Introdução

2Mais especificamente, bus­camos uma melhor compreen­são dos processos decisórios que se dão no âmbito de estru­turas participativas contempo­râneas, que se difundiram no Brasil ao longo dos anos 2000 e que resultam de processos de valorização de instâncias e canais participativos inaugura­dos pela Constituição de 1988 (RODRIGUES, 2010; 2013). Com efeito, o discurso da par­ticipação tem sido adotado como parte dos procedimentos que abrangem decisões sobre questões que tocam a vida em comum. Dessa maneira, cabe se debruçar sobre as dinâmi­cas desses novos espaços su­postamente capazes de afetar os processos de formulação e de implementação de políticas públicas em recortes territoriais particulares.

4O conceito apresenta, igual­mente, um caráter normativo, ou seja, um entendimento do­que precisa ser negociado e im­plementado. Daí se organizam arranjos político-territoriais em que representantes da sociedade civil ganham lugar e interagem com os representantes do poder público, no intuito de debater questões que tocam a vida em comum e a elaboração de po­líticas em recortes territoriais precisos. Tais processos rela­cionam-se com o conceito de espaço político, pois compreen­dem espaços destinados à arti­culação entre atores, agentes e instituições tendo em vista a re­solução de problemas comuns, a partir do estabelecimento de acordos e de decisões conjun­tas.

5Trata-se, portanto, de deba­tes que fazem alusão às estra­tégias de coordenação e a pro­cessos mais horizontalizados de negociação e de colaboração para a conformação de con­sensos. Enfim, novos arranjos e contornos da ação política territorial se delineiam: conse­lhos, associações, fóruns, con­sórcios, comitês e colegiados territoriais, entre muitos outros exemplos.

6Nesse bojo, diversas polí­ticas têm adotado um discurso de valorização da participação social e de sua inclusão nos processos decisórios. Tais ma­nifestações ressaltam que o de­senvolvimento pode ser alcan­çado a partir da sinergia entre territorialização de ações gover­namentais e a intensificação das interações entre distintos atores e agentes em um contexto terri­torial particular. Assim, espaços de interface Estado-sociedade civil têm ganhado notória re­levância, encadeando « formas de articulação do Estado com a sociedade, na qual se reconheça que o problema da administra­ção eficiente não pode ser dis­sociado do problema político, ou seja, do problema de garantir a operação democrática do Es­tado » (REIS, 2009, p.41).

7No contexto particular do meio rural brasileiro, pode-se fazer alusão a uma série de po­líticas sustentadas a partir dos preceitos anunciados. O Pro­grama Territórios da Cidadania (PTC), lançado em 2008 pelo Governo Federal, inseriu-se nessa proposta e, mais especi­ficamente, no Território Vale do Paranã, nordeste do estado de Goiás, estimulou a criação de um colegiado territorial e a produção de um Plano Territo­rial de Desenvolvimento Rural Sustentável - PTDRS. O obje­tivo do programa é « acelerar a superação da pobreza e das desigualdades sociais no meio rural, inclusive as de gênero, raça e etnia, por meio de estra­tégia de desenvolvimento terri­torial sustentável […] » (BRASIL, 2008, s.p.). O interesse do PTC está ainda em « promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas bá­sicos de cidadania » (BRASIL, 2009, p.3).

9Neste artigo, buscamos pro­blematizar a aplicabilidade do conceito de espaço político em um debate sobre a qualida­de da participação social e das interações entre poder público e sociedade em instâncias de­cisórias e recortes territoriais particulares. Para tanto, elegemos como objeto de estudo o colegiado do Território da Cida­dania Vale do Paranã, em Goi­ás. O Vale do Paranã foi marca­do por processos históricos que o diferenciaram do restante do território goiano, tornando-se um dos mais pobres do estado. Caracterizado pela ruralidade e pelo baixo dinamismo eco­nômico, essa parcela territorial concentra quantidade significa­tiva de agricultores familiares, assentados da reforma agrária e quilombolas, parte do público alvo do PTC.

11Nesse quadro, o objetivo do artigo é apresentar a sistema­tização de um debate teórico­-conceitual para uma melhor apreensão dos processos po­líticos que vêm se dando em estruturas participativas supos­tamente caracterizadas por uma regularidade de interações Esta­do-sociedade civil. Alguns es­tudos empíricos (LEÃO, 2005; ABRAMOVAY, 2005; TON­NEAU e SABOURIN, 2009; AZEVEDO, 2016) destacam os limites, tanto em relação à abrangência quanto à efetivida­de da participação nesses espa­ços; porém, pouco se avançou, do ponto de vista da construção de uma metodologia teórica, para uma análise qualitativa das interações.

12O trabalho está dividido em quatro partes, além desta introdução. Em um primeiro momento, apresentamos o con­ceito de espaço político como definidor da natureza do cole­giado territorial em sua propos­ta de constituir uma arena de vocalização de conflitos, com potenciais para afetar proces­sos decisórios. Em um segundo momento, apresentamos o contexto de valorização da partici­pação social nas políticas públi­cas no Brasil e sua inscrição em processos tidos como de gover­nança territorial. Em seguida, apresentamos alguns resultados de levantamentos empíricos acerca do colegiado territorial do Vale do Paranã, buscando-se destacar aspectos que demons­tram os desafios teóricos e as contradições desses canais par­ticipativos no Brasil.

1. O espaço político

13Há algumas dificuldades em definir o conceito de espaço po­lítico. Em primeiro lugar, dife­rente do conceito de território, que demarca conflitos de uso e ocupação dos espaços marcados por relações de poder, o espaço político não é corriqueiramente adotado na Geografia. Na rea­lidade, o mero uso da expres­são se refere ordinariamente à « interação entre o espacial e o político », de maneira genérica e sem aprofundamento dos seus conteúdos explicativos, « o que tem conduzido a algumas sim­plificações, do tipo todo espaço é político ou toda política tem uma dimensão espacial » (CAS­TRO, 2018, p. 1).

14Nas ciências políticas, ao que aponta Azevedo (2016, p.75-76), o espaço político é concebido a partir de uma ideia muito próxima de « esfera públi­ca, desprovida de materialidade [...], dificultando a consideração desse conceito como geográfico ». O autor aponta que nessa disciplina, muitas vezes, a pro­posta de « uma análise espacial seria baseada em um exame dos posicionamentos político-ide­ológicos dos partidos políticos e a interpretação racional do comportamento dos eleitores » (p.76). Assim, o conceito é tra­tado a partir de uma perspectiva apenas relacional, desprovida de materialidade, o que sinaliza para a pouca relevância do es­paço como elemento da política – distanciando-se, portanto, de uma análise geográfica.

17Castro (2012, p.44), em um esforço aprofundamento teó­rico-conceitual na Geografia, considera que uma definição do espaço político estaria « situada na interface da reflexão sobre a conflitualidade das relações so­ciais, sobre o papel normativo da política e sobre os arranjos e estratégias espaciais dos confli­tos de interesse ». Assim, para a autora, algumas condições fun­dadoras do espaço político es­tariam na i) ação política, fruto dos conflitos de interesses que ocorrem em ii) espaços concre­tos, orientados por iii) regras so­ciais e políticas que ordenam o convívio entre livres e diferen­tes (CASTRO, 2012).

18Sem pretender esgotar os vieses e os atributos do con­ceito, mas ainda buscando uma aproximação com Castro (2012), para a existência de um espaço político, três condições seriam então fundamentais: a) sua imaterialidade, perpassada por valores referentes à demo­cracia – tais quais isonomia, liberdade, caráter público e ins­tituições de poder; b) sua mate­rialidade, ou seja, a necessidade de espaços concretos para o en­contro entre os diferentes, des­de sua capacidade, localização, acessibilidade, publicidade e; c) sua intencionalidade – ou seu ideal – que se refere aos obje­tivos do agir político, a ação de sujeitos democráticos em busca de influenciar a agenda política (CASTRO, 2012; AZEVEDO, 2016).

19Tomando-se por base, portanto, que a atividade política qualifica os espaços, interes­sa-nos entender a qualidade desses processos políticos em espaços concretos, e a maneira como a atividade política di­ferencia tais espaços de outros espaços da vida social (CAS­TRO, 2018). Tais atributos são relevantes para a elaboração de um conceito operatório para a compreensão da qualidade dos processos que se dão nos cole­giados territoriais, nosso objeto de estudo. Os colegiados cons­tituem canais que dão voz e vi­sibilidade a interesses a serem negociados em processos deci­sórios potencialmente capazes de afetar a vida em comum em recortes territoriais precisos.

20Ainda buscando avançar em relação ao entendimento das diferentes modalidades, confi­gurações e formatos de espaços políticos, Castro (2018, p.6) propõe uma tipologia, conside­rando as configurações, as di­nâmicas e os formatos de cada tipo identificado, quais sejam: espaços políticos exclusivos, espaços políticos limitados e espaços políticos abertos. Para a autora:

Os Parlamentos, as Assembleias ou Câ­maras Legislativas são decerto espaços políticos exclusivos, ou seja, são constru­ídos e organizados essencialmente para o debate e a deliberação política. Possuem ampla visibilidade e reconhecimento formais, são espaços onde se debatem interesses gerais conflitantes [...]. Os es­paços políticos limitados correspondem aos muitos espaços de debates e repre­sentação de interesses específicos na so­ciedade, institucionalizados e facultados por normas de participação em diferentes modelos de democracia como diferentes tipos de conselhos e de fóruns temáticos [...]. Os espaços políticos abertos [...] se expressam nas ruas e praças, lugares do cotidiano social que se metamorfoseiam em arenas de demandas, conflitos e ação [...]. Esses são espaços de ação abertos a toda a sociedade, qualidade intrínseca aos espaços escolhidos para manifestações, protestos, passeatas, ocupações e tudo mais que a imaginação dos ativistas so­ciais decidir criar para alcançar seus obje­tivos políticos [...].

21Partindo-se da tipologia pro­posta por Castro (2012 e 2018), este trabalho privilegia o con­ceito de espaço político como operacional para o entendimen­to dos processos que se dão nos espaços de participação social que se difundiram no país a par­tir da redemocratização. Cabe, portanto, problematizar a qua­lidade dos processos decisó­rios que se dão nesses espaços, pouco analisados pela Geogra­fia brasileira, apesar de terem conhecido franca expansão ao longo dos últimos trinta anos.

22Para tanto, buscaremos, ini­cialmente, contextualizar os co­legiados territoriais à luz do pro­cesso de ampliação dos canais participativos que ocorreram no País nas últimas décadas. Na se­quência, enfocaremos o concei­to de governança territorial, que se refere a estratégias de coorde­nação de relações mais colabo­rativas entre o poder público e representantes da sociedade ci­vil em recortes territoriais preci­sos. Por fim, a análise empírica do colegiado territorial destaca­rá as contradições desses canais participativos, apresentado os gargalos para uma efetiva par­ticipação social nesses espaços decisórios.

2. Políticas públicas e participação social: breves contextos

23Neste artigo, buscamos mo­bilizar o conceito de espaço político como operatório para interpretação de processos par­ticipativos em colegiados ter­ritoriais, instâncias do PTC, e que podem ser entendidos como resultantes de um contex­to de valorização da participa­ção social, da territorialização das ações governamentais e dos processos decisórios.

24É possível interpretar tais mudanças nas políticas a par­tir de diferentes perspectivas, cada qual centrada em determi­nados aspectos. Para Favareto (2009, p.53), que tem o olhar voltado para o meio rural, esse movimento – territorialização e valorização da participação so­cial – tem como pano de fundo « a emergência daquilo que se convencionou chamar de abor­dagem territorial do desenvolvimento rural », atrelada a três razões principais. A primeira é referente a um entendimento crescente de que as dinâmicas rurais já não podem ser expli­cadas exclusivamente por meio da agricultura e da pecuária, ou seja, de maneira setorial. Em segundo lugar, está a constata­ção da importância da dimen­são espacial como componente para medidas alternativas de desenvolvimento e para a ado­ção de outras escalas na aloca­ção de recursos. Em terceiro, destaca-se o entendimento de que medidas top down ou « de cima para baixo » deveriam ser substituídas por intervenções bottom up ou « de baixo para cima », direcionadoras de inves­timentos públicos.

25A mudança no referencial das políticas públicas, nesse caso, é explicada pela incor­poração de outras escalas para alocação de recursos e pela substituição do enfoque setorial pelo territorial (SUREL, 1995; MULLER, 2009). Para Favareto (2009), o « novo referencial » possibilitaria a valorização de uma visão mais estratégica e integrada do desenvolvimento rural. Além disso, as mudanças decorreriam da incorporação do princípio de subsidiariedade, o que resultaria em estratégias de governança territorial por meio de intervenções « de baixo para cima ».

26Nessa perspectiva, Fuini (2010) considera que mudan­ças nos modos de elaboração de políticas públicas se deram a partir da transição, ainda em ritmo, do modelo regulatório de acumulação fordista-keynesia­no para um modelo de produ­ção e de acumulação flexível. A ideia central dessa leitura é que essa transição contribuiu para um suposto aprofundamento da especialização produtiva de re­giões e localidades inseridas em espaços subnacionais, que pas­saram a buscar novas formas de mobilizar recursos e enfrentar a crescente concorrência intrana­cional e internacional. Tal mo­bilização, entretanto, ocorreria a partir de arranjos que articu­lassem instituições e projetos de desenvolvimento assentados em atores, capacidades e co­nhecimentos por meio de novas estruturas de governança terri­torial.

27Percebe-se, por esse prisma, que processos de governança territorial são produtos de uma estratégia para impulsionar a competitividade de espaços subnacionais, constituindo uma forma de organização complexa com certo grau de cooperação. O autor salienta que os recursos mobilizados podem ser de dois tipos: aqueles de qualidade ge­nérica, transferíveis e comuns a outros contextos territoriais, ou aqueles mais específicos, referentes à convergência de experiências histórico-culturais decorrentes « de articulações so­ciais e espaciais inéditas » (FUI­NI, 2010, p.20). O resultado desse acordo entre atores e ins­tituições orientariam a gover­nança a um objetivo máximo: o desenvolvimento territorial.

28Ferrão (2014, p.55) enten­de que o novo olhar sobre a maneira de produzir, executar e analisar políticas públicas é evidenciado em um quadro ain­da mais amplo: uma « crescente erosão da visão racionalista e positivista moderna de Estado, economia e sociedade por con­cepções pós-positivistas [...] ». O autor parte da análise especí­fica do caso das políticas de or­denamento do território na Eu­ropa em que, mesmo existindo particularidades políticas, insti­tucionais e sociais a cada país daquele continente – especial­mente sobre sistemas e culturas de ordenamento territorial – é possível apontar convergências nos parâmetros que envolvem suas composições. Nesse sen­tido, Ferrão (2014) aponta três ordens de fatores que podem ser destacadas no debate: a) a globalização do conhecimento científico e dos modelos políti­cos, sociais e econômicos, bem como a europeização dos pro­cessos de decisão; b) as trans­formações do significado social de interesse público, planeja­mento e território; e c) trans­formações dos modelos políti­cos-institucionais, referentes à reforma do Estado, à descentra­lização administrativa e à refor­mulação do papel do Estado.

29De maneira geral, isso representaria uma orientação ao ordenamento territorial baseado em « concepções de natureza mais integrada, estratégica e prospectiva » (FERRÃO, 2014, p.33). Assim, uma nova disposição para as políticas de ordenamento do território es­taria fundamentada na i) valorização da pluralidade de atores, interesses e valores; ii) no fomento à integração de políticas setoriais, tendo como referência uma base territorial, em que pese o iii) interesse público, invocado por demandas negociadas em processos de planejamento participativo e de governança territorial. Esta, por sua vez, é explicada pelo autor como parte da passagem de um paradigma de « governo » (estatal, vertical, hierárquico, burocrático) para um outro de « governança » (coordenação horizontal e vertical entre múltiplos atores-públicos, privados e associativos – envolvidos em projetos comuns) (FERRÃO, 2014, p.23).

30Percebe-se, portanto, que as diferentes concepções ajudam a apreender processos de transformação na maneira de pensar as políticas públicas. Em todas essas leituras, e em grande parte da literatura sobre o tema, há convergências em relação à valorização da dimensão espacial – por meio da assim chamada « territorialização das políticas » – e da participação social, assistindo-se ao fomento de processos de governança em escalas decisórias locais. Além disso, todas remetem, de alguma maneira, à reformulação do papel do Estado e à descentralização político-administrativa. A esse ponto, Ferrão (2012, p.23) acrescentaria ainda o debate so­bre a democracia participativa e deliberativa.

32Nesse sentido, a Carta de 1988 teve significativa importância e pode ser apontada como um marco de transformação tanto para o Estado quanto para a sociedade civil. A Cons­tituição abriu caminho para o avanço da descentralização político-administrativa – mes­mo que tenha permitido, por meio da aprovação de emendas parlamentares, uma progressiva recentralização do papel da União ao longo dos anos (ARRETCHE, 2012). Entretanto, o texto aprovado foi responsável pelo reconhecimento formal de alguma autonomia aos entes federativos e de maior participação social nos processos políticos, inclusive em espaços e instâncias que aparentemente não fazem parte dos processos eleitorais tradicionais, como são os casos dos conselhos, fóruns, colegiados, comités, entre outros exemplos.

33Um único marco temporal, argumentam Grisa e Schneider (2015), não é suficiente para sintetizar completamente os processos sociais e suas transi­ções. Contudo, é notório que nas últimas três décadas um conjunto de mudanças ocorreu no país, seja no âmbito políti­co-institucional ou nas dinâmi­cas sociais. E foi a partir desse cenário que novas regras e ins­trumentos de políticas públicas puderam ser criados. Apoiadas em novos referenciais – tanto globais quanto setoriais –, es­sas regras e instrumentos con­tribuíram para alterações nas formas de atuação do Estado, influenciando, em algum grau, as condições socioeconômicas das populações, em especial as que vivem no meio rural.

34Ainda que esse contexto tenha sido fundamental para sustentar a territorialização de políticas públicas e a incorpora­ção, ao menos em tese, de uma perspectiva de valorização de processos de governança terri­torial, é preciso atenção quanto ao discurso da descentraliza­ção. Nesse sentido, Arretche (2012) pondera duas questões importantes: a primeira é que descentralização é um conceito relativo, e não deve ser confun­dido com mais democracia ou mais participação; e a segunda diz respeito a um contínuo mo­vimento de recentralização do papel decisório da União em detrimento de outras escalas federativas, inclusive no que se refere às políticas públicas.

35De todo modo, é preciso aprofundar o entendimento sobre o que se compreende como governança territorial, a fim problematizar o uso da expres­são nas políticas de desenvol­vimento, sobretudo no desenho do PTC, e na sua capacidade de fortalecer determinado espaço político no Território do Vale do Paranã.

3. Governança territorial

36Carrion e Costa (2010) revi­sitam o termo governança des­de sua etimologia – « kybenan (incitar, estimular) e kybernetes (guia, piloto) » (p.623) –, pas­sando pela associação histórica à noção de « bom governo », até alcançar a sua incorporação por organismos internacionais, es­pecialmente o Banco Mundial no final da década de 1980, a partir do propósito de anunci­á-la como uma das estratégias para o desenvolvimento. Ade­mais, essa retomada do concei­to no final do século XX, se­gundo os autores, representava a expectativa de um « novo pa­drão de relações sócio institu­cionais decorrentes da revisão das relações Estado, sociedade, capital privado » (p.624).

37Muitos autores (GILLY; PE­CQUEUR, 1997; MILANI e SOLINÍS, 2002; DALLABRI­DA; BECKER, 2003) apontam que o entendimento sobre pro­cessos de governança esteve primeiramente associado à teo­ria da firma e se referia, como argumenta Carrion e Costa (2010), a novas coordenações empresariais – internas e exter­nas – que tinham por finalidade a redução dos custos transacio­nais. Segundo tais autores, essa reestruturação na coordenação empresarial seria uma resposta ao declínio do sistema fordis­ta de regulação, assentado em forte hierarquização. Isso sig­nificou, aos poucos, sua subs­tituição por uma administração mais reticular - o que fez emer­gir a « designação de governan­ça como regulação das relações que se estabelecem nessas redes de empresas » (p.624).

38Fuini (2010, p.37) salienta que, a partir de 1970, o termo passa a circular nos meios po­líticos, sendo associado à ideia de governabilidade, « ou seja, às necessárias mudanças das insti­tuições e organizações para me­lhorar a capacidade de gestão do Estado frente aos cidadãos ». Já Le Galès (2015) aponta que a definição de governança deve estar associada a uma clara compreensão do que é governo, bem como das noções de gover­nar, de quem é governado e de governabilidade.

39Esse autor reconhece cinco principais tendências identificadas na literatura sobre o tema: i) a crença na impossibilidade de governar a sociedade; ii) o au­mento da complexidade social; iii) a observância a relações existentes entre atividades pú­blicas e atividades econômicas de motivação privada para o go­verno das cidades; iv) a emer­gência de formas de regular a sociedade para além do gover­no; e v) a emergência de ques­tionamentos sobre uma possível mudança de comportamento social e de uma nova governa­bilidade posterior à onda neoli­beral. Embora partam de orien­tações diversas, essas leituras convergem sobre uma preocupação a respeito de caminhos para a conformação de novas configurações de governo e de formas de governar.

40Dentre essas principais ten­dências, existe uma categórica crítica – para alguns, excessiva – às atividades de governo. Essa tendência, entendida como de viés neoliberal, anunciava ser « preciso encontrar uma maneira não de governar, mas de regular a sociedade para além do governo » (p.31). Essa é uma das correntes que mais ganhou notoriedade na literatura sobre governança, principalmente a partir da proliferação de estudos vinculados ao Banco Mundial que contemplavam, essencialmente, o desenvolvimento econômico. Nos anos de 1980, por exemplo, o termo aparece em documentos « tratando da capacidade financeira e administrativa do Estado [...] para tornar efetivas as ações de governo na implementação de políticas e na consecução de metas coletivas para otimizar e gerir recursos econômicos e sociais » (FUINI, 2010, p.37).

41Para o Banco Mundial, « governança é definida como a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos econômicos e sociais para o desenvolvimento. A boa governação, para o Banco Mundial, é sinônimo de boa gestão do desenvolvimento » (BANCO MUNDIAL, 1992, p.1, tradução nossa). Carrion e Costa (2010, p.265) argumentam, entretanto, que o uso do termo, nesse caso, refere-se somente « à administração da organização social naqueles aspectos em que a auto-regulação dos mercados não alcança a todos – justamente por estarem fora do mercado, no caso de extrema pobreza – e que o Estado não se mostra capaz de sanar ».

42Essa perspectiva produziu certo consentimento de que o conceito de governança estaria sempre assentado em um supos­to enfraquecimento do Estado – o que não pode ser aplicado a todos os casos em que práticas de governança são adotadas. Por conseguinte, é preciso bus­car elementos que ultrapassem essa leitura, e possibilitem um entendimento crítico acerca dos potenciais das interações Estado-sociedade civil em processos instituintes.

43É nesse sentido que Pereira (2013) irá conceituar processos de governança como formas de governo mais abertas e partici­pativas, em que se sobressaem relações de cooperação entre o Estado e parceiros econômicos e sociais. Isto inclui as relações de poder entre atores, capazes de definir « como, quando e de que forma é feita a partilha de responsabilidades, a negociação entre as partes e a tomada de decisões » (p.56). Porém, alerta a autora, essas formas não estão isentas de riscos, pois « o envol­vimento de interesses privados pode desequilibrar as forças nos processos de decisão e, no limi­te, comprometer o interesse co­letivo » (p.56). Assim, reclama a « premência da presença do Estado, a quem compete a sua salvaguarda » (p.56).

44A partir desse ponto de vista é possível compreender que as formas de governo mais abertas e participativas não significam necessariamente o enfraquecimento do papel do Estado. A questão levantada pela autora demonstra que há preocupações que caminham nesse sentido e a atenção aos processos de gover­nança podem sugerir justamen­te o fortalecimento das distintas instituições que compõem o aparelho estatal. O conceito de governança, por conseguinte, situa-se menos em um processo de diminuição do Estado e mais em um debate que compreende interações institucionais e pro­cessos decisórios construídos em redes por diferentes atores e agentes implicados.

45Dallabrida (2015, p.307), em um importante apanhado geral sobre o conceito, sublinha que governança se refere

às redes auto-organizadas envolvendo conjuntos complexos de organizações, instituições e atores provenientes dos setores público e privado (Rosenau e Czempiel, 1992), como representantes do setor empresarial, dos sindicatos de trabalhadores, da sociedade civil, dos movimentos populares e agentes estatais (Kazancigil, 2002), agindo num processo interativo (Stoker, 1998), cujas interações estão enraizadas e reguladas por regras do jogo negociadas e acordadas pelos seus participantes (Rhodes, 1996). Trata-se de processos de tomada de decisão ou espa­ços de prestação de conta (Weale, 2011) relativamente horizontais, como um novo modelo de regulação coletiva e de fazer política (Blanco e Comà, 2003; Graña, 2005), ou seja, uma forma de governar mais cooperativa, diferente do modelo hierárquico em que as autoridades esta­tais exercem um poder soberano sobre os grupos e cidadãos que constituem a so­ciedade civil (Mayntz, 1998).

46González Esteban (2013) apud Lima (2014, p.1238) também procura sistematizar uma aproximação e apresenta que, dentre os vários tipos de governança, é possível identificar cinco características comuns e três traços sempre presentes:

a) a governança implica um enfoque pluricêntrico; b) as redes jogam sempre um importante papel; c) os estudos se centram nos processos de governo mais que em suas estruturas; d) as relações entre atores sugerem riscos e incertezas específicas, tendendo à criação de insti­tuições que os minimizem; e e) existe uma grande variedade de enfoques de caráter normativo. […] 1. A governança é um processo de descentralização do po­der político, portanto, de transferência de poderes de decisão às entidades regionais e locais; 2. A governança implica sempre a organização em rede, em vez de hie­rárquica e burocrática; 3. A governança produz um esfumaçamento da fronteira entre Estado e sociedade civil que se põe em questão com outras dicotomias como público/privado; direitos/usos sociais etc.

47Neste artigo, busca-se pro­blematizar o entendimento dos processos de governança como estratégia política na sua dimensão territorial, ou seja, « considerando as articulações e interdependências entre atores sociais na definição de formas de coordenação e regulação dos processos econômicos e sociais territoriais », tal como discorre Fuini (2010, p.38).

49Dallabrida (2011), por exemplo, reconhece que o tema é debatido por diferentes áreas do conhecimento; no entanto, nem sempre com a mesma de­finição. O próprio autor salienta alguma variação de significado na própria trajetória de seu tra­balho, mas, por fim, sugere que governança territorial se refere « às iniciativas ou ações que ex­pressam a capacidade de uma sociedade organizada territo­rialmente para gerir os assuntos públicos a partir do envolvi­mento conjunto e cooperativo dos atores sociais, econômicos e institucionais » (p.17).

51Lima (2014) corrobora essa discussão ao conceber governan­ça territorial como um processo, caracterizado pela capacidade de coordenação das ações políticas entre os mais variados atores e agentes sociais. O intuito, segun­do o autor, é o de responder cole­tivamente às questões comuns a fim de se alcançar certo consenso em torno de um projeto coletivo.

52Percebe-se que o diálogo entre esses autores estabelece pontos convergentes para a definição de um conceito de governança territorial. O primeiro deles é, certamente, a inevitabilidade de se aceitar como pré-condição a existência de um contexto terri­torial. O segundo ponto seria a necessária articulação entre os mais distintos atores e agentes que respondem aos interesses territorialmente assentados. Por último, e não menos importante, é o acordo – mesmo que alcan­çado no seio de conflitos – em torno de um projeto ou uma vi­são comum de futuro, que resul­taria na construção de consensos acerca de decisões que tocam a coletividade. Nesse sentido, tais processos de governança terri­torial se desdobram em espaços políticos precisos, construídos e avivados coletivamente.

4. O colegiado territorial do Vale do Paranã como emblemático dos desafios e limites de novos espaços políticos participativos no Brasil

54O colegiado territorial, es­tudado neste artigo, é parte do Programa Territórios da Ci­dadania, política do Governo Federal que integra as estraté­gias de promoção do desenvol­vimento rural brasileiro. Tais estratégias, como apontam Del­gado e Rocha (2017), tiveram como fundamento o estímulo à organização de recortes ter­ritoriais particulares – nesse caso, identificados e institucio­nalizados como um Território da Cidadania. Basearam-se, também, no apoio à criação de colegiados territoriais, espa­ços destinados à participação social, ao debate e à represen­tação dos interesses territorial­mente ancorados. Além disso, atuaram para a articulação ins­titucional entre atores, agentes, órgãos e entes federados com o intuito de ampliar, para cada « território », o acesso às políti­cas públicas.

56De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA2009, p.4), o colegia­do é um « espaço de discussão, planejamento e de execução de ações para o desenvolvimen­to ». Nele, as demandas devem ser vocalizadas, os interesses conflitantes negociados e uma agenda de ações pactuada. Sua estrutura, nesse sentido, atuaria de forma a favorecer a integra­ção de esforços em busca de alternativas para o desenvol­vimento, além de possibilitar o controle social do programa.

57Considera-se que o colegia­do engloba elementos fundamentais do conceito de espa­ço político até aqui debatido. Ou seja, compreende espaços concretos de articulação entre atores, agentes, instituições e entidades, em que os conflitos de interesses são expressos em torno de projetos comuns. Tais espaços, por esse viés, têm am­parado a intenção de equilibrar tensões resultantes do diálogo em torno de interesses confli­tantes, acentuando o papel nor­mativo da política e o potencial instituinte da participação da sociedade.

58No Vale do Paranã, o cole­giado foi instituído em 2009 e reúne representantes de 12 mu­nicípios – cada um com direito a oito cadeiras. As indicações devem obedecer ao princípio da paridade entre sociedade ci­vil e poder público; assim, qua­tro membros – e seus respecti­vos suplentes – são indicados pela sociedade civil e quatro membros – e seus respectivos suplentes – são indicados pelo poder público. Ademais, o regi­mento interno afirma a exigên­cia de uma cota mínima de 30% para a participação feminina– tanto por município quanto por titularidade do colegiado.

59A organização interna é di­vidida em três instâncias prin­cipais: a Plenária, o Núcleo Diretivo e o Núcleo Técnico. O primeiro é o espaço mais amplo de participação, em que o con­junto de atores e agentes que têm lugar no colegiado podem discutir e deliberar sobre assun­tos específicos. Esses espaços estão abertos à comunidade, embora apenas os integrantes tenham direito a voto. O segun­do espaço tem a função primei­ra de coordenar o colegiado e organizar as ações, os eventos e as pautas levadas pela plenária e atribuídas ao Núcleo Técnico. Este, por sua vez, tem a função de colaborar na coordenação do colegiado, mas é dedicado, principalmente, ao auxílio à elaboração de projetos e à ade­quação dos mesmos aos editais abertos.

60Além dessas três instâncias, há também os comitês especí­ficos que, nesse caso, são ca­racterísticos de cada recorte territorial definido. Tais espa­ços participativos têm a prer­rogativa de estudar, discutir e propor saídas a um conjunto de demandas particulares. No Vale do Paranã, por exemplo, há seis comitês específicos: mulheres, bacia leiteira, agroecologia, inclusão produtiva, jovens e povos e comunidades tradicio­nais.

61Delgado e Rocha (2017, p.7) argumentam que as agendas dessas distintas instâncias são marcadas por três elementos: i) o planejamento territorial, que seria indicado na elaboração do PTDRS; ii) o acompanha­mento das ações direcionadas ao território –ou, nas palavras dos autores, « direcionadas à di­versidade existente na agricul­tura familiar »; e iii) o debate, a proposição e a elaboração de projetos territoriais. Observam os autores, contudo, que as agendas das instâncias, além de diversas, são combinadas por diferenças territoriais e pela experiência de cada colegiado diante dos contornos das políti­cas territoriais.

62O colegiado é composto por representantes da sociedade que, em sua maior parte, são vinculados às temáticas rurais. Os exemplos principais são os sindicatos dos trabalhado­res(as) rurais, as associações de projeto de assentamento e dos quilombolas e o movimento camponês popular – MCP. Ou seja, são predominantes os re­presentantes de movimentos da sociedade civil previamente or­ganizada. Em relação ao poder público, observa-se uma varie­dade menor – normalmente câ­mara dos vereadores, prefeitu­ras e secretários municipais e, ainda, a Emater. Entre os secre­tários, destacam-se aqueles que têm maior relação com as ques­tões rurais: agricultura, meio ambiente e turismo.

63Embora se tenha constatado a presença de um representan­te do comércio local na lista de representantes obtida durante a pesquisa, acredita-se que não seja representativo do univer­so de comerciantes vinculados às temáticas rurais. Essa é uma discussão mais ampla, que en­volve a participação ou não de representantes do empresariado local nessas instâncias, como busca sinalizar Zani (2010). Há argumentos de que tais segmentos poderiam obliterar o protagonismo daqueles vin­culados à agricultura familiar, principalmente em municípios que apresentam grande dife­rença sócio-política e com his­tórico de conflitos. Além disso, os empresários já estariam re­presentados em outros espaços participativos e de elaboração de políticas públicas. Por outro lado, há a crença de que, por meio de instituições como o Se­brae, tal participação elevaria a dinâmica produtiva e promove­ria outras intervenções favorá­veis ao desenvolvimento, como o processamento, a distribuição e a comercialização de produtos.

64Sobre isso, acrescente-se que o primeiro documento que fornece a lista de todos os par­ticipantes do colegiado é de 2011, e faz parte do PTDRS. Nesse documento, há um nú­mero reduzido de participan­tes em relação à expectativa de composição do colegiado regis­trada no seu regimento interno. Uma das explicações apreendidas em campo é que, passados os dois primeiros anos da política pública – O Vale do Paranã passou a fazer parte do PTC em 2009 –, a mobilização dos integrantes parece ter se enfraquecido. Segundo alguns entrevistados, dois motivos podem ter contribuído para isso e ambos estão relacionados à excessiva burocracia das políticas.

65O primeiro motivo deriva da dificuldade de elaboração de projetos, já que parte dos entrevistados afirmava que, sem o apoio das prefeituras e dos técnicos, era difícil concorrer aos editais abertos. Pequenos produtores argumentavam sobre a sua pouca capacidade em lidar coma linguagem, com os documentos necessários e com os prazos estipulados pelos editais. Por esse viés, questiona-se a capacidade do Núcleo Técnico do colegiado para suprir o volume de demandas vocalizadas. Por outro lado, compreende-se que parte dos agricultores familiares não tem a « cultura da reunião » e do empreendedorismo. De acordo com o desenho da política, tais elementos, em conjunto, dificultam o delinea­mento de interesses mais específicos e, por conseguinte, são um obstáculo para a formula­ção de projetos que os atendam.

66Essa é uma questão que merece atenção, pois de uma política que sugere a participa­ção social de um público alvo composto, notadamente, por agricultores familiares de baixa escolaridade e renda, espera-se um avanço na desburocratiza­ção de ações e na difusão de informações necessárias para uma participação mais ativa. Não se trata de subestimar a ca­pacidade desse público, mas de reconhecer que há dificuldades para sua inclusão nas políticas públicas, de maneira geral.

67Nesse sentido, poderíamos supor que grupos mais organizados deteriam maior poder de decisão. Não se pode afirmar efetivamente que isso ocorra no colegiado do Vale do Pa­ranã, embora se saiba que há integrantes que se destacam no processo participativo e outros que têm protagonismo menor. O Núcleo Diretivo parece ser composto, de alguma maneira, por esses participantes mais engajados. O problema é que o colegiado não pode ser re­duzido a essa instância e isso certamente debilita o processo participativo.

68Já o segundo motivo que sugere o enfraquecimento da participação, ainda em 2011, relaciona-se à demora do po­der público em responder às demandas territoriais. Muitos projetos e processos abertos pelo colegiado, devido à bu­rocracia, arrastam-se por anos – frustrando a expectativa e o interesse daqueles solicitantes. Um dos casos mais sintomá­ticos no Paranã é um processo aberto em 2009 para aquisição de matrizes ovinas. O projeto era destinado a atender o PA Zumbi dos Palmares no município de Simolândia, e aproveita­ria a estrutura já presente no assentamento para o recebimento de animais. Ocorre que o valor para ser licitado foi autorizado pela Caixa Econômica Federal somente em 2015 e, nesse tem­po, possivelmente por falta de uso e manutenção, a estrutura pegou fogo – inviabilizando sua execução.

69É preciso considerar tam­bém que o fortalecimento ou enfraquecimento da participa­ção social resulta da influência de outras escalas na promoção de mudanças no modus operan­di da política e do colegiado. Por exemplo, ocorreram rede­finições no âmbito do próprio desenho do Programa – o que incluiu alterações nas norma­tivas de políticas vinculadas, como é o caso do Proinf, ou de mecanismos legais para a con­tratação de assessoria para arti­cular projetos e a participação social (DELGADO; ROCHA, 2107). Por outro lado, desta­cam-se mudanças mais genéri­cas, referentes ao plano político e econômico nacional. Isso sig­nifica considerar transições mi­nisteriais, redirecionamento ou corte de verbas, oscilações dos interesses político-partidários divergentes etc.

70Butto e Bemerguy (2014) acrescentam outras situações que sinalizam alterações no programa e que, certamente, influenciaram a desmobilização dos seus espaços participativos. Segundo os autores, em 2012, por exemplo, há uma redefini­ção da Matriz de Ações – ofer­tas de ações decididas pelo Governo Federal –, com a re­tirada de pontos considerados universalizados pelo governo, bem como a diminuição da transversalidade do programa. No governo Dilma Rousseff ocorre, sobretudo, um reforço do PTC como orientador para escolhas de investimentos, principalmente daqueles incluí­dos no Programa de Aceleração do Crescimento 2 – PAC 2. As ações do PAC 2 foram previa­mente decididas pelo Governo Federal, e pouco tiveram re­lação com a participação nos colegiados. Assim, reforça-se a concepção naturalizada do « território » apenas como um repositório de ações do Estado, ou também como mais uma re­gionalização para fins de plane­jamento.

71Com efeito, o Governo Fe­deral, a partir da Matriz de Ações, define os setores priori­tários para aplicação de recur­sos, ou seja, retira do processo participativo a capacidade de eleger seus próprios interes­ses. Dito isso, o programa pa­rece induzir o inverso, pois ao apontar os setores preferenciais para aplicação de recursos, tor­na o colegiado um « balcão » de projetos e desarticula uma pos­sível negociação conjunta em torno de um possível projeto ou os projetos territoriais a serem construídos.

72Outro ponto observado, e que ficou mais claro à medida em que as entrevistas avançavam, foi que a maioria dos par­ticipantes, na verdade, busca acessar condições básicas para a produção no meio rural – acesso à água, à regularização fundiária, às políticas de com­pra de alimentos e crédito rural, e ao mercado consumidor. Não é correto afirmar que inexistam conflitos de interesse presentes; ao contrário, supõe-se que exis­tam, mas todos esses interesses parecem depender de uma pri­meira composição de objetivos a serem alcançados. Percebe-se, portanto, que o desenho do programa dificulta que os cole­giados se tornem efetivamente espaços abertos a diferentes in­teresses e enfraquecem a quali­dade dos processos decisórios.

73Constatou-se, por exemplo, que muitas demandas apontadas pelos entrevistados estavam, de algum modo, contempladas no Plano. Dentre elas, o acesso à água, à regularização fundiá­ria e à assistência técnica rural. Isso não causa estranheza, já que a composição do colegiado é marcada, predominantemen­te, por integrantes vinculados às temáticas rurais, sejam eles re­presentantes do setor público – secretarias municipais de agri­cultura e turismo, técnicos da Emater etc. – ou da sociedade civil – presidentes de associa­ções de assentamentos rurais, dos STTRs, MCP etc. Contudo, pode-se destacar também a fal­ta de outras representações im­portantes no Território da Cida­dania do Vale do Paranã, como, por exemplo, o ICMBio e pro­fissionais da educação. Por fim, verificou-se que há enorme di­ficuldade de mobilização de to­dos os integrantes, mesmo que cada um tenha o seu suplente.

74Apesar desses problemas identificados, uma observação levantada por Dagnino (2002) nos parece importante, e se re­fere a um entendimento bastan­te comum nos debates acerca dos « encontros » entre sociedade civil e Estado na construção de uma política pública. Trata­-se do entendimento de que o resultado é, sempre, a produção de políticas fragmentadas, setorizadas, compensatórias, paliativas etc. Por um lado, ar­gumenta a autora, é fácil con­cordar com tais assertivas; por outro, é preciso um exame mais minucioso dos pressupostos que parecem condicionar esse cenário. Se o problema fundamental de tal relação está im­plícito nos modelos de formu­lação de programas, políticas públicas e suas implicações – o que é frequente –, percebe-se que os obstáculos transcendem « a dimensão da participação da sociedade civil [...] e se remetem ao âmbito mais amplo – e mais complexo – dos modelos de gestão do Estado [...] » (DAGNINO, 2002, p.298).

75Neste ponto, importa salien­tar que o PTC foi compreendi­do por grande parte dos gestores e acadêmicos como uma políti­ca inovadora e ousada para o meio rural brasileiro. Do pon­to de vista institucional, por exemplo, o programa pretendia articular um número grande de órgãos públicos para atuarem em conjunto em determinados recortes territoriais com o objetivo de promover o desen­volvimento. Além disso, pela perspectiva de um desenvolvi­mento integrado às dimensões sociais, culturais e ambientais, o desenho da política buscava ainda mobilizar representantes da sociedade civil para que ga­nhassem certo protagonismo no processo, presumindo-se que essas dimensões pudessem ser incorporadas para a política a partir dos interesses locais.

76Ao mesmo tempo em que o PTC se tornava uma das maio­res e mais importantes políticas públicas do Governo Federal para o meio rural, a comple­xidade de sua engenharia e o tamanho de sua estrutura pro­vocaram problemas relativos à burocracia do Estado e ao sistema político brasileiro. Em pri­meiro lugar, a grande quantida­de de ministérios participantes apontava para a dificuldade de articulação que teria a Casa Ci­vil e o MDA na mediação dos interesses presentes. Pode-se fazer alusão às disputas polí­tico-partidárias marcantes no presidencialismo de coalizão brasileiro. Um segundo ponto é que o MDA era considerado pequeno, com baixo orçamento e de menor relevância política – em relação ao Ministério da Agricultura, Ministério da Saú­de, Ministério da Educação etc. –, o que mais uma vez desequi­libraria sua capacidade de coor­denação da política.

77Esse desacerto alcançaria as pontas do PTC, ou seja, a sua organização nas escalas lo­cais. Desse modo, os colegia­dos certamente encontrariam dificuldades para manter uma agenda de reuniões e de ações que garantissem maior plurali­dade e comprometimento dos representantes da sociedade no processo participativo. Além disso, a falta de compreensão sobre seu papel fez com que, no Vale do Paranã, não houvesse um projeto territorial comum, compartilhado entre esses e os gestores públicos federais.

78Nesse sentido, as contradi­ções do Programa se inscrevem nas três dimensões da política: i) na dimensão institucional e da ordem do sistema político – polity – que, no Brasil, é marcada por um pacto federati­vo centralizado, mas permeado por conflitos relacionados à go­vernabilidade. Esta é um traço do nosso presidencialismo de coalizão e resulta em ii) pro­cessos conflituosos, incluindo a imposição de objetivos, esco­lhas de interesses e as decisões referentes à alocação recursos – politics –, daí a dificuldade de articulação de um programa tão amplo como o PTC, rever­tendo-se em iii) interferências na configuração e nos instrumentos da política pública e no seu resultado nas escalas locais – policy.

79Em outras palavras, parece inócuo procurar entender ca­nais mais propensos à partici­pação social e potencialmente capazes de constituir novos es­paços políticos sem que, para tanto, se considerem os cons­trangimentos e limitações que o próprio desenho político-ins­titucional e o modus operandi verticalizado que os governos impõem para os processos que se dão nas diversas escalas e re­cortes da decisão e da ação polí­tica. Se a literatura aponta para tendências inovadoras em in­terfaces e canais participativos que reconfiguram os processos políticos, no contexto brasilei­ro, os nexos que se estabelecem entre os recortes e as escalas político-administrativas, além do jogo político-partidário e a excessiva burocratização do Estado parecem constituir ele­mentos incontornáveis para um entendimento amplo e complexo dos entraves para o fomento de espaços políticos mais horizontalizados, plurais e participativos. Ou seja, o aperfeiçoamento dos processos democráticos e a fundação de processos de governança não se fazem por decreto, mas se atrelam às mudanças ou persis­tências de conexões político­-institucionais que posicionam atores políticos nas arenas de­cisórias.

Considerações finais

81Este texto teve o objetivo de discutir os conceitos de espaço político e suas aproximações com o debate acerca do fomen­to de processos de governança territorial nas políticas públi­cas. Interessou-nos buscar a aplicabilidade desses conceitos em um debate sobre a qualida­de da participação social e das interações entre poder público e sociedade em instâncias de­cisórias e recortes territoriais particulares. Para tanto, elege­mos como recorte o colegiado do Território da Cidadania Vale do Paranã, em Goiás.

82O trabalho foi organizado em quatro partes. Em um pri­meiro momento, apresentamos o conceito de espaço políti­co como definidor da nature­za do colegiado territorial em sua proposta de constituir uma arena de expressão de confli­tos, com potenciais para afetar processos decisórios. Em um segundo momento, apresenta­mos o contexto de valorização da participação social nas po­líticas públicas no Brasil e sua inscrição em processos tidos como de governança territo­rial. Em seguida, apresentamos algumas evidências empíricas que demonstram os persistentes limites desses canais participa­tivos no Brasil. Nesse quadro, buscamos sistematizar a lite­ratura sobre o tema para uma melhor apreensão dos proces­sos políticos que vêm se dando em estruturas participativas su­postamente caracterizadas por uma regularidade de interações Estado-sociedade civil. Po­rém, observamos que pouco se avançou, concretamente, para a melhoria da qualidade dessas interações nesses espaços.

83Por um lado, se o conceito de espaço político supõe uma aber­tura à participação e à expres­são dos conflitos de interesses, observamos, por meio de entre­vistas de campo, que o colegia­do territorial do Vale do Paranã tende a se constituir como um espaço sem muitos conflitos internos em relação às deman­das vocalizadas. Com efeito, as instâncias participativas do colegiado são majoritariamen­te ocupadas por representantes de movimentos e associações da sociedade civil previamente organizada, sobretudo voltados aos interesses da agricultura fa­miliar. Outros segmentos e gru­pos não são, desse modo, con­templados, e os conflitos se dão mais notoriamente entre esses representantes e representantes do poder público.

84Por outro lado, tanto a agen­da quanto a difusão de infor­mações técnicas acerca dos projetos e do encaminhamen­to de demandas são limitados. Assim, a qualidade da parti­cipação acaba por se mostrar comprometida. Acrescente-se a significativa centralização do processo decisório no âmbito federal, que implica não apenas todo o desenho e dinâmica de funcionamento do Programa, como o envolvimento de diver­sos ministérios e uma exten­sa burocracia, contrapondo-se ao que se poderia esperar em termos de fomento de práticas políticas mais horizontalizadas e participativas. Sem contar as articulações político-partidárias, que influenciam o modo de distribuição de recursos no âmbito do programa. Em sínte­se, tais elementos apontam para a fragilidade dos processos po­líticos nesses espaços, que ain­da parecem estar marcados pela verticalização e burocratização das decisões. Apresenta-se, em suma, um conjunto de contra­dições que ganham maior luminosidade a partir do confronto com uma metodologia teórica que nos possibilita indagar so­bre as práticas que se dão nes­ses canais de participação e seus limites.