Introdução

1Nos últimos anos, o cenário político mundial foi agitado por inúmeras manifestações que sa­cudiram ruas e praças, eviden­ciando seu potencial como um espaço político. No Brasil, esse cenário não foi diferente. Após as grandes manifestações po­pulares de junho de 2013, esses espaços entraram de fato no lé­xico político do país. Para além da sua função enquanto espaços públicos, seu uso pelas mani­festações passou a se referir não só a um processo de interlocu­ção entre a sociedade e o poder público, mas também a uma forma mais espontânea de fazer política. Assim, por todos os elementos que contempla, entre eles a publicidade, a visibilida­de, o simbolismo e a capacida­de de reunião de pessoas, ruas e praças passaram a desempenhar um novo papel: em determina­dos momentos se transfigura­ram em um claro sentido polí­tico, distinguindo-se, portanto, da condição de espaços públi­cos, ou seja, de espaços do con­vívio social público.

2Umas das formas pelas quais espaço e política estão relacio­nados encontra-se nas discussões em torno do conceito de espaço político. Este conceito nos propicia pensar como a po­lítica qualifica de fato o espaço. No entanto, para pensá-lo, nos é imposto também a necessi­dade de separar analiticamente as condições de existência do espaço político e, consequen­temente, até que ponto o espa­ço é qualificado politicamente. Diante disso, como aponta Cas­tro (2012), « aceitar a existência de uma dimensão política do es­paço requer a aceitação prévia da política como uma instância com certo grau de autonomia na vida social, o que significa con­siderar que existem fenômenos políticos que, de algum modo, qualificam o espaço » (Castro, 2012, p.44), proposição esta que ainda não é evidente nem consensual.

3Nesse sentido, Castro (2004; 2012), ao perseguir a qualifica­ção e distinção do espaço po­lítico frente aquela do espaço público, destaca que, apesar da evidente relação entre eles, não é possível reduzirmos um ao outro. O espaço público, por­tanto, é apenas uma das con­dições para a constituição dos espaços políticos, uma vez que por serem os espaços dos li­vres e iguais e da publicidade, isto é, do ver e ser visto, e das normas coercitivas entre livres e diferentes, são arenas privile­giadas para a ação política e a condição para o confronto entre o instituinte – o que tenta se im­por - e o instituído – as regras institucionais vigentes -, fun­damento da dinâmica política constituinte das sociedades de­mocráticas (idem).

4Para que possamos definir com clareza o conceito de espa­ço político, e, dessa forma, po­der tratá-lo tanto operacional­mente quanto objetivamente, de modo a conectá-lo à realidade, é fundamental definir o que esta­mos considerando por política. Para isso, é preciso diferenciar - do ponto de vista analítico, e não axiológico - duas noções de política: uma em um senti­do categórico, como intencio­nalidade e ação; e a outra, em sentido opaco, como micro-política (Tonkiss, 2005), muito utilizado quando se quer fazer referência à negociação de inte­resses que se encontra presente no uso cotidiano dos espaços públicos, uma vez que eles são coletivizados.

5Neste primeiro sentido, há de fato uma politização do es­paço, que se transfigura em um claro sentido político. A política pode ser expressa nos espaços públicos de forma categórica, seja por se tratar de espaços que são regidos por normas e regras definidas pela política (respon­sáveis por definir o uso e com­portamentos nestes espaços), seja quando demandas e insa­tisfações são tornadas explíci­tas por atos políticos, muitas vezes colocando em suspensão estas mesmas normas e regras. Com isso, este espaço, até então predominado pela sociabilida­de, ganha um conteúdo de ação claro, que é expresso através do seu uso com finalidade política preponderante, voltada para a construção de uma agenda po­lítica pública. Neste momento, as práticas sociais qualificam de forma diferenciada esse espaço do encontro, cujo conteúdo po­lítico presente atende a outra substância e dimensão: a ação política toma a frente como a relação que predomina na dinâ­mica espacial.

6Em suma, de acordo com Castro (2017), podemos com­preender os espaços políticos como « um lugar onde o homem age coletivamente com uma intenção, o lugar da visibilida­de do confronto de interesses, do debate livre, da negociação e da disputa de poder sobre os acordos em relação às normas necessárias ao convívio pacífi­co entre as diferenças » (op cit, p.7). Nesse sentido, os espaços políticos são constituídos pelo agir intencional e coletivo do homem, que « se constrói e fun­ciona como a intermediação entre a sociedade e o Estado; o lugar de atos políticos » (Azeve­do, 2016, p. 73) e da conexão entre o instituído e o instituinte. Esta ação política constituinte dos espaços políticos

confere visibilidade às escalas que es­tabelecem recortes operacionais, cujas métricas se definem pela extensão dos impactos das decisões de caráter políti­co que se estendem pelas diferentes es­calas da ação, desde os parlamentos aos espaços escolhidos pela sociedade para dar visibilidade e voz às suas demandas (Castro, 2017, p. 7)

7De acordo com Castro (2017), podemos classificar os espaços políticos segundo três grandes categorias básicas: es­cala, métrica e substância, que são, respectivamente, funda­mentos da sua visibilidade (re­conhecimento), abrangência (alcance) e efetividade (efeitos desejados). Dessa forma, dife­renciam-se em espaços políti­cos exclusivos, como as casas legislativas das diversas esferas políticas, espaços políticos li­mitados, como as associações de moradores e os Conselhos Municipais, e espaços políticos abertos, como ruas e praças, sendo este último tipo aquele que nos deteremos neste traba­lho.

8Historicamente palco de grandes ebulições políticas, ruas e praças foram em diversos mo­mentos o lugar da mobilização política, da revolta, onde as normas foram postas em sus­pensão e/ou postas à discussão. (McAdam, et. al., 2004; Har­vey, 2013; Santucci, 2008). São espaços onde o impulso insti­tuinte por mudança é tornado público e visível, deflagrando o esgarçamento das normas anti­gas e o nascimento de normas novas. Assim, em momentos de crise institucional e grandes mudanças políticas e sociais, as ruas e praças frequentemente desempenham o lugar por exce­lência do instituinte, escolhida como o lugar da política, para a política e, até mesmo, da não política. Dessa forma, tanto em democracias quanto em auto­cracias, ruas e praças, quando se manifestam, tornam-se um tipo de espaço com estatuto di­ferenciado, aquele de instituir mudanças e qualificado pela ação política.

9Diante disso, o presente arti­go tem como objetivo analisar a transfiguração de ruas e praças em espaços políticos a partir da sua ocupação pelas manifesta­ções. Interessa-nos, portanto, compreender esse processo de transfiguração e os fatores que condicionam o uso político des­ses tradicionais espaços públi­cos. Nesse sentido, desde 2013 o Brasil vivenciou uma série de manifestações que reafirmaram o papel político destes espaços e, do ponto de vista geográfico, evidenciaram umas das formas como a política se expressa es­pacialmente.

10Para tanto, analisaremos o processo de transfiguração dos espaços públicos em espaços políticos a partir de duas pers­pectivas de análise espacial: a da forma de organização dos/ nos espaços e da exploração da visibilidade contida nestes espaços. Cada perspectiva será analisada separadamente, no qual, em um primeiro momen­to, será apresentada discussão teórico-conceitual sobre os fa­tores espaciais contemplados e, posteriormente, a forma como condicionam o uso político destes espaços. Utilizaremos como objeto de análise as ma­nifestações ocorridas no Brasil entre os anos de 2015 a 2016, sobretudo aquelas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro a res­peito da diminuição das tarifas dos transportes públicos e do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Por serem es­paços políticos efêmeros, sendo animados momentaneamente por manifestações e atos polí­ticos, é possível compreender­mos quando, como e sob quais circunstâncias ocorre a transfi­guração destes espaços do con­vívio social em espaços da ação política.

Os condicionantes espaciais da ação política nos espaços políticos abertos

11A ação política é capaz de constituir uma dimensão pró­pria no espaço. Sua apreensão é melhor compreendida através dos espaços políticos por exce­lência, isto é, as Assembleias, espaços que portam uma fun­ção eminentemente política. Contudo, ruas e praças, então espaços públicos, também são passíveis de serem qualificados politicamente. A ação política define um tipo de uso e organi­zação destes espaços, que pas­sam a ser conformados de acor­do com as especificidades dos atores políticos que o ocupam e a forma com que constroem e posicionam, segundo seus ob­jetivos, a exposição de seus in­teresses e demandas no debate público.

12Momentos de importantes mobilizações sociais, como as ocorridas desde junho de 2013 no Brasil, são situações pri­vilegiadas em que é possível presenciar expressões políticas claras que emanam em espaços diferentes daqueles das instân­cias políticas, como por exem­plo, as Assembleias. Ricci e Ar­ley (2013) e Nogueira (2013), ao analisarem estas manifesta­ções, destacam o modo como a rua ganha destaque como espa­ço de atividade política, o qual, em determinado instante, seu uso cotidiano se altera, transfi­gurando-se em um claro uso e sentido político.

13As manifestações políti­cas em ruas e praças, ao se atribuírem dos condicionan­tes espaciais, estão, de fato, qualificando politicamente os espaços onde ocorrem, trans­formando-os, mesmo que por alguns instantes, em espaços políticos. Nestes momentos, a partir da intencionalidade po­lítica destes atores, estes tipos de espaços públicos, até então definidos pelas normas para o encontro e coexistência dos diferentes, criam situações em que seus limites e conteúdos são perturbados pela presença de um público com o objetivo de, justamente, transformar ou, ao menos, colocar em discussão as normas vigentes (Low, 2000 apud Gregory et al. 2000). Nes­tes momentos, a diversidade e a imprevisibilidade enfraquecem o valor da dimensão pública desses espaços, atribuindo-lhes um protagonismo político que transforma, em momentos pre­cisos, seu caráter público em político (Castro, 2017, p. 11- 12).

Formas de organização dos/ nos espaços políticos abertos

15O fenômeno político se ex­pressa no espaço de diferentes formas, sendo o espaço políti­co uma de suas manifestações. Todavia, tais espaços políticos também se diferenciam entre si. A ação política se organiza diferentemente de acordo com os elementos que compõem o espaço, sendo ele recurso fun­damental e objeto de diversas estratégias que o organizam da maneira mais favorável àqueles que o utilizam.

16Cada tipo de espaço polí­tico possui uma configuração espacial e natureza político­-institucional próprios, que o confere capacidade organizati­va e estratégica distintas. Essas capacidades, portanto, variam conforme os atributos de cada espaço, que referencia, condi­ciona e delimita as práticas es­paciais que nele podem ser em­preendidas. Assim, de acordo com Parkinson (2012) e Souza (2006; 2013), olhando através do atributo da materialidade, a forma física se destaca como um fator importante para com­preendermos o comportamen­to político nestes espaços: por possuírem obstáculos, como no caso dos muros, ou arran­jos que impeçam, facilitem, ou limitem o acesso e as ações empreendidas neste espaço; e ao agirem como pontos de an­coragem, « portadores » de sím­bolos, mensagens, memórias e identidades, inscritos formal ou informalmente nos elementos destes espaços, que ajudam os atores a serem levados a sério pelo coletivo, importando as­sim para sua eficácia política. Nesse sentido, o espaço é a base fundamental para que a política ocorra (Arendt, 1998; Castro, 2004; 2005; 2012), influencian­do-a decisivamente de diversas formas.

18Mesmo sendo também es­paços de reunião, os espaços políticos abertos apresentam ti­pos de ações diferentes, sendo a pressão política a mais eminen­te. A pressão política pode ser exercida a partir de diferentes estratégias e repertórios, como a ação direta, passeata, ocupa­ção, performances e representa­ções, isto é, todos os artifícios pelos quais um interesse, de­manda e insatisfação de grupos presentes no meio social sejam explicitados e possam, de algu­ma forma, mobilizar a opinião pública e, consequentemen­te, influenciar e sensibilizar as autoridades políticas a fim de atendê-las. Estas estratégias e repertórios de ações variam de acordo com os objetivos preten­didos e os recursos, oportunida­des, restrições disponíveis no momento, tanto dos atores mo­bilizados quanto do próprio es­paço escolhido para a manifes­tação (Tarrow, 2011; Parkinson, 2012). Desse modo, é a partir dessas ações que os espaços pú­blicos de ruas e praças são « politizados » (Tonkiss, 2005; Lee, 2009), ou seja, transfigurados em espaços políticos.

19Destacam-se entre estas es­tratégias de manifestação polí­tica para a pressão política as passeatas e as ocupações (Oli­veira, 2015). Cada estratégia apresenta uma estética, uma forma espacial e uma tempora­lidade diferente. As passeatas geralmente são grandes cami­nhadas caracterizados pelo bra­do de palavras de ordem, cânti­cos, uso de percussão, cartazes e faixas, definidos por uma se­quência temporalmente curta, geralmente com duração de ho­ras: primeiro há a concentração das manifestações em um deter­minado lugar, em seguida ini­ciam um determinado percurso, que pode apresentar algumas paradas, e, por último, há o en­cerramento com a parada final no mesmo lugar de início ou em lugar diferente.

20Enquanto isso, as ocupações possuem estética semelhante às passeatas, contudo apresentan­do uma temporalidade maior, podendo durar dias ou até mes­mo meses (duração que depen­de de vários fatores, entre os quais a conquistas dos objeti­vos dos manifestantes, a remo­ção pelo poder público ou pela própria desmobilização), e um comportamento mais estático e fixo mediante a apropriação temporária de um determinado espaço.

22Quanto à organização inter­na, os espaços de ruas e pra­ças permitem uma apropriação mais flexível e diversificada. Sua organização dependerá de dois grandes fatores. O primei­ro está relacionado às próprias características do lugar ocupa­do pelas manifestações, isto é, sua dimensão física, elementos do seu mobiliário (postes, ban­cos, cercas, muros, canteiros, monumentos etc.) e, se pos­suir, um elemento de destaque, que defina uma centralidade na composição deste espaço (monumentos de grande sim­bolismo, prédios de relevância histórica e/ou política, áreas que permitam maior exposição etc.). O segundo fator se refere às características dos próprios manifestantes, isto é, seus obje­tivos, o número de participantes e as estratégias traçadas para a melhor exposição de suas de­mandas.

• • 5 Consideramos como grupos de confronto os grupos black blocs e demais grupos que possuam estética e (...)

  A parte mais à frente é ocupada pelas forças policiais, compostas por guardas de trân­sito e policiais militares respon­sáveis pelo preparo do caminho para o prosseguimento da pas­seata, ao controlar o trânsito e remover eventuais obstáculos, e por aprontar o policiamento naqueles espaços que posterior­mente serão apropriados pe­los manifestantes. Há, entre os guardas municipais, os policiais e os representantes dos mani­festantes, um intenso diálogo, ditando assim o ritmo da passe­ata e os caminhos tomados por ela. Nesta parte também estão presentes fotógrafos das mídias tradicionais e os midiativistas, que eventualmente circulam pela coluna de manifestantes. Além disso, em determinadas manifestações, é observada a presença de grupos de confron­to5 nessa linha de frente.

• Em manifestações pro­pensas a casos de violência, há um reforço no policiamento da manifestação. Além do maior efetivo policial, a coluna de ma­nifestantes sofre um isolamento pelas forças policiais, sendo acompanhada por viaturas, con­centradas na extremidade final, e por membros do grupamento de choque da polícia (chama­dos de « robocops », devido à sua vestimenta de proteção re­forçada), dispostos segundo um cordão de isolamento da coluna de manifestantes.

• Quanto à coluna de ma­nifestação, a parte frontal ge­ralmente é composta por uma grande faixa, que está relacio­nada ao tema central do ato. Esta faixa demarca um princí­pio de organização espacial dos manifestantes que está relacio­nado ao grupo que lidera e orga­niza o ato. São estes os grupos que definem a pauta da mani­festação e que se posicionam na dianteira, estabelecendo-se como protagonistas e aqueles que possuem maior visibilidade dentre os demais manifestan­tes. A partir deles, os demais grupos de manifestantes que se unem ao ato estão dispostos de acordo com a afinidade política e ideológica, ou seja, quanto menor a afinidade em relação ao grupo dirigente, menor des­taque terá no momento do ato, localizando-se, assim, mais ao final da coluna de manifesta­ção e distante do seu ponto de maior visibilidade.

25A outra situação de destaque é a deliberação. Embora a ação proeminente nos espaços polí­ticos abertos seja a de pressão política, a deliberação é um re­curso usado para a organização dos atos, sobretudo quanto a definição das estratégias mais eficazes para a influência so­bre a opinião pública e o poder público. Chamadas comumente de plenárias, as deliberações são fóruns que geralmente an­tecedem as manifestações, de­finindo, fundamentalmente, o balanço dos atos anteriores, o trajeto a percorrer, a pauta de reivindicações e a data das fu­turas manifestações.

Visibilidade

26Como vimos anteriormen­te, o espaço é a base material e simbólica necessária à existên­cia da política, sendo também um recurso e condicionante para que a ação política seja empreendida. Além destes, o espaço também apresenta outro atributo importante: é responsá­vel por dar visibilidade à polí­tica.

27De acordo com Gomes (2013), o espaço pode ser um instrumento que faz ver, que torna visível. Desse modo, a vi­sibilidade é um fenômeno que apresenta uma incontornável geograficidade, cuja magnitude e alcance depende de três ele­mentos principais: a morfologia do sítio, que deve ser capaz de garantir uma convergência de olhares e a desejada captura da atenção; a existência de um pú­blico, formado por observado­res sensíveis aos novos sentidos nascidos da associação entre o lugar e o evento que se apre­senta e cujos olhares estejam atraídos e concentrados nestas áreas; e da produção de uma narrativa, isto é, as leituras dos sentidos que emergem do con­texto espacial dentro da qual se inscreve o fenômeno (Gomes, 2013, p.37-38).

28Para Gomes (2013), os espa­ços públicos se destacam como verdadeiros espaços de exposi­ção, da exposição pública, que confere visibilidade a qualquer atividade que nele se expresse. Nesse sentido, os espaços pú­blicos podem se transformar em arena de debate e em lugar onde são inscritos conflitos, tensões e o reconhecimento do interesse público sobre deter­minadas dinâmicas e transfor­mações da vida social (Gomes, 2012; 2013). Assim, por serem espaços necessários à perfor­mance da democracia (Parkin­son, 2012), a ação política é um dos elementos que pode cons­tituí-lo e, portanto, ser passível de visibilidade.

30Dessa forma, os espaços po­líticos também estão sujeitos às condições espaciais que regem a visibilidade. Tais condições espaciais estão vinculadas a como a visibilidade é explorada politicamente pelos atores po­líticos de modo a obter capital político, isto é, o reconhecimen­to da legitimidade daquele indi­víduo para agir politicamente (Miguel, 2003).

31A visibilidade nos espaços políticos abertos atende a di­nâmicas particulares. Cada um deles apresenta um regime de visibilidade distinto, nos in­formando assim « o que deve ser visível, como aquilo que é visto deve ser entendido e, si­multaneamente, o que não me­rece ser visto » (idem, p.52), uma vez que « o tipo de espaço, o lugar ocupado, a rede de re­lações dessa posição, tudo isso age como critérios que guiam o olhar e o interesse e conferem diferentes graus de visibilidade às coisas » (Gomes, 2013, p.55). Sendo assim, para cada tipo de espaço político, diferentes estratégias serão criadas para melhor explorar a visibilidade destes espaços.

32A visibilidade nos espaços políticos abertos não está re­lacionada a um espaço especí­fico, mas é fruto de escolhas. Essa escolha não é aleatória, mas direcionada pelas estraté­gias dos manifestantes em con­quistar o maior capital político através da sua reivindicação, e com isso influenciar a compo­sição da agenda política deli­berada pelos espaços políticos exclusivos. Dessa forma, para uma « manifestação », ou seja, « o conjunto de pessoas que se reúne em um lugar público para defender e tornar conhecidos seus pontos de vistas, suas opi­niões » (Houaiss; Villar, 2009, p.132), esses interesses serão mais conhecidos quanto mais visibilidade alcançarem.

33Os espaços políticos aber­tos, por serem criados através da transfiguração política mo­mentânea de um espaço púbico, devem ser entendidos no con­texto da estratégia de pressão política elaborada pelos grupos manifestantes. A magnitude e o alcance da visibilidade nes­tes espaços políticos parte de um conjunto de escolhas guia­das por fatores espaciais. Neste caso, pela visibilidade ser ex­plorada através de uma inten­cionalidade política, os seus elementos principais (morfo­logia do sítio, existência de um público e produção de uma narrativa) são utilizados de for­ma diferente. Diante disso, as cidades apresentam, por meio dos espaços públicos, grandes cenários urbanos disponíveis às manifestações (Tonkiss, 2005).

34Um dos fatores que condi­ciona a escolha dos espaços para a manifestação diz respei­to à sua materialidade. Neste fator, a morfologia do espaço físico está associada à sua aces­sibilidade. Além de ser capaz de garantir a convergência de olhares e a captura da atenção, é essencial que estes espaços apresentem um tamanho ade­quado para comportar o núme­ro de manifestantes e que não apresentem significativos obs­táculos (elementos do mobili­ário urbano, como bancos, mo­numentos, grades, muros etc.) à sua ocupação e às performan­ces políticas dos manifestantes (passeata, ocupação, encena­ções etc.). Além disso, a aces­sibilidade implica na facilidade de acesso dos manifestantes a estes lugares. Segundo Azeve­do (2016), há duas forças prin­cipais quanto a este aspecto, que são a posição espacial do espaço político e a centralida­de na relação com o transporte público. A posição espacial do espaço político não é absoluta, ou seja, não é apenas uma co­ordenada geográfica, mas sim a relação entre a localização deste espaço com o território e os indivíduos interessados em participar da manifestação. En­quanto isso, a centralidade na relação com o transporte públi­co está relacionada à existência de uma boa infraestrutura de transporte.

35Da mesma forma, a produ­ção de narrativas é fundamen­tal para que se crie um sentido à ocupação política dos espaços. Dois fatores estão associados: o simbolismo e as performances dos manifestantes. O simbolis­mo enquanto fator de visibili­dade liga-se tanto ao tamanho em número de pessoas de uma manifestação quanto a impor­tância simbólica do lugar onde ocorrerá a manifestação. O ta­manho em números de pessoas é um fator simbólico, porque seu sentido é mais representa­cional do que absoluto, isto é, o quantitativo de manifestantes não representa o total daque­les afetados pelo problema ex­posto, mas apenas aqueles que se mobilizaram politicamente para solucioná-lo. Nesse senti­do, como argumenta Parkinson (2012), o número de pessoas em uma manifestação importa, pois quanto mais pessoas ade­rem a uma manifestação, maior será o impacto sobre a escala de descontentamento popular e a significância de uma demanda da sociedade. Contudo, o sim­bolismo presente no número de pessoas está sujeito ao efeito de realce que é produzido a partir das dimensões do lugar onde ocorrem as manifestações. En­tre o contingente de manifes­tantes e o lugar pode haver um contraste positivo ou negativo, ou seja, uma manifestação mui­to grande em um lugar de gran­des dimensões causa um con­traste positivo, enquanto uma manifestação pequena no mes­mo espaço de mesmas dimen­sões pode causar um contraste negativo ao aludir a uma falta de mobilização deste grupo e/ou da pouca relevância social e política do problema expresso pela manifestação. Esse efeito, portanto, pode resultar em uma visibilidade ou não para aque­les interesses expostos nestes espaços.

36O simbolismo dos lugares de ocorrência das manifesta­ções também é um elemento importante para a visibilidade. Estes espaços apresentam for­mas simbólicas impregnadas de significados diversos, dentre os quais significados políticos (Corrêa, 2012). A presença nes­tes lugares simbólicos é fun­damental para alcançar maior exposição pública, pois são es­paços que naturalmente atraem maior atenção, sendo, com isso, significativos para a construção das narrativas pelas manifes­tações tanto por atribuir-lhes significados quanto por « dignificá-los », ou seja, por serem levados a sério pela esfera pú­blica (Parkinson, 2012).

37Estas formas simbólicas po­dem consistir em lugares e iti­nerários (Corrêa, 2012), poden­do ou não estarem integradas em uma mesma manifestação. Desse modo, a estratégia que define a escolha dos lugares e dos trajetos das manifestações não considera apenas o critério da materialidade destes espa­ços, mas também a melhor for­ma de conciliar o maior nível de exposição com a narrativa através do aproveitamento do seu poder simbólico.

38Além disso, as manifesta­ções, ao mesmo tempo que se aproveitam da visibilidade que provém de seus simbolismos, ajudam também na significação e ressignificação destes luga­res e itinerários. Esse processo pode assumir diferentes senti­dos, de forma isolada ou com­binada. A (re)significação pode incidir no valor imanente destes espaços, por exemplo, quando ruas e praças que simbolizam o poder público são ressignifi­cadas por manifestações que o contestem, ou quando praias, que são espaços de entrete­nimento, são ressignificadas através da fixação de diversas cruzes simbolizando casos de violência extrema. Outra for­ma de incidência é a a mudança da composição da paisagem de forma pontual, quando ocorre a mudança efêmera da paisagem, ou prolongada, quando o pro­testo se materializa no espaço, corporificando simbolicamente o protesto e, ao mesmo tempo, imprimindo a contestação na paisagem. Nestes dois sentidos apresentados, os lugares e itinerários simbólicos através das manifestações assumem significado eminentemente político, que o diferenciam, mesmo que temporariamente, dos seus significados cotidianos.

39Junto ao simbolismo, a per­formance dos manifestantes é um fator também relacionado à produção das narrativas no es­paço. As cenas políticas cons­truídas nestes lugares têm como um de seus componentes a tea­tralidade, cujas ações perfor­máticas fazem parte do próprio ritual que compõe as manifes­tações e, em última análise, do seu processo de comunicação política. Para isso, como argu­menta Gomes (2013), o palco, ou seja, o lugar físico, e o enre­do dentro dos quais um objeto é exibido são elementos estru­turantes da visibilidade provida pelo espaço, onde « aquilo que é exposto ou exibido se oferece ao olhar de um público, e esse público é convidado a produzir julgamentos e compreensões » (Gomes, 2013, p.116).

42Diante disso, os lugares e iti­nerários simbólicos fazem par­te de uma guerra de narrativas e disputa pela demarcação sim­bólica entre os diferentes atores que ocupam esses espaços, em­bora isso não ocorra de forma absoluta. Assim, em um mesmo espaço físico podem ser cons­truídas duas narrativas diferen­tes, como podemos observar na figura 4 a seguir:

43No espaço político aberto, a ideia do público inerente à visi­bilidade nestes espaços também dever ser entendido sob a exis­tência de um público interno e externo a ele. Na perspectiva interna, o público que as ma­nifestações objetivam atrair é tanto aquelas pessoas presentes nos lugares de ocorrência do ato quanto os políticos que estão nos espaços políticos das As­sembleias, caso a manifestação tenha como intenção pressioná-los no momento em que participam das deliberações. Por ou­tro lado, as manifestações têm também como objetivo influenciar a opinião pública como um todo, público que se encontra externo a estes espaços. E, para isso, busca-se obter maior expo­sição midiática e, consequente­mente, maior repercussão pú­blica das suas reivindicações. As formas de exploração da visibilidade conferida pelas mí­dias são variadas, da qual seu modus faciendi é a elaboração de um evento que gere notícias, isto é, que seja significante, in­comum, narrável e notável para o público alvo que acompanha as notícias destas mídias (Iyengar; Kinder, 1987 apud Parkin­son, 2012, p.69). As estratégias para isso podem consistir em uma encenação e performance impactante e provocadora, no aproveitamento da exposição de algum evento importante, na ocupação de algum espaço de elevado simbolismo, e, também, através de condutas violentas.

44Todavia, embora o espaço dê visibilidade ao fenômeno político, nem todos os espaços possuem o mesmo potencial de visibilidade. Como desta­cam Parkinson (2012) e Gomes (2013), há espaços com maior centralidade (urbana, simbólica, política etc.) e notoriedade que possuem maior alcance e mag­nitude em sua visibilidade e, consequentemente, uma audiên­cia ampliada aos grupos que os ocupam. Apesar disso, como vi­mos até agora, a escolha de um lugar e trajeto para se realizar a manifestação está condiciona­do às estratégias traçadas pelos grupos que as dirigem. Desse modo, a estratégia e, por conse­guinte, a escolha, associado aos fatores aqui trabalhados (mor­fologia do sítio, acessibilidade, simbolismo, performance), de­pendem do alvo, do tema, da narrativa e da escala do proble­ma gerador da manifestação

45Ao fazer o levantamento dos espaços políticos de ruas e praças, Oliveira (2015) mostra que há espaços privilegiados pelas manifestações, mas que isso não restringe a ocupação de outros espaços. O surgimento de novos espaços políticos em ruas e praças está orientado de acordo com o contexto no qual estes espaços se inserem. De acordo com o quadro 1, apesar de os espaços do centro do Rio de Janeiro (ALERJ, Igreja da Candelária, Cinelândia, av. Rio Branco e av. Presidente Var­gas), concentrarem os maiores volumes de manifestações, sen­do assim espaços privilegiados pelos manifestantes, a rua em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do estado do Rio de Janeiro, e a residência do então governador Sérgio Cabral, no bairro do Leblon, ambos localizados na Zona Sul da cidade, também despontam como espaços que concentram uma quantidade significativa de manifestações, mesmo estando geograficamente distantes. A quantidade expressiva de mani­festações no Palácio Guanabara e na residência do governador se explica pelo contexto polí­tico das manifestações neste momento: um dos principais alvos de insatisfação dos mani­festantes é o então governador do estado, Sérgio Cabral. Nesse sentido, como forma de pressio­ná-lo, parte das manifestações se concentrou na sede nestes dois lugares associados às suas figuras política e pessoal.

Considerações finais

46O campo da política não é um palco onde se encena a harmonização de interesses. É o campo onde são travadas disputas entre interesses di­vergentes. É espaço de luta, de tensão, e isso ocorre de forma diferente em cada espaço polí­tico. Os espaços políticos são animados por atores, que agem segundo uma intencionalidade política em busca de seus in­teresses e, diante disso, estão sujeitos aos diferentes condi­cionantes espaciais dispostos nestes espaços. Assim, cada espaço político possui elemen­tos estruturantes ligados tanto às suas naturezas político-ins­titucionais quanto ao arranjo espacial que o compõem.

47As condições espaciais destes espaços políticos in­fluenciam o comportamento, as estratégias, a forma de or­ganização espacial, em suma, as ações empreendidas a partir deste espaço. Neste sentido, o espaço é o recurso fundamen­tal para que os atores possam agir politicamente em prol da consecução de seus interesses. Para isso, os atores políticos buscam explorar estas condi­ções espaciais de modo a am­pliar seu capital político.

48Desse modo, nem destituído de importância através da figu­ra inerte e vazia de suporte às práticas sociais, nem confun­dido com sua concepção mais imaterial e ideal do constructo intelectual da esfera pública (Castro, 2017), vimos que os espaços políticos devem ser entendidos como espaços ao mesmo tempo material, ima­terial e intencional (Castro, 2012). Portanto, o espaço polí­tico é constituído por uma ma­terialidade, fundamental para o seu próprio funcionamento po­lítico; por uma imaterialidade, traduzida em um poder simbó­lico imanente, que se condi­cionam e se influenciam cons­tantemente; e, também, por uma intencionalidade, fundada pela ação política, na medida em que valores imateriais e a materialidade não são descola­dos das intenções pretendidas (Azevedo, 2016).

49De acordo com as caracte­rísticas dos espaços ocupados, os atores buscam alcançar um capital político mediante di­ferentes estratégias definidas em sua apropriação política. Assim, de acordo com as con­dições espaciais que se apre­sentam aos espaços políticos abertos, as estratégias elabora­das pelos grupos manifestantes são diversas, variando de acor­do com o tema da manifesta­ção, o número de pessoas e a narrativa a ser criada. Dessa forma, o espaço onde ocor­re a manifestação não é fruto de uma escolha aleatória, mas sim parte das estratégias dos grupos manifestantes e, conse­quentemente, do resultado da combinação de diferentes fato­res, dentre os quais fatores es­paciais, em que a visibilidade é o leitmotiv das ações empre­endidas nos espaços das ruas e praças ocupadas.

50A escolha dos lugares onde ocorrem as manifestações são dados fundamentais para en­tendê-las, sendo carregada de sentido. Tais espaços possuem atributos e condicionantes es­paciais que são levados em conta na hora de sua escolha para abrigar as decisões, deli­berações e, sobretudo, as ma­nifestações políticas. Sobre eles são construídas narrativas e onde diversos interesses dis­persos no meio social são assi­nalados, cujo espaço funciona como um instrumento político que forneça a base material e simbólica para a consecução destas ações e, por conseguin­te, a efetividade da pressão po­lítica exercida.

51Ruas e praças servem como mais um meio de se fazer polí­tica e influenciar as instituições políticas. Transformam-se em espaços políticos onde a so­ciedade civil pode se organizar politicamente, às vezes mais abrangente e acessível do que outros espaços, inclusive os espaços legislativos e de par­ticipação da sociedade civil. Podem ser a extensão de uma articulação feita em outros es­paços (sindicatos, instituições, grêmios etc) e também servir como mais um artifício políti­co para estes grupos, além dos que habitualmente possuem (ligação com representantes políticos, canais institucionais, Justiça etc). Em suma, ruas e praças, embora usualmente es­paços do convívio social, con­templam grande potencial para a ação política, estando abertos ao uso e organização diversos, tanto quanto forem os grupos e causas que as animem poli­ticamente.