- 1 Backrooms, literalmente “salas de trás”, são uma lenda urbana assustadora (creepypasta) que se dese (...)
- 2 A descoberta do lugar, que se imaginava ser uma modelização em 3D, mobilizou habilidades arquivísti (...)
- 3 Fonte: https://knowyourmeme.com/memes/Doge.
1Dois eventos importantes marcaram as notícias do mundo memético. Primeiro descobrimos que as backrooms1, essas assustadoras salas de escritório que parecem assombradas por todo tipo de monstros sanguinários, não estão localizadas em um mundo imaginário, mas sim no 807, Oregon Street, na cidade de Oshkosh, no Wisconsin2. Em segundo lugar, soubemos que Kabosu, a cadela Shiba Inu cuja expressão atônita gerou o Doge, um dos memes mais conhecidos da história recente, morreu de uma leucemia (por causa de uma proliferação desenfreada de células cancerígenas em seu corpo)3.
2A morte biológica do cachorro que deu vida ao Doge e a sua progenitura (e a sua “promemitura”) e o esclarecimento do mistério que estimulava o poder viral backrooms talvez não tenham nenhuma implicação na morte de seus memes respectivos, mas eles já afetam suas vidas. Por mais que muitos internautas tenham decretado seus fins, os dois memes entram agora em uma nova fase, a de um bardo digital, uma vida após a morte. Não seria ainda mais assustador saber que as backrooms não são uma modelização 3D, mas vestígios reais de um escritório amarelado por uma infiltração? E a expressão sonsa ou perspicaz (de acordo com quem vê) do Doge não tem, agora que Kabuso morreu, um ar de retrato histórico, uma pátina melancólica de um álbum de família memético? Podemos constatar que a realidade, da qual os memes seriam a emanação simbólica, é tão real quanto seu reflexo. Os memes não são simples imagens, eles entretêm estranhamente e, às vezes literalmente, um elo vital com a realidade física à nossa volta. Eles podem ser adaptados, morrer ou desaparecer; eles têm uma vida privada e social e, além disso, eles afetam nossas vidas.
3O Doge é um cachorro real. Um cachorro exemplar, um exemplo de cachorro que se tornou também a expressão simbólica de um traço da personalidade humana; um elemento de linguagem, o portador de uma mensagem ou, pelo menos, de um modo de expressão. Kabosu era, em todos os aspectos, um cachorro-modelo (famoso no Japão). O Doge tornou-se um modelo de cachorro, capaz de fundar a primeira criptomoeda memética, de patrocinar inúmeras (muitas vezes, duvidosas) campanhas publicitárias, mas também de conduzir uma guerrilha contra a propaganda russa durante a invasão da Ucrânia, tornando-se o rosto das brigadas digitais NAFO4. Considerando a cadeia de produção de valor e os valores coletivos originados na inflação simbólica do processo memético, a morte de Kabosu nos convida a examinar suas vidas paralelas, sua imortalidade (relativa).
- 5 O creepypasta dizia: “Se você não prestar atenção e “noclippar”, saindo da realidade em uma zona er (...)
- 6 O termo “lore”, contração de “folklore”, designa lendas, mitos e o conjunto de saberes de um grupo (...)
4Da mesma maneira, a descoberta da localização geográfica “banal” das backrooms nos coloca frente à evidência de que nossos pesadelos e preocupações não estão localizados em um espaço enigmático, mas assombram nosso dia a dia de uma maneira muito mais insidiosa e insuportável do que gostaríamos de acreditar. A arquitetura lúgubre e carcerária do labirinto funcionalista em decadência não é finalmente a mesma de nossos escritórios (e de nossas universidades) que apodrecem em um sonho ruim de um capitalismo cadavérico? O creepypasta que deu origem ao meme partia do princípio que se não prestarmos atenção, corremos o risco de a qualquer momento de sairmos fora da realidade e ficarmos presos para sempre nestes espaços limiares5. A identificação do lugar em nosso mundo físico e não em um além digital gerado pelo computador pode ser comparada a uma preocupante geolocalização do inferno, ou, pelo menos, de uma de suas versões. Esta imagem, que se tornou um tipo de cenografia memética para acúmulo do “lore”6 de horror contemporâneo, nos diz que não há realmente um além para onde podemos escapar, que nosso mundo e o de nossas (fan)ficções formam apenas um e, que se olharmos bem, talvez até já tenhamos caído na armadilha.
5O movimento é duplo: é por prestar atenção coletivamente que conseguimos retraçar as genealogias dessas imagens que surgem da ganga da Internet para dar corpo às nossas preocupações e, no entanto, é pela desatenção que nossa realidade (biológica, psicossocial, cultural) se degrada e cria monstros.
6Esses exemplos são apenas duas necrologias (uma biológica, outra geográfica) dentre tantas outras que caracterizam diariamente nossas formas de viver com e pelos memes. Afinal, eles falam de um rearranjo das relações que constituem os modos de existir de nossas personalidades culturais. Suas mortes ou seus fins desenham a malha de um ciclo de reencarnações possíveis, podendo ser retraçadas em um CV (como faz o site knowyourmemes), e cujas biografias podem ser narradas como fez Giorgio Vasari em Vite ([1568] 2007) ou em insólitos martirológios bioculturais. Quer estejam mortos, vivos, mortos-vivos ou vivos-mortos, esses objetos virais desenvolvem mundo afora uma forma particular de vitalidade.
7A questão da “vida” dos memes é tema deste número 12 da revista Hybrid, intitulado Vidas e vitalidades dos memes 1: Nascimento e renascimento dos memes, assim como o número 13, que será publicado em abril de 2025. Esses dois números inscrevem-se na continuidade de uma reflexão coletiva iniciada durante a jornada de estudos “No(u)s mèmes”7 que aconteceu em 14 de outubro de 2022, no CNAM em Paris8. Com estes dois números, desejamos questionar as “múltiplas vidas” dos memes, tendo como interesse principal as maneiras criativas e inesperadas pelas quais os memes ganham vida em nossos dia a dia.
8Como destacou Wagener (2022), os memes têm uma dimensão pós-digital, eles criam curtos-circuitos entre a realidade e a ficção, entre as vidas vividas “de verdade” e as idealizadas. Como no caso do Doge e das backrooms, os memes podem ter uma vida independente dos personagens ou das situações que os criaram. Ao ocupar nossa atenção e também os espaços de nosso dia a dia, quer sejam online e offline, eles acabam nos “assombrando” e, de tal maneira, que ficamos sujeitos não somente ao charme, mas também, talvez, aos seus efeitos colaterais (como ao apropriar-se de nossa atenção ou ao propagar conteúdo de ódio e/ou politicamente problemáticos). Interrogar os memes do ponto de vista de suas vidas oferece, assim, um largo leque de perspectivas teóricas para a reflexão info-comunicacional em torno desse objeto, que vai além de uma abordagem imanentista que o reduziria unicamente a uma combinação de texto(s) e imagem(ns).
9O meme “ganha vida”, inicialmente, ao sair das telas e ao encarnar-se em matérias e em corpos vivos. O uso de memes impressos em cartazes durante manifestações políticas, sua reprodução em paródias e em quadros vivos (Jost, 2022, p. 29-86), assim como a imitação de comemorações de gols icônicos (Boullier, 2023, p. 26) são alguns dos vários exemplos das maneiras pelas quais os memes tomam forma em nossas existências extradigitais. Vida, aqui, pode ser entendida como uma transição para algo externo ao objeto midiático, como um transbordamento para fora das telas de uma vitalidade intermidiática. Vivo, o meme molda nossos gestos, nossos horizontes de ações e de pensamentos e leva-nos a demonstrar interesse pelas dinâmicas ou pelas lógicas meméticas que agora encontramos fora das telas. Em seguida, o meme inscreve-se em nosso dia-a-dia e invade a esfera da vida que compreendemos como intimidade subjetiva e interpessoal. Ele revela “algo do que sou, do que você é, do que nós somos” (Girard, 2021, p. 30). As abordagens pragmatistas (Peirce, Dewey) ou herdeiras das teorias da recepção francesa (de Certeau) ajudam-nos a situar o meme nas práticas ordinárias dos territórios íntimos, dos quais ele será mediador. Assim, pelas especificidades das dinâmicas que o animam, o meme gera um deslocamento do eu-mesmo ao nós-mesmos, permitindo-nos produzir compartilhamentos, constituir um “nós”, declinando sua vitalidade como uma instância criadora de comunidade (de interesses, de conhecimentos) e culturalmente performativa.
- 9 Dawkins escreveu em 1976: “Precisamos de um nome para este novo replicador, um nome que evoque uma (...)
10A apropriação pragmática da criação de conteúdos declinada através da lógica de variação a partir de um modelo (template) (Nova & Kaplan, 2016) supõe questionar a dimensão restrita da definição de Richard Dawkins sobre os memes9. De acordo com o autor, é necessário analisar as mudanças culturais sob o prisma da teoria biológica da evolução, insistindo em três pontos: a existência de um código biológico das ideias (um genótipo cultural), uma autorreplicação das formas culturais e uma seleção natural dessas formas. Seu trabalho consiste em partes na abordagem das recorrências da vida cultural humana (certos traços de comportamento como o egoísmo) pelo prisma de conceitos tirados das ciências biológicas e a designar a biologia como uma ciência capaz de explicar a vida dos seres vivos, mas também a de formas culturais. Essas noções inspiradas dos campos da biologia ajudaram a desenvolver algumas metáforas tais como “viralidade”, que subentendem que os indivíduos ou as comunidades acabam sendo infectadas por entidades digitais sem que suas subjetividades e coletivos de enunciação estejam implicados.
11Por outro lado, analistas da cultura digital têm insistido na remixabilidade das práticas (Manovich, 2005; Allard, 2009), destacando o papel do usuário e das comunidades de fãs na criação dos memes (Jenkins et al., 2013). Essa criatividade social da cultura memética também pode ser vista em prática nos mais recentes aplicativos sociodigitais como, por exemplo, o TikTok, cuja uma das especificidades é colocar corpos em movimento pela repetição de coreografias como se fossem refrões (Allard, 2021) ou pelos remixes de trechos de animações, séries ou outros programas sob a forma de edits [versões modificadas] de curta duração popularizando, nas melhores e piores situações, rostos e bordões.
12Essa dimensão orgânica presente nas performances que se repetem dentro do aplicativo pode ser heuristicamente analisada sob a noção de “vibração” por Dominique Boullier (2015, 2023). Em sua obra de reatualização crítica das teorias miméticas de Gabriel Tarde ([1890] 1993), Boullier insiste em como as ideias, circulando entre invenção e oposição, nos afetam e agem sobre nós. De acordo com Boullier, a teoria do fato sociodigital também deve levar em conta, além dos conceitos sociológicos tradicionais como “representações”, “indivíduos” ou “coletivos”, as “entidades circulantes que são as vibrações”, afim de identificá-las no surgimento de sua replicação, que se efetua principalmente pela circulação intensiva dos memes.
13De uma maneira surpreendente, ainda que lógica, as reflexões deste número nos levaram a conferir à abordagem de Dawkins uma nova vitalidade. Se a etimologia da palavra “meme” é frequentemente lembrada nas introduções de artigos e obras científicos que lhe são consagrados, poucos estudos concentraram-se no que resta da metáfora biológica em nossas práticas meméticas contemporâneas: isto é, a maneira pela qual o discurso em ciências biológicas e o imaginário ligado aos seres vivos dão forma à maneira pela qual representamos e praticamos a Web, caracterizamos o corpo do usuário ou usuária dos dispositivos digitais, o funcionamento de seus órgãos, a abrangência de suas aptidões. Quais são as filiações que ligam os memes anteriores à Web aos memes que compartilhamos online? Quais são as relações entre a biologização da cultura e a ecologia das imagens digitais nas quais os memes nascem e se propagam (Szendy, 2021)? O que a apropriação contemporânea dos memes pode nos ensinar sobre as articulações entre o entendimento dos seres vivos e o entendimento do que é técnico e do que é cultura?
14Assim, este número propõe, para além das metáforas que considerariam as imagens compartilhadas online um "ecossistema" digital ou a vida orgânica como um sucedâneo desorganizado do mundo digital, articular os parentescos e parentelas que vinculam a vida e os memes através de uma pluralidade de gestos de produção e reprodução. Na tentativa de pensar memes e vida juntos, de sair da binaridade entre imagens = não-vida e corpos orgânicos = vida (ou o contrário), convidamos autoras e autores a restituírem “histórias parciais e multiespecíficas” (Haraway, 2020) que levam os memes a nascer, deslocar-se, combinar-se e morrer, e a identificar o papel dos corpos, dos seres vivos e de sua mortalidade neste ciclo de vida dos memes.
15À luz dos desafios ecológicos contemporâneos, as autoras e autores seguiram os passos de Donna Haraway (2020) e nos propõem permanecer com este problema que estremece a linha entre humanos e não-humanos, viventes e não-viventes, corpos biológicos e imagens culturais:
Face ao insistente excesso de sofrimento na história que tecem as espécies companheiras, não me interesso nem em uma reconciliação, nem em uma regeneração, mas me apego profundamente em possibilidades mais modestas de regeneração parcial e de devir conjunto. Chamemos isso de: permanecer com o problema. Desde então, procuro histórias reais que também são fabulações especulativas ou especulações realistas. São histórias nas quais jogadores multiespecíficos, por mais que estejam enredados em traduções parciais e defeituosas da diferença, podem reconstruir maneiras de viver e morrer de acordo com um desenvolvimento limitado, mas ainda possível, com uma regeneração ainda viável. (Haraway, 2020, p. 25)
16“Make memes not babies!”, essa poderia ser a mensagem deste número fazendo eco ao bordão formulado por Donna Haraway em sua obra Staying with the trouble (2020): “Making Kin not babies!” Essas entidades meméticas, criaturas e criações, entidades híbridas e agentes, generativas e persistentes, que povoam nossas vidas digitais e nos unem a tantos outros companheirismos, devem ser reconsideradas sob a perspectiva de novos parentescos sociodigitais. Este número apresenta, desta forma, idealmente, uma nova cosmo-ontologia memética, ciborgueana e relacional, entre organicidade e socialidade, do vibratório ao simpoiético.
17Cada uma das partes do presente número é consagrada a uma sequência cronológica da vida dos memes: sua formação ou engendramento, sua reinvenção ou reencarnação ou sua replicação ou transmissão. Os autores e autoras têm como ponto em comum a abordagem das diferentes etapas deste sequenciamento temporal na articulação das relações multiespecíficas e parciais entre os memes e suas formas de vida. Os artigos contam, cada um à sua maneira, a replicação das imagens-sons e o desenvolvimento de uma vitalidade memética entre agenciamentos tecno-culturais, mas excluem as fábulas de seleção natural e extrapolam a noção de separação entre técnica e cultura.
18A primeira parte do número é dedicado ao engendramento dos memes. Se a transformação é uma das condições de existência do meme, podemos tentar identificar, como diversos trabalhos já fizeram, os momentos precisos em que uma figura memética específica aparece no palco internacional. Este esforço de reconstrução das etapas que levaram da formação de um meme à sua popularidade contribui não somente a construir uma enciclopédia memética dinâmica, mas nos permite também compreender de onde vêm os personagens que povoam nossos imaginários. Este capítulo questiona então o nascimento de algumas figuras meméticas que hoje têm suas próprias biografias culturais (Kopytoff, 2006), ao retraçar os itinerários nos diferentes espaços intermidiáticos. Michel Marcoccia se interessa pela origem do meme El Risitas, mostrando as idas e vindas complexas dos memes nos espaços online e offline. Os itinerários do El Risitas descrevem um exemplo interessante da memeficação da realidade e do vivente: hoje, qualquer personalidade pública, famosa ou não, pode tornar-se um meme “vivo” sem querer. Esse processo atinge de várias maneiras a vida das pessoas memeficadas. Michel Marcoccia discute também as razões do sucesso deste personagem, assim como as consequências em sua vida (e morte). Kévin Zanin e Thibault le Page propõem-nos uma tradução (em francês) do primeiro número do fanzine Digital Drifting que eles co-escreveram em inglês. O artigo apresenta uma genealogia do meme Wojak, retraça suas origens e explora as inúmeras evoluções e reapropriações, sem, contudo, tentar sem exaustivo. O trabalho de pesquisa-criação que conduziram desde as deambulações online toma a forma de um ensaio visual que ilustra, através deste meme, as percepções antagonistas e polarizadoras da sociedade de consumo contemporânea.
19A segunda parte deste número analisa as reencarnações do meme, e tenta reconstituir o mosaico das manifestações contingentes que lhes dão sentido. Apoiando-se sobre a metáfora do vivente, ela explora as diferentes modalidades de circulação dos memes nos espaços e nos tempos de vida digitais. Os inúmeros avatares dos memes trazem à vida um bestiário contemporâneo de criações e de criaturas digitais, de procedimentos retóricos e de hibridações triviais (Jeanneret, 2014) ou cibernéticas, de transições midiáticas entre os ambientes online e offline. A propagação dos memes é resultado de uma prática de reenactment ou de remix capaz de trans-formar os espaços midiáticos e as realidades que assimilam. Martine Créac’h e Béatrice Mazoyer dão continuação ao desafio lançado pela conta do Instagram, “Tussen Kunst & Quarantaine”, que convidou seu público a escolher e encarnar uma obra de arte durante a pandemia da Covid-19. As autoras retraçam quais as dinâmicas criativas estão em ação em um corpus de 80.000 publicações nas quais os internautas tornam-se os protagonistas de quadros vivos. Ao analisar as lógicas da viralidade que caracterizaram este desafio, elas apresentam as gambiarras inventivas que criam laços online, mas também de que maneiras eles contribuem a devolver uma certa vitalidade às criações do passado - os quadros, neste caso - e aos museus. Justine Simon discute a pertinência de paradigmas musicais para a compreensão das dinâmicas que animam a vida dos memes nas redes sociodigitais. A autora inscreve essas dinâmicas em uma tradição em que os gatos – essas criaturas ilustres da Web – inspiram os universos musicais. Em especial, ela aponta como a vitalidade dos avatares meméticos de #GatinhosFofinhos está no cruzamento de várias problemáticas próprias à cultura digital contemporânea e à cultura do remix. Em sua análise das práticas de escrita sonora, o remix emerge desta maneira como uma experiência de criação participativa, que faz convergir atividades lúdicas e ativismo digital. Valentin Goujon e Donato Ricci retraçam a história do meme Shoggoth with Smiley Face, que apresenta analogias entre criaturas ficcionais monstruosas tiradas do universo do escritor H.P. Lovecraft e os sistemas de inteligência artificial generativa como o ChatGPT. O artigo relembra o que está na origem dessa analogia, o aspecto monstruoso das imagens dos primeiros modelos de geração de imagens. Em seguida, apresentam as evoluções do meme, como resultado de saltos tecnológicos (é o sistema de IA que se torna monstruoso), de sua apropriação por alguns autores e autoras de IA, mas também as possibilidades técnicas oferecidas pelos modelos geradores de imagens. Este trabalho sobre a domesticação da analogia nos remete à condição das metáforas “mortas”, tendo esgotado a força de seu significado (Ricœur, 1975).
- 10 A Idade Média é uma fonte de inspiração para a criação memética, o tema já deu vida à diversas pági (...)
20Como falar dos memes sem antropomorfismo, sem ventriloquia, sem fazer deles simples instrumentos de explicação de “nossos” modos de comunicação? Quais metamorfoses do discurso e dos gestos de transmissão têm origem na expressão coletiva em torno dos memes? A terceira parte deste número se preocupa com a maneira pela qual os memes subvertem os ecossistemas de transmissão dos saberes, assim como seus sistemas de escrita. Ela discorre sobre o que acontece com a vibração memética ao circular pelo prisma das estruturas sociais humanas, e também estuda os corpos não-humanos e não-viventes, animais e vírus que os memes carregam nas comunidades de interpretação adentro. A transmissão (ou “promemitura”) afeta as práticas de produção coletiva das comunidades “epidêmicas” que se elaboram em torno dos memes, principalmente através de experiências pedagógicas alternativas que se transformam em dispositivos de transmissão de saberes subversivos. Marina Gazzini demonstra que os memes podem ser ferramentas pedagógicas que permitem abordar, através de imagens, temas históricos complexos. Ela apresenta sua experiência de ensino de história medieval10, em um contexto acadêmico estremecido pela crise sanitária, quando surgiram novos desafios pedagógicos. A utilização de memes em contexto pedagógico permite revelar aos alunos as dificuldades em falar das contradições específicas da Idade Média, ao mesmo tempo em que torna possível uma reatualização do passado. Sua experiência como professora torna-se, assim, uma oportunidade para entender o que pode ser “memeficado” ou não, de acordo com os códigos sociais contemporâneos. Nataly Botero propõe analisar os resultados de oficinas de criação e edição de memes organizados com estudantes. Se essas oficinas têm uma dimensão pedagógica ao transmitir métodos de análise do discurso ecológica (transmissão de humanos a humanos), também são uma oportunidade para identificar o lugar dos memes e da cultura participativa na construção de um ponto de vista sobre o vivente, e de testar a capacidade dos memes em articular diferentes relações entre humanos e não-humanos, distanciando-se de uma visão antropocentrada.
- 11 Em português: A política pop online. Os memes e os desafios da comunicação política.
21Essas três partes, que poderão ser lidas na ordem que propomos ou de acordo com os critérios que os leitores e leitoras acharão mais pertinentes, serão seguidos por uma tradução de um artigo e de uma nota de leitura. No ensaio “Corpos na tela”, de Valentina Tanni traduzido do inglês por Anne Getzler, emerge a importante questão dos memes performativos. O ensaio explora uma série de práticas virais fundadas na execução, na documentação e no compartilhamento online de gestos que podem parecer absurdos à primeira vista, e nos mostra como os memes agem sobre a comunicação não-verbal incorporando-se em repertórios corporais. Historiadora de arte, Valentina Tanni situa esses protocolos gestuais na linhagem da arte conceitual e de suas prescrições participativas, propondo observar as similitudes, frequentemente inconscientes, entre performance artística e meme performativo. Finalmente, Stefano Vicari propõe uma resenha do livro “La politica pop online. I meme e le sfide della comunicazione politica11, escrito por Gianpietro Mazzoleni e Roberta Bracciale, e publicado na Itália em 2019. Segundo a análise dos autores, Stefano Vicari destaca que os memes têm o poder de favorizar a participação coletiva na vida política: sua leveza relativa permite, potencialmente, dar vida a discursos críticos da autoridade e torná-los acessíveis a um público mais vasto.
22Essa resenha e essa tradução introduzem uma importante questão, a da performatividade dos memes, que será tratada no número 13 de Hybrid. O número investigará em detalhes as questões da recepção dos memes e de seus usos por internautas ou de sua instrumentalização com fins comerciais ou políticos pelas instituições. Sua dimensão perlocucionária, mas também seu rearmamento [weaponization], serão analisados mais especificamente.
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