Introdução: sons, política e espaços públicos

1Boa parte dos sons que ou­vimos em um espaço urbano, como o ronco de motores, o es­talo de um galho ou os ruídos ferroviários, são apenas resí­duos de determinadas ativida­des mecânicas. A outra parte é composta por emissões sono­ras destinadas à comunicação, como as buzinas dos carros e os anúncios de ambulantes. Juntas, formam uma composição sono­ra, cacofônica e involuntária, presente na maioria das gran­des cidades, que é percebida, em maior ou menor grau, por qualquer um dos seus citadinos.

2À medida que uma cidade cresce, multiplicam-se as fontes sonoras. Novos aparelhos ele­trônicos circulando, a intensifi­cação do tráfego e a diversifica­ção de tipos de uso do solo são exemplos de transformações que adicionam novos timbres e ritmos à sonoridade urbana. Junto dessas transformações, crescem também as queixas pú­blicas relacionadas ao ruído.

5No Brasil, instituições públi­cas e setores do governo, em vários níveis, adotam normas para gerenciar os conflitos derivados do excesso de barulho, muitas delas conhecidas como « leis do silêncio ». Na cidade de São Paulo, o Programa de Silêncio Urbano (PSIU - Lei 15.133) fis­caliza locais confinados, como bares, boates e restaurantes, mas não vistoria festas domés­ticas, apartamentos e condo­mínios. Em Belo Horizonte, o Programa Disque Sossego é destinado ao registro de recla­mações sobre estabelecimen­tos comerciais barulhentos. No Rio de Janeiro, a Lei Estadual n° 126, de 10 de maio de 1977, « dispõe sobre a proteção contra a poluição sonora » e considera infração « a produção de ruído, como tal entendido o som puro ou mistura de sons, com dois ou mais tons, capaz de prejudicar a saúde, a segurança ou o sossego públicos » (artigo 1º).

8Os exemplos citados ilustram como o som urbano pode assumir um papel importante na discussão a respeito das formas de uso e ocupação dos espaços públicos. Propagando-se de forma omnidirecional, o som não obedece aos limites estabe­lecidos socialmente entre a rua e a casa, podendo « tirar o sossego » de moradores ou « causar[-lhes] incômodo ». Dessa forma, canais de denúncia, cartilhas didáticas, normatizações e res­trições de uso do espaço urbano são exemplos de ações do Esta­do tomadas no sentido de redu­zir os conflitos relacionados ao som, muitos deles polarizados pelo binômio espaço público e espaço privado.

9No entanto, a discussão so­bre as relações existentes entre sons, política e espaços públi­cos ganha ainda mais corpo quando não nos restringimos apenas às ações do Estado e à política institucional, mas aten­tamos também para o conjunto de negociações, disputas e re­gras, tácitas ou explícitas, que orientam a vida cotidiana das cidades e condicionam os usos e ocupações dos espaços públi­cos. Neste trabalho, pretende­mos analisar qual é o papel que o som assume nessa geografia política dos espaços públicos.

10Duas questões convergem com esse tipo de abordagem e são elas que fundam a discus­são aqui apresentada: que tipos de ordem espacial emergem dos usos presentes nos espaços públicos? Qual é o papel das negociações situadas na confor­mação dessa ordem? Para con­duzir essa discussão e apontar respostas para essas questões, apresento duas chaves analíti­cas: a noção de ponto de escuta e o conceito de paisagem sono­ra.

Ponto de escuta, composição e paisagens sonoras

11Gomes (2013), para abordar as relações existentes entre es­pacialidade e visibilidade, fez uso de três expressões frequen­temente utilizadas nos discursos sobre as artes visuais: ponto de vista, composição e exposição. Argumenta o autor que tais no­ções possuem um fundamento posicional e, portanto, espacial, geográfico. As duas primeiras nos interessam aqui.

12Na concepção de Gomes, ponto de vista, para além do sentido metafórico, refere-se aos lugares que oferecem uma visão panorâmica, de onde se pode observar uma paisagem, por exemplo. O « ponto », nesse caso, indica um lugar determi­nado, uma posição da qual po­demos ver algo que não vería­mos se estivéssemos situados em outra posição qualquer. A expressão estabelece, portanto, uma relação direta entre o ob­servador e aquilo que está sendo observado. O ponto de vista é, portanto, um dispositivo espa­cial (posicional) que nos per­mite ver certas coisas (Gomes, 2013, p. 19).

13Analogamente, podemos pensar nas ideias de ponto de audição ou, mais precisamente, ponto de escuta. O argumento fundamental é que aquilo que ouvimos é, assim como aquilo que vemos, resultado também de um jogo de posições, com­posto por quem ouve e o que é ouvido. Em diferentes situações, buscamos, de forma intuitiva ou deliberada, nos posicionar de forma a ouvir ou a não ouvir de­terminados tipos de fontes so­noras. Ao assumirmos uma po­sição, não estamos construindo apenas um campo de observa­ção, mas também um campo de audição. O que ouvimos tem re­lação direto com onde estamos. Ao caminhar da entrada para o interior de um parque público, por exemplo, estamos deslocan­do o nosso ponto de escuta ao longo de uma trajetória e pode­mos passar, em poucos metros, de um ambiente marcado pelo som cacofônico de ambulantes, transeuntes e automóveis, para um outro, onde predominam os cantos dos pássaros e o farfalhar das folhas das árvores.

14A noção de ponto de escuta é importante na discussão sobre sons, política e espaços públicos pois destaca a relação existente entre « onde estamos » e « o que ouvimos », algo fundamental quando vamos analisar o papel atribuído ao som nas formas de ocupação desses espaços.

15A composição, por sua vez, seria um conjunto estruturado de formas, cores e coisas. Go­mes (2013) a define como sendo o resultado de uma combinação que produz algo novo, forma­do pela junção estruturada de diversos elementos. Sob essa perspectiva, a paisagem pode ser entendida, também, como uma composição. Formas de re­levo, diferentes tipos de cobertu­ra vegetal, ocupação das terras, entre muitos outros elementos, se associam de maneira original e configuram uma paisagem. E, argumenta Gomes, um aspecto fundamental da paisagem, en­tendida como uma composição, é o jogo de posições, ou seja, a forma de dispersão das formas que, integradas, dão origem a um novo arranjo espacial. Essa espacialidade, isto é, esse « padrão de dispersão », é a marca de uma composição (Gomes, 2013, p. 21-22).

16O mesmo termo, composi­ção, pode se referir também a um conjunto estruturado de sons e silêncios que, combinados, produzem um novo arranjo. Isso parece óbvio quando pensamos em uma música, resultado do trabalho de um compositor. Mas podemos falar, também, do con­junto de sons ouvidos em de­terminado ambiente como uma composição, como o resultado da combinação de elementos que se associam de maneira ori­ginal. Não por acaso, o conceito de paisagem sonora (do inglês, soundscape) (Schafer, 2011) vem sendo utilizado na literatu­ra para se referir a esse tipo de « composição ».

(...) qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O ter­mo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composi­ções musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente (Schafer, 2011, p. 366).

18Apesar das críticas (Ingold, 2007; Kelman, 2010), acredita­mos que o conceito de paisagem sonora possui um importante papel operacional, na medida que destaca um registro senso­rial que é usualmente negligen­ciado em relação à visão. Além disso, permite pensarmos os sons presentes em um ambien­te como um conjunto, de forma articulada, como o resultado de uma combinação, em suma, como uma « composição ».

19Desse modo, a noção de ponto de escuta e o conceito de paisagem sonora serão im­portantes guias para a inves­tigação apresentada na última parte deste texto. Antes, ainda, precisamos responder algumas questões de cunho metodológi­co: como operacionalizar uma pesquisa interessada nos sons urbanos? Que ferramentas me­todológicas a Geografia dispõe para coletar e analisar esse tipo de informação? Gostaríamos de propor, aqui, um método inspi­rado nos mesmos autores que desenvolveram o arcabouço te­órico em torno do conceito de paisagem sonora. Passemos, agora, a este debate.

Caminhadas de escuta e observação

20A prática das caminhadas sonoras (do inglês, soundwalks) foi desenvolvida no âmbito do World Soundscape Project (WSP), grupo de pesquisa de ecologia acústica formado por Murray Schafer e seus colegas da Simon Fraser University no final da década de 1960. Hidelgard Westerkamp (2001) definiu a caminhada sonora como sendo uma excursão cujo propósito principal consiste em escutar o ambiente. Na proposta original apresentada pela autora, perguntas como « quais sons eu ouço? » e « quantas fontes sonoras diferentes eu identifico? » orientariam a nossa escuta durante a caminhada. Ou seja, a atividade surgiu associada a uma função didática, com o propósito de educar a escuta e permitir uma percepção mais consciente dos ambientes sonoros ou, nas palavras de Westerkamp (2001), « redescobrir e reativar a nossa capacidade de escuta ».

21Apesar de aparecer, inicial­mente, como prática pedagó­gica, esse método vem sendo adaptado e utilizado por pes­quisadores com diferentes en­foques investigativos. Uma ca­minhada sonora pode significar, por exemplo, um passeio onde os participantes estão equipados de aparelhos de MP3 para ouvir determinadas faixas de áudio pré-gravadas enquanto cami­nham. Na Geografia, Butler (2006, 2007) elaborou passeios sonoros com gravações conten­do a história oral de duas rotas ao longo do rio Tâmisa, em Londres, o que demonstra o potencial que esta prática possui na discussão sobre história ur­bana e memória local.

22Já Adams et al. (2006) con­duziram caminhadas sonoras com 34 pessoas na cidade de Londres, durante o verão e o inverno. Na atividade, os par­ticipantes escolheram uma rota e, após uma caminhada de dez minutos, eram entrevistados a respeito das suas experiências. O resultado da pesquisa mos­trou como elementos não-acús­ticos, tais como a memória de experiências passadas, podem influenciar a avaliação que as pessoas fazem dos sons que ouviram, destacando a impor­tância das avaliações subjetivas para orientar o planejamento urbano e as políticas de redução de ruído.

23Outro exemplo é o trabalho de Catherine Sémidor (2006). A autora utiliza o método de uma forma diferente dos estudos descritos acima e bem próxima da experiência que apresentare­mos aqui: ao invés de conduzir participantes ao longo de uma rota escolhida em uma área ur­bana, ela mesmo, utilizando um par de microfones binaurais, registrou os sons encontrados ao longo do percurso.

25No estudo de Semidor (2006), as faixas de áudio re­sultantes das gravações foram transformadas em duas imagens bidimensionais, uma para o ou­vido esquerdo e outra para o di­reito. As imagens indicavam as variações de certos parâmetros, como frequência e intensidade do som, registrados ao longo do percurso que a autora realizou na cidade de Barcelona. Asso­ciando a análise das imagens, das anotações e das fotografias também produzidas durante suas caminhadas, a autora pode avaliar como aspectos da mor­fologia urbana, como a altura das edificações e a larguras das ruas, afetam a acústica e, con­sequentemente, a forma como percebemos a paisagem sonora local.

27Para isso, realizamos um trabalho de campo no Largo da Carioca, situado na área central da cidade do Rio de Janeiro, em novembro de 2017. O trabalho de campo foi dividido em duas etapas principais. Primeiro, foi realizada uma caminhada livre pelo logradouro, com o objeti­vo de identificar, mapear e fo­tografar as principais atividades ali presentes e as morfologias a elas associadas. Por atividades, estamos nos referindo tanto ao comércio formal e informal, às performances artísticas, à circu­lação, à espera, enfim, a todos os usos associados àquele espaço público. Quanto à morfologia, procuramos identificar tanto os equipamentos e materiais utili­zados nessas atividades, quanto as formas, como filas e rodas, que essas atividades assumem e mobilizam. Também nesta etapa, dada a natureza desta in­vestigação, identificamos a uti­lização de recursos sonoros nas atividades observadas e entre­vistamos os responsáveis pelas mesmas.

28Na segunda etapa, após iden­tificados os padrões espaciais das atividades presentes no Largo da Carioca, foi realizada uma nova caminhada seguindo uma trajetória orientada pelas observações levantadas na eta­pa anterior. Dessa vez, os di­versos sons escutados ao longo do trajeto foram registrados em áudio. O registro foi realizado com o uso de um gravador digi­tal modelo ZOOM H1 e um par de microfones binaurais modelo Roland CS-10EM. Trata-se de um equipamento de dimensões reduzidas, semelhante a um MP3 player, que permite cami­nhar e registrar o som ambiente com discrição.

29Nas páginas que seguem, são apresentadas as observa­ções feitas in loco e as ponde­rações resultantes da análise do material coletado. Não é nosso objetivo realizar uma descrição minuciosa dos padrões espa­ciais das atividades observadas em campo e, por isso, daremos atenção aos aspectos observa­dos que são relevantes para o objeto central deste trabalho, a saber, as relações entre som, política e espaços públicos. Par­te das fotografias e o áudio re­gistrados em campo aparecem ao longo do texto, ilustrando a descrição e ancorando empiri­camente a análise.

Caminhadas de escuta e observação

30O Largo da Carioca é ladeado por vias de grande centralidade na malha urbana do Rio de Janeiro, como a Rua da Carioca, a Avenida República do Chile e a Avenida Rio Branco. Além disso, possui três saídas de Metrô, uma para cada uma das ruas citadas e é rodeado por edifícios comerciais (Shopping Avenida Central), sedes de órgãos públicos (BNDES) e centros culturais (Conjunto Cultural da Caixa). Dada essa situação espacial, o largo constitui um importante ponto de chegada e saída da área central da cidade, e abriga parte importante dos deslocamentos realizados pelas pessoas no Centro.

31Pelo Largo da Carioca pas­sam pessoas indo para o tra­balho, voltando da faculdade, chegando no escritório, corren­do atrás do ônibus, passeando depois do almoço, enfim, cum­prindo os seus roteiros e cru­zando essa área em diferentes trajetórias. Ou seja, o Largo tem importante papel na circulação de pessoas na área central, sen­do essa uma das primeiras ati­vidades identificáveis naquele espaço.

32Como se trata de uma área ampla, sem demarcações ou si­nalizações que orientem os flu­xos, os desenhos traçados pelas pessoas em trânsito parecem, à primeira vista, variar tanto quanto suas rotinas individuais. No entanto, é possível observar determinados padrões de deslo­camento. As saídas da estação de metrô, por exemplo, são evi­dentes pontos de convergência para alguns desses fluxos, assim como a entrada dos prédios co­merciais próximos. E, em meio a tantas trajetórias realizadas pelas pessoas que passam pelo Largo da Carioca, identificamos uma que é descrita por muitos passantes, e que inclui o trecho que conecta a Rua da Carioca à Avenida República do Chile. O uso contínuo desse mesmo caminho por diferentes pessoas forma uma espécie de corredor, que emerge, aparentemente, de forma espontânea. Esse corre­dor fica ainda mais destacado quando observamos o padrão de distribuição espacial de uma outra importante atividade de­senvolvida no local: o comércio informal.

33Ao longo do trecho que une as duas ruas citadas, concentra-se uma grande quantidade de camelôs. Ainda que tantos outros estejam distribuídos por todo o Largo da Carioca, é pos­sível identificar a formação de pelo menos duas fileiras de co­merciantes balizando o fluxo de pessoas que mencionamos acima. Vemos nesse caso a for­mação de um padrão espacial oriundo da combinação des­sas duas atividades. Ao mesmo tempo que a disposição espacial de parte do comércio está orien­tada pela circulação de uma po­tencial clientela, esse fluxo de pessoas também é, por sua vez, orientado pelas fileiras forma­das pelos comerciantes, já que estes, estabelecidos em pontos fixos naquele espaço, configu­ram-se como barreiras físicas à circulação.

34Os produtos comercializa­dos pelos camelôs no Largo da Carioca variam bastante, assim como a morfologia dessas ocu­pações. Os vendedores utili­zam diferentes tipos de equipa­mentos e materiais para montar seus pontos de venda, além de diferentes formas de expor seus produtos. Mochilas e sacolas são dispostas em lonas de plás­tico abertas sobre o chão, ge­ralmente recheadas de jornal, de modo a destacar o volume que elas comportam. Óculos, brinquedos e eletrônicos são apresentados em fileiras sobre placas de isopor apoiadas em caixotes de madeira e papelão. Já bebidas, doces e salgados demandam equipamentos pró­prios para a sua comercializa­ção, como isopores e carroci­nhas móveis.

35Com exceção de uma bar­raca de acarajé, cuja estrutura demanda uma montagem mais demorada e uma área mais am­pla, a maioria dos pontos co­merciais utiliza poucos recur­sos materiais e conta com uma estrutura bem simples, como os exemplos citados no parágrafo anterior ilustram. No entanto, a utilização de materiais como lonas de plástico, isopor e pa­pelão para a montagem de uma bancada improvisada não deno­ta simplesmente a falta de re­cursos desses comerciantes. A escolha desses materiais é tam­bém resultado da necessidade de estabelecer um ponto com pouca fixidez, com uma estru­tura que possa ser facilmente desmontável, em caso de chu­va ou de conflito com a guar­da municipal. Trata-se de uma estratégia espacial necessária para a manutenção da própria atividade.

36Outras estratégias, ligadas mais à localização das ativida­des do que à morfologia das mesmas, também foram observadas nessa caminhada pelo Largo da Carioca. Alguns dos comerciantes, por exemplo, percebendo a formação do cor­redor de transeuntes mencio­nado anteriormente, dispõem as suas mercadorias em um sentido transversal ao fluxo de pessoas. Seu ponto de venda passa a ser um obstáculo físico à principal trajetória assumida por aqueles que por ali passam, obrigando as pessoas a notar a sua presença e aumentando a exposição da sua mercadoria à possível clientela.

37Observa-se ainda outra es­tratégia, utilizada tanto pelo comércio formal quanto pelo informal, que merece uma aná­lise mais detalhada. Dentre as dezenas de pontos comerciais observados no Largo da Cario­ca durante o trabalho de campo, duas bancas de jornal, um ven­dedor de ervas, um trompetista e um vendedor de flautas eram os únicos que empregavam re­cursos sonoros como estratégia de exposição dos produtos.

38Neste ponto da nossa expo­sição, gostaríamos de pedir ao leitor que escute a gravação realizada durante o trabalho de campo. Se possível, utilizando fones de ouvido. Ela pode ser acessada através do link https://goo.gl/​UKq1wK. Como indica o mapa abaixo, a gravação foi realizada durante uma caminhada pelo Largo da Carioca, com início na Rua da Carioca e terminando na Avenida República do Chile, seguindo o fluxo de pessoas observado na primeira etapa do trabalho de campo.

39Quando iniciamos a audi­ção da gravação, os primeiros sons identificáveis provêm do tráfego de automóveis. Escu­tamos, ao fundo, o som grave e contínuo do motor dos car­ros, cortado pelo som agudo da freada de um ônibus. Ou­tros sons mecânicos, não tão facilmente individualizáveis, combinam-se em uma compo­sição que forma uma espécie de fundo sonoro comum a di­ferentes cidades.

40Com poucos passos cami­nhados, os sons dos veículos vão sendo sobrepostos pelo diálogo entre um homem e uma mulher. A conversa ver­sa sobre a história da Rua do Ouvidor e, por sua cadência, fica claro tratar-se de um diá­logo ensaiado. O diálogo, en­tretanto, não acontece naque­le momento. Ele foi gravado e está sendo transmitido por uma caixa de som posicionada no alto de um poste, no limite entre a última loja da Rua da Carioca e o Largo. Trata-se da Rádio SARCA, uma difusora local que possui alto-falantes distribuídos em vias adjacen­tes à Rua Carioca, e que trans­mite propagandas das lojas da área, além de pequenas vinhetas sobre curiosidades e infor­mes gerais.

41A caminhada continua e, conforme afastamos nosso ponto de escuta do alto-fa­lante, o diálogo vai perden­do volume até desaparecer da paisagem sonora. Sons de carros e pequenos trechos de conversas são ouvidos de ma­neira embaralhada enquanto, gradativamente, o som ritma­do de instrumentos musicais começa a ganhar destaque. O toque percussivo de um pan­deiro é facilmente identificá­vel, mas, novamente, trata-se de uma reprodução nas caixas de som de uma banca de jor­nal tocando os DVDs ali co­mercializados.

42Quando chegamos a 01m16s de áudio, começamos a ouvir o primeiro comerciante informal que utiliza o som como recur­so publicitário. Uma voz ainda baixa começa a ser ouvida e, conforme nos aproximamos da sua fonte, enfileirada aos ou­tros camelôs que ladeavam essa caminhada, as palavras vão ganhando forma e se tornam inteligíveis. Nesse ponto do percurso, ainda não era possí­vel discernir o protagonista do monólogo, apenas seu sotaque, diferente do acento habitual dos cariocas, e o forte tom de deboche em sua voz. A vista era bloqueada por um grupo de pessoas que, formando um semicírculo à frente do perso­nagem, ouviam suas histórias, piadas e os supostos benefícios dos seus produtos. Tratava-se de um bem-humorado vendedor de ervas.

43Quando nos aproximamos do arco formado por sua fre­guesia, as palavras do vende­dor já soam com total clareza. Sua voz sai de uma pequena caixa portátil, que amplifica o som captado pelo micro­fone preso ao seu pescoço. As ervas estão distribuídas em sacos abertos sobre uma pequena banca improvisada, identificadas por nomes es­critos em pedaços de pape­lão cortado. A plateia parece, no entanto, mais interessada na performance do que nos produtos comercializados. O vendedor gesticula, faz care­tas, maçaroca uma erva, bate com um martelo na bancada e arranca risadas do grupo que o cerca.

44Praticamente não há silên­cio na sua performance: uma história de vida é emendada em uma reclamação sobre a economia do país, que desem­boca em uma piada antiga e, em seguida, em um informe sobre os benefícios das er­vas. O silêncio dispersaria o arco e a presença das pessoas é importante para despertar a curiosidade dos passantes.

45Além do talento performáti­co, o vendedor de ervas parece ter outra habilidade bem de­senvolvida. Escutando o trecho do áudio que vai de 01m00s a 02m30s, é possível perceber que a banca de ervas está situ­ada em um ponto ótimo para a performance. Ao longo do tre­cho citado, só começamos a ou­vir a voz do vendedor em um momento da caminhada no qual a música da primeira banca de jornal já se dissipou na paisa­gem sonora. Da mesma forma, conforme passamos pelo ven­dedor e seguimos nosso percur­so, só passamos a ouvir música da segunda banca quando a voz do comerciante já é praticamen­te indistinguível. Além de estar próximo ao fluxo principal de transeuntes no Largo da Cario­ca, ele está posicionado em um ponto onde as músicas tocadas em alto volume pelas duas ban­cas de jornal não conflitam com o seu modesto equipamento de som. Sua posição, portanto, pa­rece ser resultado de um cálculo territorial modulado pela neces­sidade de ser ouvido e de não entrar em conflito com outros pontos comerciais que também fazem uso de recursos sonoros.

46Obviamente, este é apenas um dos fatores que vão modular o jogo de posições do comércio informal em um espaço públi­co. Mas, em um lugar disputa­do como o Largo da Carioca, comerciantes, artistas e prega­dores religiosos que utilizam o som como recurso precisam realizar uma espécie de mapea­mento sonoro da área. Durante o trabalho de campo, pudemos ver isso acontecendo.

47Na primeira caminhada pelo Largo, observamos que havia um rapaz na plateia formada pelo vendedor de ervas, carre­gando um saxofone guardado em um estojo nas costas. Du­rante a primeira caminhada pelo Largo, quando mapeamos as formas de ocupação ali presen­tes, cruzamos outras vezes com o mesmo rapaz que, adotando um método semelhante ao nosso, intercalava sua caminha­da com pausas para observação. Ele também estava atento ao que via e ao que ouvia.

48O rapaz, conhecido como Naldo, é trompetista freelan­cer e artista de rua. No mo­mento em que foi realizada a gravação em campo, ele já havia escolhido um local para realizar sua performance e es­tava posicionado na margem esquerda do fluxo principal de transeuntes, poucos me­tros após a segunda banca de jornal identificada no nosso percurso. À sua frente, o es­tojo do saxofone fica aberto com um convite àqueles que quiserem deixar uma contri­buição pela performance. No Largo da Carioca, ele execu­ta um repertório formado por clássicos da música brasileira, assim como temas de sucesso internacional. Uma seleção de músicas famosas o sufi­ciente para serem reconheci­das em poucas notas, mesmo por quem passa apressado pelo Largo. É o que acontece quando, por volta de 02m40s de áudio, começamos a ouvir um trecho de Garota de Ipane­ma, de Tom Jobim e Vinícius de Morais.

49Depois de realizar a grava­ção, pedi para conversar com o Naldo. Expliquei a ele o mo­tivo da minha ida ao Largo da Carioca naquele dia e fiz a ele uma pergunta apenas: como você faz para escolher o ponto onde vai ficar? A sua respos­ta converge com algumas das impressões que já que expuse­mos neste texto: « Eu dou uma olhada no ambiente, né? Eu observei que a barraca [referindo-se à banca de jornal] tá com som, o rapaz tá falando com o microfone lá em cima e tem um senhorzinho tocando flauta lá embaixo. Então, eu dei uma passada e falei: vou parar exatamente aqui. Porque tá um pouco afastado da barraca, não atrapalha a barraca e eu fico tranquilo. E aqui é passagem de pessoas ».

50A posição escolhida por Naldo, no entanto, não está totalmente fora do alcance da música tocada na banca-de­-jornal. É possível perceber no trecho que vai de 02m35s a 02m42s do áudio a existência de uma área entre a banca-de­-jornal e o trompetista onde as músicas aparecem sobrepos­tas, sem que uma se destaque muito mais do que a outra. Diferentemente do vendedor de ervas, instalado no Largo desde cedo, Naldo deu início à sua performance já na parte da tarde, quando o comércio informal já ocupava uma área considerável daquele espa­ço, dando a ele menos opções para se posicionar.

51Conforme nos afastamos do trompetista, outros sons voltam a se tornar mais perceptíveis. Com 02m50s de áudio já é possível ouvir a percussão dos calçados no chão e perceber o ritmo com que as pessoas caminham pelo Largo. Trechos de conversas, ouvidas em distâncias e posições diferentes, aparecem e desapa­recem rapidamente conforme passamos por casais e grupos de amigos. E, conforme vamos aproximando o nosso ponto de escuta da Avenida República do Chile, novamente uma camada formada por sons mecânicos de veículos vai ganhando volume. Ao mesmo tempo, um som agu­do, melodioso e ritmado vai se destacando aos poucos, tornan­do-se mais figura do que fundo na paisagem sonora. Na extremi­dade final da caminhada, há um vendedor de flautas.

52Ele está posicionado de costas para o Largo da Carioca e de frente para a Avenida República do Chile. Trata-se de uma posição estratégica pois, assim, seus produtos estão expostos tanto para as pessoas que transitam da Avenida em direção ao Largo, quanto para aquelas que seguem pela calçada, passando transversalmente pelo comerciante.

53O vendedor de flautas utiliza poucos equipamentos e recur­sos visuais para dar suporte à sua atividade. As flautas estão dispostas sobre um pequeno suporte dobrável de madeira, também de aspecto artesanal. Abaixo do suporte está a sua mochila, na qual ele carrega o resto do material ao final do dia. A boa exposição dos seus pro­dutos ao público está ancorada em outros dois fatores: a esco­lha de uma posição estratégica e a utilização de recursos sono­ros. No caso, a própria flauta.

54Com o suporte e os instru­mentos à sua frente, o vendedor vai revezando trechos de mú­sicas populares. O repertório executado pelo comerciante é facilmente identificável pelas pessoas que passam e algumas delas cantarolam junto com o flautista enquanto caminham. Algumas delas param para ob­servar, mas voltam ao seu ca­minho antes que se complete um minuto. Diferentemente do trompetista, não há nada na morfologia utilizada pelo ven­dedor que denote a expectativa de uma remuneração pela sua performance. O seu número musical tem outras funções, na verdade. A primeira, é apresen­tar aspectos da própria flauta, como o seu timbre, para poten­ciais clientes. A outra é aumen­tar a área de exposição do seu produto, já que a propagação do som garante que ele seja ouvi­do mesmo em pontos onde não pode ser visto.

55O áudio se encerra junto com a melodia do vendedor de flautas. Ela marca o fim da nossa caminhada, orientada pela trajetória principal das pessoas que circulam pelo Largo da Carioca. Fizemos o percurso em pouco mais de quatro minutos, mas a cada vez que ouvimos o áudio é possível descobrir novos sons que compõem a paisagem so­nora. Os sons emitidos per comerciantes e artistas de rua, no entanto, ganham destaque e re­velam alguns aspectos da dinâmica espacial dessas atividades.

Considerações finais

56O padrão de distribuição de usos e atividades nos espaços públicos é resultado da com­binação de fatores diversos. Normas municipais, acordos tácitos e a própria morfologia urbana, por exemplo, condi­cionam os arranjos formados pelas ocupações e pelos fluxos nas calçadas, praças, ruas e lar­gos de uma cidade. Neste tra­balho, procuramos evidenciar a importância do som nessa dinâmica, a partir da análise da distribuição de atividades cuja efetivação dependa de recur­sos sonoros. Esse é o caso de alguns camelôs e artistas de rua encontrados no Largo da Cario­ca.

57Os sons produzidos por es­sas atividades possuem um alcance determinado e am­plificam sua exposição. Esse alcance, no entanto, parece definir também uma certa terri­torialidade, condicionando um jogo de posições entre came­lôs, artistas de rua e outras ati­vidades que ocupam o Largo da Carioca. Não respeitar esse al­cance e esses limites, por mais abstratos e efêmeros que sejam, pode fazer com que o público tenha dificuldade de distinguir sons, mensagens, informações, ouvindo um som embolado e cacofônico, prejudicando a ex­posição das atividades interes­sadas. Ou seja, na medida que a efetivação dessas atividades de­pende da captura da atenção de possíveis clientes, elas vão se distribuir levando em conside­ração esse alcance, fazendo do som um importante elemento nessa espécie de geografia polí­tica dos espaços públicos.

58Essas reflexões são fruto de um exercício que visa ampliar a discussão sobre as relações existentes entre sons, políti­ca e espaços públicos. Nesse sentido, as noções de ponto de escuta e o método das caminha­das de escuta e observação são contribuições deste trabalho no sentido de destacar a importân­cia do som na dinâmica desses espaços. Para isso, optamos por uma abordagem focada no jogo político que condiciona os usos e ocupações de um espa­ço público. Outras abordagens são possíveis, outros métodos também. Há muito ainda para se ouvir na cidade.