maior do pre­sente trabalho foi problemati­zar como fenômenos da política transformam espaços públicos em espaços políticos abertos e como a Geografia pode se apro­priar desse tema e contribuir com o debate sobre as mobili­zações políticas que ocorreram no mundo pós-2008.

62Esse é um tema que tem ad­quirido uma notável relevância no âmbito das ciências sociais. Assim, procurou-se analisar a potência política da rua quando acionadas por fenômeno políti­co, a exemplo das jornadas de protestos de Junho de 2013.

63Buscou-se chamar atenção para a tensão democrática entre rua e palácio, e que há uma co­nexão explícita entre os espaços do poder instituinte e os espaços do poder instituído. Logo, espaço e política são indissoci­áveis. Explicitou-se, a partir do levantamento empírico realiza­do, o potencial da rua como um recurso político democrático essencial para se instituir mu­danças políticas.

64Finalizando, reitera-se a ideia de que os espaços públi­cos não possuem uma natureza política imanente. Esses são, sobretudo, lugares de socia­bilidade, pontos de encontros fortuitos e ambientes de lazer e diversão, logo: espaços de sociabilidade. Porém, quando neles irrompem fenômenos po­líticos – protestos etc., ocorre a subversão dos códigos coti­dianos e uma transfiguração de ruas e praças em espaços políti­cos abertos.