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1Se você usou o TikTok ou o Instagram em meados de maio de 2024, talvez você tenha visto vídeos de estranhos combates entre gnomos e cavaleiros. Uma série de vídeos chamada Crawly The Green Wizard Gnome1, viralizou rapidamente. Nos vídeos, um homem barbudo veste uma capa verde, usa um chapéu branco de mago e sobrancelhas postiças; ele aparece de repente em lojas de marcas fast-fashion e espalha o caos por onde passa, entrando em todos os lugares, principalmente em zonas de acesso proibido ao público. O homem que encarna o gnomo anda agachado e carrega uma ferramenta estranha, um tipo de redinha de capturar borboletas e a brande no ar como se fosse uma espada ou uma varinha mágica. Esse gnomo verde saltita animado no ritmo de uma música2, como se a criatura fosse invocada graças a essa melodia perturbadora, pelas misteriosas forças da Web. O gnomo, às vezes, pronuncia frases incompreensíveis com uma voz aguda e perturbadora. Ele está quase sempre acompanhado por outros gnomos vestidos da mesma maneira e que o ajudam a semear o pânico nas lojas antes que os funcionários intervenham. Nessa série de vídeos aparecem também outros personagens tão enigmáticos quanto os primeiros, os cavaleiros (Knights). Eles são inimigos jurados dos gnomos em uma batalha cujas causas ou regras são desconhecidas. Munidos de suas armaduras de alumínio brilhante, estes indivíduos de grande estatura aparecem para perseguir os gnomos e impedir suas ações maléficas. Rapidamente, a trama foi copiada por inúmeros perfis e contas que começaram a criar todo o tipo de conteúdo para alimentar o lore3 dessa inimizade imaginária4.
2À primeira vista, essa trend memética representa uma simples disputa virtual entre gnomos bizarros e cavaleiros cosplayers. Entretanto, sob a aparente leveza dissimulam-se dinâmicas sociais mais profundas: entre as inúmeras trends que aparecem toda semana, a dos Gnomos x Cavaleiros parece-nos ilustrar a ambiguidade das batalhas de memes (Arkenbout & Scherz, 2022) engajadas pelos internautas.
3Os espaços sociais criados pelas mídias informatizadas não são unicamente a morada de gatinhos fofinhos (Simon, 2024) ou de personagens tragicômicos como o El Risitas (Marcoccia, 2024). Eles também servem de suporte para exprimir conflitos e controvérsias que às vezes têm consequências nefastas sobre nossas vidas dentro e fora das telas. Em alguns casos, as intenções dos autores e autoras dos memes vão muito além do riso, embora nem todos os aspectos das trends meméticas, ou de seu contexto de interação (Wagener, 2022, p. 9), estejam claros para o conjunto dos internautas.
4Operadores de múltiplas idas-e-voltas entre os espaços conectados e desconectados, os memes podem tornar-se um poderoso vetor de ideologia que polariza e politiza. Vetores de significações sociais compartilhadas (Defilippi & Fritz, 2022), os memes fazem emergir comunidades (precárias e provisórias) que podem se construir “em negativo”, contra alvos precisos (categorias, ideias e visões de mundo indesejáveis). A luta entre gnomos e cavaleiros coloca em cena um desejo individual e coletivo de “tomar partido” contra alguma coisa antes de tudo, seguindo tendências sociais mais afetivas que racionais: dinâmica que retrata uma boa parte da produção memética contemporânea.
5De acordo com essa perspectiva, a batalha entre gnomos e cavaleiros nos convida a refletir sobre dois pontos importantes. O primeiro tem relação com a presença de personagens (fadas, mágicos, elfos, animais, seres humanos, etc.) que entram na batalha anunciando ter “escolhido um campo”—“The magicians chose Gnomes”. Na luta, todo.as são estimulados a escolher um campo e não podem desistir, como se o destino do mundo dependesse disso: a escolha não é opcional, é necessária. Este fenômeno é reflexo da polarização online e offline e a encoraja. Usuários e usuárias se dividem em facções, simbolizando uma tendência crescente de tribalização digital. Ao utilizar o humor, esse tipo de meme revela certas tensões sociais contemporâneas e às vezes até serve de suporte para discursos codificados e polêmicos. A obrigação de escolher um campo e lutar contra o outro é uma metáfora da condição contemporânea, a da polarização imposta pelo discurso dominante, que, por trás da escolha binária, sugere uma aparente falta de alternativas em diversos campos da ação cidadã e política. Ela esconde outras formas de vida possíveis, em que uma pluralidade de pontos de vista poderia coexistir. Essa pluralidade poderia ser percebida como uma riqueza e todos procurariam identificar sua própria “cegueira aspectual” (Wittgenstein, 2014, p. 300) na compreensão do ponto de vista do outro em vez de apenas afirmar que o próprio ponto de vista é naturalmente (e, por isso, incontestavelmente) o melhor e deveria ganhar (Saemmer et al., 2022).
6O segundo ponto tem relação com a evolução do meme e da batalha. Os memes do Green Wizard Gnome, como muitos outros, sofreram uma certa institucionalização, com a aparição de vídeos mostrando gnomos em situações divertidas da vida cotidiana, de maneira relativamente desconectada do lore belicoso. Além disso, o sucesso do meme levou algumas marcas a se apropriarem do meme para produzir conteúdo, transformando-o assim em suporte publicitário pela ressemantização; os gnomos tornaram-se mascotes publicitários5.
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7As incursões dos gnomos pelas lojas mudam então de significado: não são mais uma perturbação da ordem capitalista6, herdeiras (inconscientes) de práticas situacionistas7, mas, ao contrário, um instrumento que permite reforçar as lógicas da promoção mercantil. Essas formas de apropriação dos memes podem conduzir a uma profissionalização da área, em contraste com a espontaneidade do movimento, fixando o sentido, domesticando o potencial selvagem8 e, desta maneira, indo contra a circulação e ressemantização dos memes que é, no entanto, o cerne dessa forma cultural (Jost, 2022). Encontramos aqui as dinâmicas descritas, principalmente, pelos situacionistas, operando tensões entre um movimento criativo e sua institucionalização9.
8Opera-se a passagem, arriscada e potencialmente problemática, de uma bricolagem memética animada por um espírito de participação a formas de engenharia memética usadas com finalidades comerciais ou políticas. Tendo como exemplo a batalha entre gnomos e cavaleiros, cada performance, até mesmo a mais ingênua, pode ser explorada pelos mecanismos da captação capitalista ou institucional. Ao mesmo tempo, o uso das trends por agentes comerciais ou institucionais parece-nos ser o sintoma mesmo de uma tomada de consciência do poder dos memes.
9Este número de Hybrid dedicado aos memes que vocês têm sob os olhos é a sequência de um primeiro volume publicado em novembro de 2024. Intitulado Nascimento e renascimento dos memes. Vidas e vitalidades dos memes, ele se concentrou em definir os memes, seus perímetros, as diversas formas de vida memética que povoam nossos espaços comunicacionais e também seus processos de criação. Neste segundo volume, desejamos pensar este objeto comunicacional com base em sua recepção. Observaremos mais de perto as evoluções de suas representações, suas vidas sociais e as práticas a eles associadas.
10No primeiro volume, optamos por uma abordagem pragmatista, preocupada com as transações socio-meméticas ao revisitar uma teoria biológica da evolução que está na origem da noção de meme. De fato, o gesto inicial de Richard Dawkins em “O gene egoísta” (1976) estabelece a biologia como ciência capaz de explicar a vida dos seres vivos, mas também as das formas culturais, por replicação e seleção natural. Essas noções, inspiradas da área biológica, puderam contribuir para o desenvolvimento de metáforas tais como “viralidade” ou “ideias contagiantes” e nos fazem pensar que indivíduos ou comunidades infectam-se passivamente pelas entidades digitais que são os memes.
11Não abandonamos uma certa ideia vitalista; contudo, não se trata de uma ideia biologizante, de Dawkins, mas uma mais política, de Dewey, para quem a experiência da aisthesis é a experiência mesma da vida; os memes, companheiros da vida digital, são entendidos através dessa dinâmica.
12Em nossa tentativa de pensarmos juntos memes e vida, de sair da binariedade entre imagens e corpos orgânicos, os autores e autoras reunidos no primeiro volume convidaram-nos a reconstituir “histórias parciais e multiespecíficas” (Haraway, 2020) que levam os memes a nascer, deslocarem-se, recombinarem-se e a morrer. “Make memes not babies! ”, essa poderia ser o slogan do número 12, fazendo eco àquele formulado por Donna Haraway em sua obra Staying with the trouble (2020): “Making kin not babies! ” As entidades meméticas, entre criaturas e criações, entidades híbridas e agentes, geradoras e persistentes que povoam nossas vidas digitais e nos unem a tantos outros, devem ser reconsiderados sob a perspectiva de novos parentescos sociodigitais. Apresentamos uma nova cosmo-ontologia memética, ciborgueana e relacional, entre organicidade e socialidade, do vibratório ao simpoiético. Ambicionamos compartilhar os desdobramentos de uma vitalidade memética entre agenciamentos tecno-culturais externos às fábulas da seleção natural e que vai além da separação entre técnica e cultura. Cada uma das partes do número 12 foi consagrada a uma sequência cronológica da vida dos memes: sua formação ou engendramento, sua reinvenção ou reencarnação ou sua replicação ou transmissão.
13Este segundo volume, será consagrado à recepção memética: uma recepção criadora (de Certeau, 1980) pela qual cada utilização reativa o poder de ação memético, recontextualizando seu significado. Se vermos os memes como jovens criaturas impetuosas dotados de uma vitalidade instintiva, pertencentes a um ecossistema Internet livre, não podemos então considerar que sua profissionalização e institucionalização como símbolo de uma maturidade, da sua entrada na fase mais “adulta” de um movimento de criação?
14Tendo perdido sua inocência, o palco da recepção dos memes seria assim a arena de uma guerra (Lolli, 2017), na qual se afrontam a estratégia dos poderosos—os cavaleiros—e a tática dos fracos—os gnomos. As poíesis espontâneas dos usos privados são testemunhas dessa situação tanto quanto o domínio mercantil ou institucional.
15Os gestos que dão origem às práticas meméticas perdem potencialmente sua ingenuidade lúdica: eles tornam-se uma ferramenta de construção identitária ou armas de persuasão; podem ser alvos de apropriação cultural quando sua reprodução ou utilização planejada serve a fins precisos, comerciais ou pedagógicos.
- 10 Pensamos aqui, principalmente, no papel dos memes nas eleições americanas de novembro de 2024. Ver, (...)
16Por uma parte, os memes participam ao jogo político da influência10: agora eles estão presentes em debates em canais de televisão, longe de seu ecossistema digital de origem. Incorporado às evoluções dos conflitos geopolíticos, acompanhando as evoluções industriais em campanhas de marketing, apoiando discursos e demarcações ontológicas de grupos dominantes na televisão, no rádio e nos livros, os memes contribuem à delimitação de arenas de controvérsias sociotécnicas (Akrich et al., 2006). Eles participam tanto da construção de uma relação de saber e poder entre atores e atrizes engajado(a)s, como da elaboração de um novo arsenal retórico feito de imagens pop e de posturas irônicas.
- 11 O arquitexto, proveniente da semiótica dos escritos das telas, designa “modelos padronizados que, n (...)
17Por outro lado, eles estão cada vez mais padronizados, com propostas de templates prontos para serem personalizados. As modificações formais estabilizam-se progressivamente, devido ao fato que sua reprodução é enquadrada pelo arquitexto11 de programas de criação usados massivamente e que as evoluções tomam forma nas práticas produtoras socialmente reguladas.
18O uso lúdico do meme é entremeado por uma recriação estratégica, in vitro. Observa-se, de um lado, usos in vivo, de performances ainda livres, por mais que não sejam impensados, que exploram a horizontalidade e a agentividade popular. É um jogo de affordances digitais e sociais que se desenvolve, um questionamento contínuo sobre o poder de ação das formas sociais, de seus limites, de sua superação, dos ângulos mortos de sua reprodução.
19Essas apropriações em um contexto de mídias informatizadas geram propagações difíceis de identificar e uma vitalidade heterogênea. Entre empoderamento dos públicos e domínio estratégico, os memes tornam-se meio de expressão, ferramentas pedagógicas ou ainda meio de controle dessa expressão. Eles são elaborados e caracterizados por uma criatividade ligada ao “re” da repetição, da reprodução computacional e da circulação social (Colas-Blaise & Tore, 2021).
20Esses questionamentos iniciados pelos artigos deste número nos fazem mergulhar assim na dimensão de uma ecologia midiática. Eles levam em conta os ambientes digitais e extradigitais onde essas batalhas meméticas tomam forma, assim como os panoramas materiais e técnicos de seus confrontos, as ferramentas de criação e os perfis dos públicos envolvidos. A análise dos memes desenvolve-se em torno de suas performances (por sua capacidade de mobilizar) e de sua eficácia (pelos resultados obtidos). Ela investiga os agentes sociais que dão forma a essas dinâmicas, ao mesmo tempo em que examina como os dispositivos e os espaços comunicacionais são transformados pelos confrontos dos memes.
21Às questões sobre a performance dos memes estão associadas o estudo de seus efeitos, de sua eficácia, dos jogos de influência e persuasão. Os artigos interessam-se não só aos agentes sociais que participam destes processos, mas também às modificações dos dispositivos e dos espaços de comunicação que as batalhas meméticas produzem. Fazer uma distinção entre memes in vivo e in vitro permite-nos assim analisar idealmente a produção memética à luz das tensões sociotécnicas, das lógicas da indústria, das lutas culturais e das guerras atuais (Biardzka et al., 2023).
22Doravante, em vez de indicar duas essências meméticas, sendo uma mais autêntica do que a outra, a terminologia selecionada por este número insiste em um ponto “naturalista” da produção e análise dos memes: um momento em que os memes são estudados, produzidos e criados em “laboratórios”—podendo-se tratar de laboratórios de pesquisa científica, como aqueles dos quais fazemos parte, ou de usos pelos profissionais da comunicação que visam otimizar, facilitar e organizar os discursos e os comportamentos de seus “hospedeiros”.
23A racionalização da análise memética à qual contribuímos faz eco com a racionalização das ferramentas de produção, que talvez possam ser consideradas mais como ferramentas de comunicação estratégica do que simples ferramentas de concepção de imagens. Ao conceber os memes como espécies “companheiras” (Haraway, 2020) que escapam dos usos do usuário ou usuária modelo (Gantier, 2015) não estaríamos entrando em uma fase em que os memes “companheiros” e memes “domesticados” convivem e se misturam em uma esfera pública de contornos complexos?
24Ao retomar a oposição in vivo e in vitro, este número visa a clarificar a combinação do científico e do industrial à luz das tensões históricas de durações múltiplas, do espectro das guerras como também dos “sofrimentos da História” (Haraway, 2020), das relações de exploração e de dominação dos não-humanos, mas também da corporeidade e da biologia humana. Ele também oferece a oportunidade de refletir sobre o lugar da linguagem científica e de sua racionalidade na alteração do ecossistema memético—e, in fine, discutir a automodificação coletiva dos corpos dos pesquisadores e pesquisadoras pelo prisma desses jogos meméticos (nem sempre inocentes) e dos dispositivos de produção, que seja por conversas de Whatsapp, quer seja em diálogos museais.
25O primeiro eixo de reflexão levantado neste dossiê responde as questões sobre a condição natural e livre dos memes após sua profissionalização e padronização, sobre o papel social de sua produção espontânea, sobre o poder que seus criadores conservam. Esses memes selvagens ainda se encontram no ecossistema digital, ainda existem em sua forma vital, mas como nós nos posicionamos face a este objeto info-comunicacional quando ele é domesticado?
26Albin Wagener e Erica Lippert propõem um estudo sobre a recepção dos memes. A pesquisa deles inscreve-se em uma perspectiva analítica que combina análise do discurso e análise lexicográfica. Elus analisam as emoções e os imaginários que um corpus de memes sobre o aquecimento ambiental suscitam. Os resultados do estudo mostram que, por um lado, nem sempre é necessário entender as referências culturais ou contextuais próprias a um meme para entender sua mensagem principal; por outro, os memes podem ter um papel significativo na desdramatização de assuntos sérios e complexos como o aquecimento climático graças ao humor.
27Valentyna Dymytrova une performance memética e marchas militares. Tendo como base uma análise do papel dos memes na reconfiguração de comunidades afetivas, ela estuda a coreografia corporal em contexto de guerra (e, neste caso, a guerra na Ucrânia). O artigo insiste principalmente em como a guerra altera as condições da produção memética, como um panorama de análise: a autora nos convida a reconsiderar os laços entre derrisão e desestabilização, entre corpo em cena e resistência contra a violência e a morte. A autora também mostra como os memes contribuem não somente ao desenvolvimento sociodigital, de uma arte hostil de guerra, mas também às formas de coreografias coletivas de resistência—principalmente vocais—pelas quais os gritos de guerra e seus afetos tanatopolíticos—a agressividade, a rejeição, o ódio—se transformam em relatos de vida e solidariedade.
28Jorge Sosa propõe seguir os passos icônicos e meméticos do malandreo, personagem paradoxal da cultura popular venezuelana e determinar com precisão o papel desempenhado pelos memes na evolução das práticas religiosas e culturais venezuelanas. Com esta revinculação do meme em sua vitalidade iconológica, ele evoca as particularidades sociotécnicas da produção de memes a partir de um território cultural não-europeu e não-norte-americano. Esse descentramento cultural nos coloca face à inúmeros desafios epistemológicos ligados à análise dos memes e de sua vitalidade: o artigo demonstra a maneira pela qual sua produção e sua análise são tributárias, por um lado, de um certo conhecimento sobre o poder de ação das imagens, ou até mesmo sua dimensão sagrada—como elas podem insuflar a vida e redefinir seus contornos—e, por outro lado, um certo conhecimento sobre o poder de ação (e de tormento) dos corpos—principalmente pela violência que informa e dá vida aos memes, fazendo um contraponto com sua dimensão humorística.
29Maximilian Schlüter apresenta uma mise em memes do corpo hegemônico masculino por um tipo de memes populares, chamados “Reject Modernity, Embrace Masculinity” (RMEM). A análise tem como base um corpus de vídeos curtos que emergiram de comunidades masculinistas por volta de 2021. Schlüter explora como a construção da narrativa faz emergir um discurso sobre o corpo que valida a cultura bodybuilding e encoraja à prática de exercícios físicos e ao ser fitness. Conforme o tropo do “corpo em sobrepeso”, essa narração, com fortes características masculinistas, é incorporada no e pelo meme e revela uma dimensão corporal dessas produções digitais que o autor observa “through the Lens of Bodies”.
30O segundo eixo de reflexão questiona os usos pedagógicos e institucionais dos memes. Retomaremos a metáfora das armas de guerra biológicas, passando de uma forma biótica à uma vida sintética, de laboratório, controlada, estudada, estratégica. Os agentes mercantis, profissionais e institucionais assumem diversas posturas face aos públicos digitais, propondo uma domesticação variada dos memes, uma reelaboração que este segundo volume analisará em suas diversas facetas. O laboratório não é somente um lugar de apropriação racional, mas também lugar de experimentação, de engenharia. Da necropolítica às políticas da vida, ele simboliza o lugar do controle sobre as formas de vida e morte dos memes.
31Cécile Velley e Sarah Cordonnier observam a difusão da criação memética no contexto museal, através de análise cruzada de várias instituições patrimoniais francesas e canadenses. Elas mostram como os memes agora fazem parte da estratégia de comunicação e mediação das coleções, destacando um ponto de viragem humorístico na mediação patrimonial que parece indicar uma atenuação da fronteira entre visitantes e internautas. A abertura das instituições à memificação das obras tornou-se hoje uma ferramenta de ativação digital das coleções, e, assim, um instrumento de difusão pedagógica e de inovação das práticas de mediação patrimonial. Os memes, em contexto museal, vitalizam as obras e, ao prolongar os discursos institucionais que enquadram a conservação, atraem novos públicos.
32Stéphanie Marty oferece uma descrição geral do encontro entre memes e marketing, por meio do estudo da produção de seis marcas que usaram memes como uma ferramenta de branding. A produção memética mostra-se aqui como um novo campo de estratégia publicitária, pela qual os memes tornam-se moduladores essenciais dos ecossistemas promocionais. A narrativa publicitária encontra-se reconfigurada pelas dinâmicas de controle operadas pelas marcas, mas também pelas reciclagens transformadoras dos internautas. A vida viral dos memes entrelaça-se às dinâmicas de federação publicitária tornando-se um laboratório de estratégias para a captura da atenção e da narração dos produtos de consumo.
33No capítulo “Vocais cruzados e experiências vividas”, Étienne Candel e Gustavo Gomez-Meija prosseguem o diálogo científico iniciado há tempos pelas vozes/vias da pesquisa-criação. Eles escolheram, a partir desta proposta, dedicarem-se à memória dos memes que os dois autores julgam estar no meio do “sensório de nossa época tecno-barroca” (players, GIF, screenshots). A abordagem da pesquisa-criação toma forma de uma conversa assíncrona emulada no WhatsApp: uma sucessão de notas vocais e de trocas sucessivas e non-sequenciais. Assim são exploradas as relações entre a memória íntima dos memes e os aspectos sociais de uma memória aparelhada por diversos dispositivos tecnossemióticos. Mesmo se Étienne Candel e Gustavo Meija dizem não terem plenamente certeza de que o “resultado” deste trabalho seja compatível com um estudo científico—seria um trabalho completo ou discussão antes da produção de um outro “verdadeiramente” científico—, eles desejaram compartilhar os aspectos “vivenciados” dessas experiências (ordinárias, acadêmicas, criativas), e preservar uma “vitalidade” das modalidades de análise.
34Enfim, para fechar este número, Louis Le Corno retoma, recapitulando, o segundo volume de Critical Meme Reader II. Meme Tacticality (2022), coordenado por Chloë Arkenbout e Laurence Scherz. O livro desenvolve uma reflexão sobre a performatividade dos memes vistos como armas e ferramentas potenciais ao serviço de diferentes causas. Considerando com seriedade o poder dos memes, esse volume investiga a capacidade de dar forma aos imaginários coletivos e políticos, ao mesmo tempo que propõe reflexões importantes acerca do trabalho árduo de criação dos agentes envolvidos. Além disso, o diálogo com os artigos nos possibilita retomar nossa questão inicial, isto é, o que os memes fazem “de nós” e acrescentar, talvez, uma pergunta mais programática para o futuro: o que é que os memes nos permitem fazer?
35Este número apresenta, finalmente, uma oportunidade de autorreflexão sobre a possibilidade de colocar os memes in vitro: de que maneira, enquanto pesquisadores, podemos abordar as dinâmicas meméticas que parecem escapar a todas tentativas de racionalização, que resistem a qualquer formalização e que evoluem de maneira tão rápida e pouco previsível? Tentamos achar alguns elementos de resposta durante o encontro acadêmico “No(u)s mèmes” que organizamos em outubro de 2022, mas também no diálogo com os autores e autoras dos artigos dos números 12 e 13 de Hybrid.
36Os artigos publicados tentam, cada um à sua maneira, capturar a complexidade dos fenômenos observados sem, no entanto, tirar deles seu relevo, buscando encontrar abordagens metodológicas adequadas. Essas bricolagens metodológicas, abertas à pesquisa-criação, representam ao mesmo tempo um exame e um ponto de partida para futuras pesquisas sobre esse tema. As lacunas existentes entre as realidades meméticas e nosso esforço de compreensão nos mostram que, no fim das contas, a produção de memes ainda está muito viva: apesar das tentativas de normalização das dinâmicas de criação popular, os memes não se curvam às formas de padronização e de instrumentalização, mas se reinventam sempre.
- 12 Poderíamos acrescentar que o estudo dos memes exige um certo esforço mental, um mental labor (Negha (...)
37Essa resistência vale tanto para os usos comerciais dos memes que para nossas tentativas acadêmicas de circunscrever o tema. Deste ponto de vista, se com certeza fizemos algo aos memes colocando-os in vitro, eles também nos impactaram nossas maneiras de pensar e de fazer pesquisa12 ao nos obrigar a adotar abordagens mais flexíveis, híbridas, criativas. É uma relação de “duplo desvio” (Deleuze, 1996) que essas pesquisas estabeleceram com seu objeto, suas práticas; os autores também saem transformados. Ao nos obrigar a navegar entre rigor acadêmico e intuição, entre análise formal e imersão em práticas culturais muitas vezes incompreensíveis, os memes não são mais unicamente objeto de estudo, tornam-se coautores da pesquisa, catalisadores de novas formas de conceber as dinâmicas culturais da era digital.
38Desta maneira, este trabalho não se encerra com este número, mas abre um leque de possibilidades para explorar as maneiras pelas quais nossos imaginários coletivos são moldados de volta por formas expressivas e interativas. Em definitivo, os memes nos recordam que uma parte essencial de sua força vem da capacidade de não se deixarem capturar definitivamente, de permanecerem sempre um passo à frente, como gnomos que rivalizam em astúcia para escapar dos cavaleiros.