Modernidades múltiplas na arquitectura portuguesa dos anos 1940
- Cet article est une traduction de :
- Modernités plurielles dans l’architecture portugaise des années 1940 [fr]
Résumés
Le cinéma Batalha, conçu par l’architecte Artur Andrade (1913-2005) à Porto, est considéré dans l’historiographie de l’architecture comme une œuvre paradigmatique du Mouvement moderne au Portugal. Inauguré en 1947, au lendemain de la Seconde Guerre mondiale et dans le contexte politique d’une dictature répressive, le bâtiment intègre des solutions marquées par une surprenante audace formelle, montrant que les architectes portugais étaient parfaitement au fait des codes de l’architecture moderne internationale. Sa modernité se reflète avant tout dans le recours à de nouveaux matériaux et de nouvelles techniques, et trouve son corollaire symbolique dans l’immense vitrage incurvé de sa façade, qui offre une image publique emblématique d’une puissance visuelle aussi surprenante que dynamique. Allié à cette technique moderne, le cinéma incorpore aussi une grammaire imprégnée des valeurs de l’Art déco, que l’on retrouve dans la composition hiérarchisée et dans les choix stylistiques de nature ornementale. Le potentiel plastique et ludique des matériaux nobles est mis en évidence à différents niveaux par la conception minutieuse du mobilier, des sols et, de manière plus évidente, dans le traitement des surfaces, où diverses interventions plastiques composent une scénographie exubérante, réalisant le Gesamtkunstwerk (l’œuvre d’art totale) prôné par les avant-gardes et que la révision critique du Mouvement moderne se proposait de récupérer. La tendance à soigner la conception et à peaufiner le moindre détail vient du système d’enseignement des Beaux-Arts de Paris en vigueur dans les écoles de beaux-arts au Portugal, dont Artur Andrade était diplômé. Le Batalha incarne ainsi la coexistence entre d’un côté la volonté de mettre en œuvre la leçon moderne à laquelle les architectes portugais adhèrent et de l’autre la persistance des valeurs académiques de leur formation. S’appuyant sur le cas du Batalha, cet article se veut une réflexion sur la façon dont l’esthétique Art déco a imprégné de manière pérenne et selon les spécificités locales les premières œuvres liées au Mouvement moderne au Portugal, l’objectif étant de contribuer à élargir la discussion autour de la réception du modernisme dans les pays périphériques.
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Mots-clés :
Art déco, architecture moderne, modernisme, cinéma Batalha, Artur Andrade, Portugal, PortoIndice de palabras clave:
art deco, arquitectura moderna, modernismo, Cinema Batalha, Artur Andrade, Portugal, PortoPlan
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto 2023.11110.PEX, DOI https://doi.org/10.54499/2023.11110.PEX; https://muralinmotion.fcsh.unl.pt.
Introdução
- 1 Iniciado em 1942, até à proposta final o projecto teve duas versões.
- 2 Proprietária também dos cinemas Teatro Carlos Alberto, Salão Jardim Trindade e Salão High Life, loc (...)
- 3 «A Arquitectura de Hoje defendida por um grupo de arquitectos modernos. Artur Andrade fala-nos do B (...)
1Alicerçada no amplo sucesso da arte cinematográfica junto ao público portuense, em 19421 a empresa Neves e Pascaud 2encomendou ao arquitecto Artur Andrade o projecto de um cinema. A ideia seria construir um equipamento de acordo com parâmetros de actualização, conforto e salubridade e que se constituísse como referência deste ramo de negócio. Esta encomenda constituiu uma oportunidade extraordinária para a concepção de um edifício de “linhas modernas e arrojadas”3 e colocar em prática as ideias defendidas pelo Movimento Moderno de que o arquitecto era adepto, mas que pelo conservador e censório regime político em vigor, eram ainda de difícil aceitação.
2Desde o momento da sua abertura que o Cinema Batalha é publicitado tanto pela imprensa, como pelo seu autor, como moderno:
- 4 Ibid.
O projecto, dentro das limitações legais, foi orientado neste sentido: linhas modernas, arrojadas de que sou acérrimo partidário. E mal me parecia que assim não fosse – de mim, que sempre pugnei por uma Arquitectura a que podemos chamar “dos nossos dias” e que no nosso país tem encontrado meio pouco favorável e pouca compreensão de grande parte dos arquitectos, mesmo de muitos que se intitulam de modernos. Na generalidade as criações arquitectónicas dos últimos tempos são impessoais e incaracterísticas.4
- 5 Entre outros, TOSTÕES Ana, «Modernização e Regionalismo 1948-1961», in Arquitectura do Século XX: P (...)
3A filiação do Cinema Batalha ao Movimento Moderno reclamada pelo seu autor à data do projecto tem-se mantido até à actualidade. De facto, a historiografia canonizou5 este equipamento como um exemplo emblemático dessa mesma modernidade, fundada sobretudo nas inovações formais e técnicas que incorpora e aparatosamente exibe.
4Contudo, a leitura do edifício acusa uma linguagem de extraordinária riqueza híbrida que, contendo elementos trazidos indubitavelmente pela retórica ideológica moderna, transpõe a sua ortodoxia, manifestando, ao invés, imaginatividade de desenho, e um inusitado sentido cenográfico e lúdico. O Cinema Batalha, tal como grande parte da arquitectura cinematográfica produzida internacionalmente no período entre-guerras, incorpora uma gramática informada pela estética Art Deco que neste período atingia grande difusão.
- 6 Muito embora vários autores apontem a importância da Art Deco na produção arquitectonica das duas p (...)
- 7 SILVA Ilídio, «Ex nihilo nihil fit - O Cinema Batalha», in A Obra Nasce, n. 07, Porto, Faculdade de (...)
- 8 ALMEIDA Pedro Vieira de, Op. cit., p. 144.
- 9 Idem.
- 10 Idem.
- 11 Sobre o ensino Beaux-Arts em Portugal veja-se MONIZ Gonçalo Canto, «O Ensino Moderno da Arquitectur (...)
- 12 MONIZ Gonçalo, Op. cit., p. 97.
- 13 Entre outras, a revista L’Architecture d’Aujourd’hui, editada por André Bloc, com grande difusão en (...)
5Apesar da participação da Art Deco na caracterização da arquitectura portuguesa dos anos 1940 ser referenciada na historiografia6, a influência do referido estilo na configuração plástica e arquitectónica do Cinema Batalha apenas recentemente foi observada7 num artigo de Ilídio Jorge Silva. Analisando detalhadamente o projecto, o autor aponta a sua filiação à Art Deco, distanciando-o da proclamada matriz moderna. Efectivamente, seguindo a linha historiográfica fixada8, a decoração e o detalhe “de bom gosto”9 que esta incorpora, terão constituído referências para formular o início de uma arquitectura moderna em Portugal. De facto, por englobar uma formulação arquitectónica de códigos formais facilmente perceptíveis e reproductíveis, o estilo Art Deco facilmente se moldaria à frágil formação teórica dos arquitectos portugueses10. Estes, apesar de actualizados com as ideias anunciadas pelo movimento moderno e defendidas nos Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM), recebiam uma formação académica alicerçada no sistema de ensino Beaux-Arts, vinculado à École Nationale Supérieure des Beaux-Arts de Paris11. Fundado em valores culturais clássicos e ecléticos, este método equipava os arquitectos de uma base de conhecimento sólida e rigorosa, permitindo uma fácil transição entre diferentes estilos12. Esta qualidade seria aproveitada por muitos, nomeadamente pelo hábil manejo do vocabulário Art Deco, cujos exemplos circulavam em publicações da especialidade13.
6Se por um lado, esta condição colocava os arquitectos numa posição de fragilidade teórica e operativa perante os desafios de realização da ‘nova arquitectura’ para a qual não haviam sido formalmente instruídos, a adopção de uma linguagem de ‘compromisso’ e de percepção mais abrangente, abria a possibilidade de maior consenso, no que poderia favorecer a desejada aprovação junto às instâncias oficiais a quem, efectivamente, cabia o ónus da sua viabilização legal - obrigatória para a abertura e regular funcionamento do cinema.
- 14 Na área disciplinar da arquitectura ver por exemplo BRITES Joana. O capital da Arquitectura – Estad (...)
- 15 No campo artístico ver por exemplo LEAL Joana Cunha e SANTOS Mariana Pinto, «As Sete Cabeças do Mod (...)
7Apesar de não constituir um debate isento de contributos14, a pluralidade do modernismo tem permanecido à margem das principais investigações em arquitectura15. Tendo por base as recentes correntes historiográficas que questionam as narrativas dominantes da historiografia da arte e da arquitectura, e tomando como exemplo o Cinema Batalha, este artigo pretende ampliar a discussão em torno do modernismo, ao convocar a participação do estilo Art Deco na configuração e caracterização da arquitectura portuguesa dos anos 1940.
- 16 Desta integridade faz parte o destapamento e restauro de três pinturas murais, que durante décadas (...)
- 17 O Cinema Batalha reabriu ao público a 9 de dezembro de 2022.
8A pertinência da fixação do Cinema Batalha no quadro da historiografia internacional fortalece-se não apenas pelas suas qualidades plásticas próprias em análise, mas pelo seu posicionamento exemplar no quadro da conservação da arquitectura de cinematografia construída nos anos 1940. Com efeito, depois de décadas votado ao abandono, foi recentemente objecto de profundo restauro tendo sido redignificado pela devolução da sua integridade arquitectónica16 e sobretudo, pelo retorno à actividade para o qual foi concebido: a exibição de cinema17.
Questionando narrativas historiográficas, pluralizando o modernismo
- 18 FOSTER Hal, «Introducción al posmodernismo», in La Posmodernidad, Barcelona, Kairós, 2008. p. 7-17.
- 19 HITCHCOCK Henry-Russell e JOHNSON Philip, The International Style: Architecture since 1922, New Yor (...)
- 20 Segundo a máxima Form follows Function formulada no início do século XX pelo arquitecto norte-ameri (...)
- 21 LOOS Adolf, Ornamento e Crime, trad. Lino Marques, Lisboa, Cotovia, 2004 [1931].
9De um modo geral, o modernismo é identificado como uma construção cultural assente no mito do progresso e da superioridade formal e técnica, desenvolvida dentro de um determinado limite histórico18. Na área disciplinar da arquitectura, a historiografia definiu as suas directrizes segundo três pilares fundamentais: ênfase no volume em oposição à massa, regularidade em oposição à simetria, elogio dos materiais em oposição à decoração. Sintetizadas no início dos anos 1930, estas características constituiriam os princípios basilares do que internacionalmente seria designado como International Style19. Como o próprio nome indica, o estilo internacional propunha fixar uma fórmula que, pelo seu reconhecimento colectivo constituísse, pois, uma resposta de aplicabilidade universal. De entre os seus códigos formais estavam, entre outros, a propensão para a horizontalidade, amplos envidraçados, coberturas planas e ausência de decoração; os seus valores fundamentais radicavam na auto-referencialidade, o primado da função sobre a forma20, o retorno ao fundamental. A procura por uma linguagem arquitectonica de contemporaneidade e ruptura com a História havia, pois, na sua extrema ortodoxia, afastado qualquer referência a opções estilísticas de essência ornamental. De facto, a recusa ao ornamento era já desde o início do século reclamada por autores como Adolf Loos21 que, reagindo contra os excessos de ornamentação Arte Nova praticados em Viena desde o século XIX, associaria o ornamento a um crime pela sua inutilidade e célere condenação à obsolescência.
- 22 Sobre a concepção de Modernismo deste autor veja-se por exemplo GREENBERG Clement. «Modernist Paint (...)
10Em alinhamento com o pressuposto no campo disciplinar da arquitectura, também no campo artístico o conceito de modernismo foi fortemente teorizado, tendo como um dos seus principais doutrinadores o crítico norte-americano Clement Greenberg. À semelhança do avançado por Loos, também para Greenberg o retorno a valores de essencialidade, pureza e “verdade” seriam centrais na construção da retórica da modernidade, enquanto garante de qualidade e independência. O modernismo radicaria, pois, em noções de autonomia, auto-referencialidade e especificidade do médium22.
- 23 BENJAMIN Walter, O Anjo da História, trad. João Barrento, Porto, Assírio & Alvim, 2017 [1940].
- 24 VLACHOU Foteini, «Why Spatial? Time and the Periphery», in The Disappointed Writer. Selected Essays(...)
- 25 PIOTROWSKY Piotr, «Toward a Horizontal History of the European Avant-Garde», in BRU Sascha & NICHOL (...)
- 26 FRAMPTON Kenneth, «Hacia un regionalismo crítico: Seis puntos para una arquitectura de resistência» (...)
11Não obstante o êxito destas meta-narrativas, uma redobrada atenção à historiografia do modernismo desencadeada sobretudo a partir da década de 1960, tem contribuído para uma amplificação do entendimento disciplinar da arte e da arquitectura produzidas na primeira metade do século XX. O questionamento do universalismo messiânico do modernismo e do Movimento Moderno tem conduzido à construção de “outras modernidades”, que historicamente foram excluídas das narrativas dominantes da historiografia da arte e da arquitectura. Numa proposta de derrubar a “história dos vencedores”23 e trazer à luz toda a complexidade, pluralidade e polissemia que caracterizou o modernismo, o processo da revisão crítica da historiografia, tem questionado dimensões como tempo24, geografia25 e debatendo as noções dicotómicas de centro e periferia, atenuando as suas posições antagónicas. Estas indagações encontram ressonância no âmbito da revisão crítica da arquitetura moderna onde o conflito entre o global e o local foi identificado numa arquitectura de resistência e conciliatória entre o universal e a especificidade local26.
12Rejeitando a leitura unívoca que entende as periferias como receptores passivos da arte produzida nos centros, este artigo propõe ao invés, uma abordagem inclusiva alicerçada no conceito de recepção activa. Esta reflexão é pertinente no contexto do Cinema Batalha, onde todas estas noções entram em jogo por via das circunstâncias políticas, geográficas, disciplinares, e programáticas da sua produção, e por isso mesmo o colocam numa posição simultaneamente emblemática e paradoxal da modernidade que interessa problematizar.
Cinema Batalha: arquitectura, tecnologia, cenografia, Gesamtkunstwerk
13Implantado no gaveto entre a Rua de Santo Ildefonso e a Praça da Batalha, no Porto o Cinema Batalha assume uma presença singular no contexto urbano onde se insere. Este facto deve-se à expressividade plástica e dinâmica da sua proposta volumétrica, com resolução do gaveto em movimento curvo, no qual se inscreve, a quase todo o comprimento, um longo envidraçado modulado por uma trama de elegantes perfis metálicos. O avanço do volume em relação ao piso térreo que resulta na sua suspensão, reforça uma actualizada lógica de leveza e horizontalidade. Um relevo escultórico de grande dimensão interrompe o envidraçado na fachada sudoeste, anunciando publicamente a excepcionalidade arquitectónica e programática do equipamento. Da singular plástica faz parte a inclusão de janelas redondas no volume recuado e no plano térreo, assim como o pronunciado gaveto em movimento aerodinâmico; aspectos compositivos que sugerem uma aproximação à estética naval.
14Apesar da inusitada imagem, o edifício enquadra-se plenamente no contexto arquitectónico e urbano envolvente, facto que se comprova tanto pela composição dos alçados como pela estrutura volumétrica, ambas procurando harmonia e concordância com a restante frente edificada, assim como pela permanente relação com a cidade, estabelecida através do amplo envidraçado da fachada [fig. 1, 2 e 3].
Figura 1

Vista do cinema Batalha a partir da Praça da Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade.
Figura 2

Detalhe do gaveto do cinema Batalha, no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade.
Figura 3

Alçado norte do cinema Batalha no Porto (Portugal), projecto de Artur Andrade, folha LO-148-1945-135 in Artur Andrade. «Licença de Obras 148/1945», (206 folhas). Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico (Identificador 180013).
© herdeiros de Artur Andrade/ Câmara Municipal do Porto - Arquivo Histórico.
15A volumetria do edifício é resolvida em função de condicionalismos impostos pelo programa e pelo local. Este compromisso reflecte-se sobretudo na orientação dos volumes: o que corresponde à sala de espectáculos, no sentido de maior aproveitamento do lote, e o que configura a fachada do edifício, em alinhamento com os edifícios contíguos pré-existentes. No intervalo entre os dois volumes, organizam-se generosos foyers de acesso aos vários níveis da sala de espectáculos, assim como a circulação entre pisos [fig. 4]. Os foyers assumem-se como peças fundamentais, que o arquitecto valoriza projectando-os, como referido, em balanço sobre o espaço público e para onde se pode ver, mas sobretudo, numa lógica mundana, ser visto. Estes são, pois, importantes espaços de relação com a cidade com a qual estabelecem recíprocas relações visuais.
Figura 4

Planta da plateia do Cinema Batalha no Porto (Portugal) projecto de Artur Andrade, folha LO-148-1945-130 in Artur Andrade. «Licença de Obras 148/1945», (206 folhas). Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico (Identificador 180013).
© herdeiros de Artur Andrade/ Câmara Municipal do Porto - Arquivo Histórico.
- 27 ANDRADE Artur, «Memória descritiva», in Licença de Obras LO 108/1945, Porto, 1945.
16Neste ponto, importa sublinhar o especial tratamento que o arquitecto dedica ao foyer do balcão onde integra um bar, e ao foyer da plateia que descreve como “sala para passear o publico”27. Estes dois espaços seriam qualificados com pinturas murais a fresco de grandes dimensões, como será analisado. A escada de ligação entre os foyers da plateia e da tribuna destaca-se dos planos da arquitectura, assumindo uma inusitada dimensão escultórica e autonomia plástica, enfatizada pelos patamares curvos. O balanço da escada coloca em evidência um interessante jogo de pés direitos, ao mesmo tempo que contribui para dotar de amplitude e iluminação deste espaço de socialização [fig. 5].
Figura 5

Escada de ligação entre foyers do cinema Batalha no Porto (Portugal), a poente, arquitecto Artur Andrade, 1947.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade.
17A configuração afunilada dos foyers abre interessantes perspectivas e provoca tensões espaciais que se acentuam no confronto com as superfícies onduladas, tais como as vitrines integradas nas paredes, desenhadas para incorporar os programas do cinema [fig. 6]. Este jogo de tensões reforça-se e ecoa no desenho dos pavimentos de marmorite negro, esquartelado por uma trama de barras de latão em cujos intervalos se incluem elementos gráficos diversos de imaginária cósmica [fig. 7]. Alguns destes símbolos, como as estrelas, repetem-se de forma lúdica nas luminárias de tecto no proscénio, numa onírica alusão a um céu estrelado [fig. 8].
Figura 6

Vista da tribuna do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947.
Foto Jóri, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/ Arquivo privado de Artur Andrade. Cortesia Laura Rodrigues.
Figura 7

Detalhe de pavimento em marmorite e latão do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade.
Figura 8

Proscénio do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. Integrando pinturas de Augusto Gomes e um relevo de Américo Braga.
Fotografo desconhecido, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/Arquivo privado de Artur Andrade © herdeiros de Augusto Gomes © herdeiros de Américo Braga. Cortesia Laura Rodrigues.
18O espaço interior é rico em perspectivas e, da escada pode observar-se, como num travelling cinematográfico, a totalidade das zonas comuns e ter uma perspectiva privilegiada sobre a pintura a fresco do foyer cuja fixação em parede curva acentua o movimento da acção representada [fig. 9]. Como se observa, ao mesmo tempo que o edifício celebra o virtuosismo das inovações técnicas do betão armado e do vidro, exaltado na ‘esculturalização’ da arquitectura - formas curvas, suspensões volumétricas, generosos vãos e amplas transparências como analisado – nele está vertida uma criativa valorização das superfícies reflectida na escolha e desenho dos materiais de revestimento. O cinema foi trabalhado com um apurado sentido cenográfico e lúdico emprestando [e enriquecendo] ao aparato formal, inusitadas dimensões plásticas e cinéticas que compõem uma atmosfera alegre e sofisticada, propícia à tipologia cinematográfica em questão. Poder-se-á, pois, afirmar que neste cinema a técnica é usada como um meio para alcançar a plástica e a cenografia, ou seja, para enriquecer a experiência do espectador com o edifício.
Figura 9

Parede curva na escada de ligação entre os foyers plateia-tribuna do Cinema Batalha, no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947 [restaurado em 2022]; na parede, pintura a fresco de Júlio Pomar.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © Fundação Júlio Pomar/SPA.
19A dimensão cenográfica é trabalhada sobretudo nas questões do movimento, acentuação de perspectivas, efeitos expressionistas de iluminação, ou nos elementos compositivos cuidadosamente orquestrados de acordo com opções estilísticas individualizadas, executados com materiais requintados em produção artesanal, tais como o mobiliário em madeira [fig. 10] ou elementos decorativos tais como as guardas dos foyers em cobre e latão [fig. 11].
Figura 10

Bar situado ao nível do balcão do cinema Batalha (arquitecto Artur Andrade) no Porto (Portugal) integrando mobiliário desenhado por Artur Andrade e uma pintura mural de Júlio Pomar. Artur Andrade, Júlio Pomar, 1947.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade © Fundação Júlio Pomar/SPA.
Figura 11

Detalhe de guarda em cobre e latão do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade.
- 28 Os artistas que participaram neste programa artístico são Américo Braga (1909-1991), Augusto Gomes (...)
- 29 ANDRADE Artur, Op. cit.
- 30 Sobre este assunto ver MOURA Sónia, Op. cit.
20A acrescentar a estes recursos plásticos, do intuito celebratório do cinema, faz parte a inclusão de um diversificado programa artístico composto por obras de pintura e escultura28. A integração de ornamento na arquitectura, perniciosa para o dogma moderno como observado, e por esse motivo ignorada pela historiografia, era, contudo, celebrada na estética Art Deco e comum na arquitectura de cinemas produzida nesta década. Seguindo uma estrutura lógica, o programa artístico foi distribuído pelos locais de maior importância funcional, programática e simbólica: fachada, foyers, acessos verticais e sala de espectáculos, tal como desejado por Artur Andrade “Quer a sala de espectáculos quer os anexos respectivos serão tratados por forma a obter-se um efeito decorativo alegre e moderno”29. Concorrendo para o festivo efeito, está a diversidade plástica das intervenções que inclui temas vegetalistas e ornitológicos [fig. 12], da mitologia clássica [fig. 13], de referenciação laboral ou cinematográfica [fig. 14], e outros de maior identificação colectiva, tais como os que ecoam alguns protagonistas dos desenhos animados da Walt Disney [fig. 15], ou a popular festa de S. João do Porto [fig. 16]. De salientar, contudo, que as intervenções não vão ao encontro das formas da arquitectura ou da estética Art Deco, sendo antes o reflexo de várias das correntes artísticas que coexistiam nas artes plásticas nesta década30.
Figura 12

Relevo integrado na sala de espectáculos do Cinema Batalha no Porto (Portugal), Augusto Gomes/Américo Braga, 1947, ca. 117 x 261 cm, gesso policromado.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Augusto Gomes © herdeiros de Américo Braga.
Figura 13

Flora, escultura de Arlindo Rocha instalada ao nível da tribuna do Cinema Batalha no Porto (Portugal), 1947, 156 x 87 cm, gesso.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Arlindo Rocha.
Figura 14

Relevo de Américo Braga, 1947 integrado na fachada poente do Cinema Batalha no Porto (Portugal), ca. 680 x 370 cm.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Américo Braga.
Figura 15

Pintura mural de António Sampaio, 1947 integrada na parede da escada sudeste do Cinema Batalha no Porto (Portugal), ca. 450 x 980 cm, óleo.
Foto Jóri, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/Arquivo privado de Artur Andrade. © herdeiros de António Sampaio. Cortesia Laura Rodrigues.
Figura 16

Pintura mural de Júlio Pomar, 1947, representando a festa de S. João no Porto integrada na escada de ligação dos foyers plateia-tribuna do Cinema Batalha no Porto (Portugal), ca. 600 x 1100 cm.
© Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © Fundação Júlio Pomar/SPA.
21Comprovando a importância do efeito cénico, a iluminação é entendida como parte intrínseca do programa artístico sendo, por esta via, virtuosamente trabalhada. Neste quadro, apesar dos envidraçados dotarem os espaços de sociabilização e circulação de abundante iluminação natural, esta seria apoiada num cuidado estudo de iluminação nocturna, com recurso a sistemas de iluminação indirecta. Estes potenciavam vibrantes efeitos de luz/sombra realçando a pronunciada curvatura da pala e a expressividade dramática do edifício. Desta composição faz ainda parte o moderno lettering em néon cuidadosamente desenhado e afixado nas fachadas norte e poente [fig. 17].
- 31 Ibid.
22O Cinema Batalha congrega uma atmosfera sofisticada e glamourosa, cujo intuito era mergulhar o público num ambiente de fantasia e sonho, afastando-o do prosaico quotidiano - pois como refere o seu autor “É necessário, para bom carácter das coisas que um cinema se apresente com aspecto mais festivo e alegre.”31
Figura 17

Vista nocturna do Cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947.
Foto Jóri, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/Arquivo privado de Artur Andrade. Cortesia Laura Rodrigues.
Art Deco: consciência ou possibilidade de fazer moderno?
- 32 Sobre este assunto veja-se por exemplo PORTAS Nuno, “A Evolução da Arquitectura Moderna em Portugal (...)
- 33 Expressão cunhada por Nuno Portas em PORTAS Nuno, Op. cit., p. 705.
23Nos anos de 1940 em Portugal o contexto não era favorável à ideia de modernidade devido ao conservador e censório Estado Novo, ditadura política que vigorava desde 1933. De facto, a arquitectura moderna era inclusivé, entendida como uma força subversiva e, como tal, ideologicamente opositora do regime32. Este entendimento correspondeu a um retrocesso após um primeiro momento de embora “efémero modernismo”33 actualizado com a vanguarda que se produzia no resto da Europa e que havia caracterizado a produção arquitectónica durante as décadas de 1920 e 1930. Nestas décadas, a arquitectura portuguesa conheceu, pois, uma considerável renovação dos seus códigos formais, passando a adoptar uma plástica racionalista e funcionalista combinada - e suavizada - pela presença da Art Deco. Esta nova plástica tirava vantagens das possibilidades construtivas do betão armado moderando a rigidez e a depuração puristas com uma gramática geometrizada, de forte imagem gráfica, sentido cenográfico e lúdico e, com a inclusão de arrojadas linhas curvas.
- 34 TOSTÕES Ana, A Idade Maior Cultura e Tecnologia na Arquitectura Moderna Portuguesa, Op. cit., p. 66
- 35 Iniciada pelo arquitecto francês Charles Siclis (1889-1944), o projecto seria continuado por José M (...)
24A presença Art Deco na arquitectura destas décadas seguiu, de resto, a entusiasta receptividade que a Exposition Internationale des Arts Decoratifs et Industriels Modernes de 1925 teve entre os arquitectos portugueses, para cuja visita a maioria se deslocou a Paris34. O impacto que neles teria este evento repercutiu-se na obra que desenvolveriam nos anos seguintes. Neste contexto, importa referir, no Porto, o projecto da Casa de Serralves (1920-1940) um dos exemplos mais emblemáticos da Art Deco em Portugal, projectada pelo arquitecto José Marques da Silva (1869-1947)35. Encomendado pelo industrial Carlos Alberto Cabral, segundo Conde de Vizela ao conhecido arquitecto portuense, o projecto beneficiaria das importantes intervenções, entre outros, de Jacques-Émile Ruhlmann e René Lalique, contratados justamente após a visita de Carlos Alberto Cabral e José Marques da Silva, à referida exposição onde os artistas franceses estavam representados.
- 36 PORTAS Nuno, Op. cit., p. 720.
- 37 As actas do congresso seriam reunidas em AAVV, «1º Congresso Nacional de Arquitectura - Relatório d (...)
25Como referido, a década de 1940 marcaria um período de complexa relação entre arquitectos e poder que a Exposição do Mundo Português - evento emblemático de propaganda e consagração do regime político - iniciara em 1940, e na qual se havia tentado forjar uma fórmula arquitectónica simultaneamente moderna e nacional, e que sinalizaria o início de um movimento de retrocesso das linguagens arquitectonicas iniciadas nas décadas anteriores36 - algo que apenas seria publicamente contestado em 1948, no I Congresso Nacional de Arquitectura37.
26Com efeito, o fim da Segunda Guerra Mundial e a consequente queda dos regimes totalitários, trariam um novo fôlego de esperança ante a possibilidade de mudança para o regime democrático, encorajando uma maior intervenção pública dos artistas e dos arquitetos. Apesar de distantes dos centros de decisão e das políticas de reconstrução europeia que irradiavam dos CIAM, também eles estavam comprometidos em lançar as bases de uma nova sociedade, em acerto com as ideias reformadoras aí formuladas.
- 38 Moniz Gonçalo, Op. cit., p. 32.
- 39 Com a entrada de Carlos Ramos para o corpo docente em 1940, os dois sistemas começariam a conviver (...)
27Nas Escolas de Belas-Artes do Porto e Lisboa, porém, desde 183638 vigorava o sistema de ensino Beaux-Arts com referência à Escola de Paris. A importação deste modelo pedagógico, seguiu, à semelhança de outros países, a ideia estabelecida que fixava Paris enquanto paradigma de formação cultural e artística da modernidade. Regulamentado com a Reforma do Ensino Artístico de 1931, este sistema de ensino esteve em vigor até à Reforma de 1957, embora sofrendo ajustes sucessivos a partir de 1940, momento a partir do qual se começa lentamente a desenhar um modelo de ensino moderno. De facto, muitos arquitectos que ensinavam nestas instituições eram receptivos aos padrões dos CIAM39. Por conter um plano de estudos flexível, o modelo pedagógico Beaux-Arts foi facilmente adaptado a sistemas de ensino em diversos países, sendo garante de sólida formação. O seu funcionamento em rede e sistema de bolsas possibilitava a frequência de alunos oriundos de várias geografias, permitindo intercâmbios internacionais; investimento que seria vertido na actividade profissional desenvolvida após o regresso aos seus países de origem.
- 40 Depois de frequentar a Academia de Belas Artes no Porto (1882-1889) Marques da Silva continuou os e (...)
- 41 Professor a partir de 1906 e director de 1913 a 1939.
28De entre os arquitectos portugueses diplomados pelo governo francês, conta-se justamente José Marques da Silva que, regressado a Portugal40, desenvolveria assinalável produção no Porto, da qual, a referida Casa de Serralves. Neste contexto será também oportuno sublinhar a sua acção enquanto docente do Curso de Arquitectura na Escola de Belas-Artes do Porto (EBAP), da qual se tornaria também director41. Nesta instituição de ensino, foi professor de várias gerações de arquitectos, entre os quais, muitos dos principais responsáveis pela implementação da arquitectura moderna em Portugal, sobretudo no Norte, onde haviam recebido formação e desenvolveriam grande parte da sua actividade.
- 42 Deste plano de estudos, inclusivamente, fazia parte a disciplina “Concurso das Três Artes” que anua (...)
- 43 Realizada por Nuno Teotónio Pereira e Costa Martins e publicada na revista «Técnica: revista de Eng (...)
29Ao ingressar na EBAP em 1937 para frequentar o Curso Especial de Arquitectura, Artur Andrade, autor do Cinema Batalha, tal como outros estudantes da sua geração, beneficiou deste sistema de ensino e da influência de Marques da Silva. Por esta via foi iniciado num rigoroso processo de desenho, com atenção às ordens clássicas e a rígidos princípios compositivos, assim como a um método de trabalho que privilegiava a participação das várias artes42. No entanto, se por um lado os estudantes se formavam segundo este modelo de matriz clássica, por outro, actualizavam-se com as ideias disseminadas a partir dos CIAM, de cuja Carta de Atenas circulava desde 1944 uma tradução43. O apelo pelo projecto moderno conduziria ainda em 1947, ano de inauguração do Cinema Batalha, à formação no Porto da ODAM - Organização dos Arquitectos Modernos, empenhada justamente na implementação dos seus princípios e que integraria dezenas de jovens arquitectos e estudantes de arquitectura, entre os quais, Artur Andrade.
- 44 ALMEIDA Pedro Vieira de, Op. cit., p. 144.
30Era neste quadro complexo caracterizado pela diacronia entre a preparação académica e as novas ideias, assim como pela persistência de um ambiente político adverso à modernidade, que os arquitectos tinham de operar. Neste contexto, pela insuficiência de preparação e meios, teóricos ou políticos, apesar de os arquitectos reclamarem uma arquitectura moderna de acordo com a linha de Le Corbusier e dos CIAM, seguiam mais naturalmente referências do arquitecto francês Robert Mallet-Stevens ou do holandês Willem Marinus Dudok44. A subtração das massas pela integração de linhas estilizadas e conjugação com planos curvos contribuía para amaciar as formas e sensualizar a arquitectura, afastando-a da austeridade e secura funcionalistas. Além do mais, a plástica Art Deco trazia movimento tanto à imagem pública dos edifícios como aos seus interiores, abrindo inusitadas dinâmicas na relação com a arquitectura. Mais imediata e espontaneamente assimilada pelos arquitectos portugueses, a estética Art Deco estimulou-os, pois, na exploração de concepções arquitectónicas em idêntico alinhamento plástico.
31Este quadro configurou um particular contexto para o desenvolvimento da estética Art Deco na década de quarenta em Portugal. De facto, tal como observado no projecto do Cinema Batalha, a demanda do moderno resultou não poucas vezes em formulações caracterizadas pela propensão para o desenho e o detalhe, assim como a uma certa resistência à inovação, própria da formação no sistema clássico de ensino, num compromisso intentado através do manejo deco, conduzindo à sua hibridização com o funcionalismo emergente.
32Diante desta situação contraditória, embora compreensível dentro do quadro analisado, poderá, pois, ser questionada a condição do estilo Art Deco em Portugal na confluência (involuntária?) entre uma consciência de modernidade e de uma possibilidade para a sua concretização.
Conclusão: Cinema Batalha, paradigma, paradoxo, celebração da modernidade!
33Como observado, a diversidade de propostas contidas na plástica do Cinema Batalha, nomeadamente a hibridização com o estilo Art Deco, distancia-o da matriz ortodoxa moderna à qual deve a sua canonização histórica. A identificação e confronto da teia de confluências que determinou o quadro da sua produção, da qual faz parte uma inusitada pacificação entre o global e a especificidade local, permite justamente configurar este cinema enquanto síntese exemplar do tema em análise. Construído no quadro de um regime político conservador de orientação fascista, o Cinema Batalha congrega uma fórmula de inesperada modernidade amaciando a exuberância tecnológica com as linhas sinuosas e o movimento dinâmico da estética Art Deco que assim concorrem na consagração de um espaço arquitectónico de características surpreendentemente únicas e emblemáticas.
34Neste quadro reflexivo, e em relação à questão levantada inicialmente, o Cinema Batalha é, de facto, um exemplo paradigmático do Movimento Moderno, no quanto justamente confirma a sua pluralidade, inventividade e inclusividade, demonstrando quão equívoca tem sido a historiografia mantendo-o numa classificação redutora, face à multiplicidade de soluções que integra e que justamente, são parte indissociável dessa mesma modernidade. Efectivamente, a vontade em integrar o Cinema Batalha no sistema linear e hierarquizado que caracteriza a corrente historiográfica moderna conduziu à desvalorização - e inclusive, negação - dos seus valores intrínsecos, tais como a decoração, que paradoxalmente constitui um dos aspectos, únicos e exclusivos da sua condição moderna.
35A análise deste exemplo arquitectónico à luz das recentes abordagens historiográficas que questionam as complexas relações entre centro e periferia e que, nesse sentido, colocam o foco de análise na recepção activa, pode precisamente, não apenas enriquecer o conhecimento da arquitectura produzida em geografias consideradas periféricas, como alargar a discussão em torno dos factores que informaram a sua específica modernidade. A fixação do Cinema Batalha na historiografia internacional poderá, pois, ser exemplar da importância do enfoque historiográfico no conceito de recepção e da consciência do seu potencial para identificar e mapear outros exemplos de obras e actores da corrente moderna global que, por não encaixarem nos seus cânones universalistas, foram erroneamente classificados ou simplesmente, mantidos à margem da historiografia.
Notes
1 Iniciado em 1942, até à proposta final o projecto teve duas versões.
2 Proprietária também dos cinemas Teatro Carlos Alberto, Salão Jardim Trindade e Salão High Life, localizados no Porto.
3 «A Arquitectura de Hoje defendida por um grupo de arquitectos modernos. Artur Andrade fala-nos do Batalha. Esperemos Sr. Batalha!», in A Tarde, 23 de maio de 1945.
4 Ibid.
5 Entre outros, TOSTÕES Ana, «Modernização e Regionalismo 1948-1961», in Arquitectura do Século XX: Portugal, München, Prestel, 1998, p. 42 ; TOSTÕES Ana, A Idade Maior Cultura e Tecnologia na Arquitectura Moderna Portuguesa, Porto, Publicações FAUP, 2015, p. 300 ; COSTA Alexandre Alves & FERNANDEZ Sérgio, «Um novo Cinema Batalha», em Batalha Retrospetiva do Futuro Porto, Câmara Municipal do Porto/Batalha Centro de Cinema, 2023, p. 51-86. GONÇALVES José, «Cinema Batalha 1944-1947», in Guia de Arquitectura Moderna: Porto 1901-2001, vol. 9, Porto, Ordem dos Arquitectos SRN/Civilização, 2001.
6 Muito embora vários autores apontem a importância da Art Deco na produção arquitectonica das duas primeiras décadas do século XX, apenas Pedro Vieira de Almeida refere a sua importância nas realizações dos anos 1940. ALMEIDA Pedro Vieira de, «O “arrabalde” do céu», in História da Arte em Portugal, vol. 14, Lisboa, Publicações ALFA, 1986, p. 105-145.
7 SILVA Ilídio, «Ex nihilo nihil fit - O Cinema Batalha», in A Obra Nasce, n. 07, Porto, Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade, 2012, p. 27-44.
8 ALMEIDA Pedro Vieira de, Op. cit., p. 144.
9 Idem.
10 Idem.
11 Sobre o ensino Beaux-Arts em Portugal veja-se MONIZ Gonçalo Canto, «O Ensino Moderno da Arquitectura - A Reforma de 57 e as Escolas de Belas-Artes em Portugal (1931-69)» Tese de Doutoramento, Coimbra, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2011.
12 MONIZ Gonçalo, Op. cit., p. 97.
13 Entre outras, a revista L’Architecture d’Aujourd’hui, editada por André Bloc, com grande difusão entre os arquitectos portugueses. A este respeito, importa referir que a edição nº 9 de Setembro de 1938 intitulada Spectacle, versa justamente sobre arquitectura de teatros e cinemas, integrando exemplos Déco.
14 Na área disciplinar da arquitectura ver por exemplo BRITES Joana. O capital da Arquitectura – Estado Novo, Arquitectos e Caixa Geral de Depósitos 1929-1969. Lisboa, Prosafeita, 2014, sobre a inscrição de arquitectura do Estado Novo na corrente historiográfica moderna.
15 No campo artístico ver por exemplo LEAL Joana Cunha e SANTOS Mariana Pinto, «As Sete Cabeças do Modernismo» in CRESPO Nuno (ed.), ArteICríticaIPolítica, Lisboa, Tinta da China, 2016, p. 93-112. Neste contexto destaco ainda a exposição Modernités Plurielles realizada no Centro Pompidou em 2015 centrada justamente numa proposta inclusiva da História da Arte entre 1905 e 1970.
16 Desta integridade faz parte o destapamento e restauro de três pinturas murais, que durante décadas estiveram encobertas por várias camadas pictóricas.
17 O Cinema Batalha reabriu ao público a 9 de dezembro de 2022.
18 FOSTER Hal, «Introducción al posmodernismo», in La Posmodernidad, Barcelona, Kairós, 2008. p. 7-17.
19 HITCHCOCK Henry-Russell e JOHNSON Philip, The International Style: Architecture since 1922, New York/London, Norton, 1966.
20 Segundo a máxima Form follows Function formulada no início do século XX pelo arquitecto norte-americano Louis Sullivan, precursora do entendimento funcionalista da arquitectura moderna.
21 LOOS Adolf, Ornamento e Crime, trad. Lino Marques, Lisboa, Cotovia, 2004 [1931].
22 Sobre a concepção de Modernismo deste autor veja-se por exemplo GREENBERG Clement. «Modernist Painting» [1960] in HARRISON Charles & WOOD Paul (eds.), Art in Theory 1900-2000, Oxford, Blackwell Publishing, 2003, p. 774-779.
23 BENJAMIN Walter, O Anjo da História, trad. João Barrento, Porto, Assírio & Alvim, 2017 [1940].
24 VLACHOU Foteini, «Why Spatial? Time and the Periphery», in The Disappointed Writer. Selected Essays, Lisboa, Edições do Saguão, 2019. pp. 333-352. SANTOS Mariana Pinto dos, «Estou atrasado! Estou atrasado! - Sobre o atraso da arte portuguesa diagnosticado pela historiografia», in BARATA André, PEREIRA António, CARVALHEIRO, José (org.), Representações da Portugalidade, Lisboa, Caminho, 2011. p. 231-242.
25 PIOTROWSKY Piotr, «Toward a Horizontal History of the European Avant-Garde», in BRU Sascha & NICHOLLS Peter, European Avant-Garde and Modernism Studies, Berlin, De Gruyter, 2009, p. 49-58. KAUFMANN Thomas DaCosta, Toward a Geography of Art, Chicago and London, The University of Chicago Press, 2004, JOYEUX-PRUNEL Béatrice, «Provincializing Paris. The Center-Periphery Narrative of Modern Art in Light of Quantitative and Transnational Approaches», Artl@s Bulletin, 2015. p. 40-64.
26 FRAMPTON Kenneth, «Hacia un regionalismo crítico: Seis puntos para una arquitectura de resistência», in FOSTER Hal, La Posmodernidad, Barcelona, Kairos, 1985, p. 37-58.
27 ANDRADE Artur, «Memória descritiva», in Licença de Obras LO 108/1945, Porto, 1945.
28 Os artistas que participaram neste programa artístico são Américo Braga (1909-1991), Augusto Gomes (1910-1976), Arlindo Rocha (1921-1999), António Sampaio (1916-1994) e Júlio Pomar (1926-2018) e Altino (?-?). Mais sobre este assunto em MOURA Sónia, «Artes integradas no Cinema Batalha - Artistas e Obras: contextos e singularidades de um programa de síntese plástica», in COSTA Ana (coord.), Batalha Retrospetiva do Futuro, Porto, Câmara Municipal do Porto/Batalha Centro de Cinema, 2023, p. 87-103.
29 ANDRADE Artur, Op. cit.
30 Sobre este assunto ver MOURA Sónia, Op. cit.
31 Ibid.
32 Sobre este assunto veja-se por exemplo PORTAS Nuno, “A Evolução da Arquitectura Moderna em Portugal: uma interpretação” in ZEVI Bruno, História da Arquitectura Moderna, Lisboa, Arcádia, 1970, p. 687-744 e BANDEIRINHA José António, Quinas Vivas. Memória descritiva de alguns episódios significativos do conflito entre fazer moderno e fazer nacional na arquitectura portuguesa dos anos 40, Porto, FAUP publicações, 1996.
33 Expressão cunhada por Nuno Portas em PORTAS Nuno, Op. cit., p. 705.
34 TOSTÕES Ana, A Idade Maior Cultura e Tecnologia na Arquitectura Moderna Portuguesa, Op. cit., p. 66.
35 Iniciada pelo arquitecto francês Charles Siclis (1889-1944), o projecto seria continuado por José Marques da Silva, que assim seria responsável pelo seu desenvolvimento, alteração e execução final.
36 PORTAS Nuno, Op. cit., p. 720.
37 As actas do congresso seriam reunidas em AAVV, «1º Congresso Nacional de Arquitectura - Relatório da Comissão Executiva/teses/Conclusões e votos do Congresso», Lisboa, Ordem dos Arquitectos, 2008 [1948].
38 Moniz Gonçalo, Op. cit., p. 32.
39 Com a entrada de Carlos Ramos para o corpo docente em 1940, os dois sistemas começariam a conviver de forma híbrida. Cf. Idem. p. 22.
40 Depois de frequentar a Academia de Belas Artes no Porto (1882-1889) Marques da Silva continuou os estudos na École Nationale de Beaux-Arts em Paris (1889-1896).
41 Professor a partir de 1906 e director de 1913 a 1939.
42 Deste plano de estudos, inclusivamente, fazia parte a disciplina “Concurso das Três Artes” que anualmente apelava à participação dos alunos dos três cursos no desenvolvimento de um projecto comum.
43 Realizada por Nuno Teotónio Pereira e Costa Martins e publicada na revista «Técnica: revista de Engenharia dos Alunos do Instituto Superior Técnico».
44 ALMEIDA Pedro Vieira de, Op. cit., p. 144.
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Titre | Figura 1 |
Légende | Vista do cinema Batalha a partir da Praça da Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-1.jpg |
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Titre | Figura 2 |
Légende | Detalhe do gaveto do cinema Batalha, no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade. |
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Titre | Figura 3 |
Légende | Alçado norte do cinema Batalha no Porto (Portugal), projecto de Artur Andrade, folha LO-148-1945-135 in Artur Andrade. «Licença de Obras 148/1945», (206 folhas). Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico (Identificador 180013). |
Crédits | © herdeiros de Artur Andrade/ Câmara Municipal do Porto - Arquivo Histórico. |
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Titre | Figura 4 |
Légende | Planta da plateia do Cinema Batalha no Porto (Portugal) projecto de Artur Andrade, folha LO-148-1945-130 in Artur Andrade. «Licença de Obras 148/1945», (206 folhas). Câmara Municipal do Porto. Arquivo Histórico (Identificador 180013). |
Crédits | © herdeiros de Artur Andrade/ Câmara Municipal do Porto - Arquivo Histórico. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-4.jpg |
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Titre | Figura 5 |
Légende | Escada de ligação entre foyers do cinema Batalha no Porto (Portugal), a poente, arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade. |
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Titre | Figura 6 |
Légende | Vista da tribuna do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | Foto Jóri, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/ Arquivo privado de Artur Andrade. Cortesia Laura Rodrigues. |
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Titre | Figura 7 |
Légende | Detalhe de pavimento em marmorite e latão do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade. |
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Titre | Figura 8 |
Légende | Proscénio do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. Integrando pinturas de Augusto Gomes e um relevo de Américo Braga. |
Crédits | Fotografo desconhecido, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/Arquivo privado de Artur Andrade © herdeiros de Augusto Gomes © herdeiros de Américo Braga. Cortesia Laura Rodrigues. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-8.jpg |
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Titre | Figura 9 |
Légende | Parede curva na escada de ligação entre os foyers plateia-tribuna do Cinema Batalha, no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947 [restaurado em 2022]; na parede, pintura a fresco de Júlio Pomar. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © Fundação Júlio Pomar/SPA. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-9.jpg |
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Titre | Figura 10 |
Légende | Bar situado ao nível do balcão do cinema Batalha (arquitecto Artur Andrade) no Porto (Portugal) integrando mobiliário desenhado por Artur Andrade e uma pintura mural de Júlio Pomar. Artur Andrade, Júlio Pomar, 1947. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade © Fundação Júlio Pomar/SPA. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-10.jpg |
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Titre | Figura 11 |
Légende | Detalhe de guarda em cobre e latão do cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Artur Andrade. |
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Titre | Figura 12 |
Légende | Relevo integrado na sala de espectáculos do Cinema Batalha no Porto (Portugal), Augusto Gomes/Américo Braga, 1947, ca. 117 x 261 cm, gesso policromado. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Augusto Gomes © herdeiros de Américo Braga. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-12.jpg |
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Titre | Figura 13 |
Légende | Flora, escultura de Arlindo Rocha instalada ao nível da tribuna do Cinema Batalha no Porto (Portugal), 1947, 156 x 87 cm, gesso. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Arlindo Rocha. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-13.jpg |
Fichier | image/jpeg, 166k |
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Titre | Figura 14 |
Légende | Relevo de Américo Braga, 1947 integrado na fachada poente do Cinema Batalha no Porto (Portugal), ca. 680 x 370 cm. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © herdeiros de Américo Braga. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-14.jpg |
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Titre | Figura 15 |
Légende | Pintura mural de António Sampaio, 1947 integrada na parede da escada sudeste do Cinema Batalha no Porto (Portugal), ca. 450 x 980 cm, óleo. |
Crédits | Foto Jóri, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/Arquivo privado de Artur Andrade. © herdeiros de António Sampaio. Cortesia Laura Rodrigues. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-15.jpg |
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Titre | Figura 16 |
Légende | Pintura mural de Júlio Pomar, 1947, representando a festa de S. João no Porto integrada na escada de ligação dos foyers plateia-tribuna do Cinema Batalha no Porto (Portugal), ca. 600 x 1100 cm. |
Crédits | © Foto Jorge Garcia Pereira, 2023 © Fundação Júlio Pomar/SPA. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-16.jpg |
Fichier | image/jpeg, 259k |
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Titre | Figura 17 |
Légende | Vista nocturna do Cinema Batalha no Porto (Portugal), arquitecto Artur Andrade, 1947. |
Crédits | Foto Jóri, 1947 © herdeiros de Artur Andrade/Arquivo privado de Artur Andrade. Cortesia Laura Rodrigues. |
URL | http://journals.openedition.org/insitu/docannexe/image/44626/img-17.jpg |
Fichier | image/jpeg, 150k |
Pour citer cet article
Référence électronique
Sónia Moura, « Modernidades múltiplas na arquitectura portuguesa dos anos 1940 », In Situ [En ligne], 55 | 2025, mis en ligne le 26 avril 2025, consulté le 17 mai 2025. URL : http://journals.openedition.org/insitu/44626 ; DOI : https://doi.org/10.4000/13tdv
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Le texte seul est utilisable sous licence CC BY-NC-ND 4.0. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
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