- 1 Arquivos RTP, Ordem de serviço J, de 12-07-1959.
- 2 Vasco Hogan Teves, “RTP 50 anos de História (Década de 60: No reino do ‘directo’)”, p. 19. Sítio (...)
1São 20h30 num qualquer dia de semana no final dos anos 50 e nos cafés, TV-clubes, e eventualmente numa casa da vizinhança, espera-se que um dos locutores habituais, muito provavelmente Gomes Ferreira, Fialho Gouveia ou Henrique Mendes, comece a ler as notícias. Em primeiro plano, o locutor, sentado a uma mesa, acompanhado por um telefone, um maço de tabaco (“20-20”) e um “Porto” – patrocinadores do Telejornal (TJ) –, lerá durante dez minutos as folhas que empunha e às quais não altera uma vírgula das páginas saídas da redacção com vários sinais de visto.1 Nenhuma notícia de última hora chegará pelo telefone, pois a única vez que este tocou, o critério noticioso utilizado foi posteriormente desautorizado,2 mas a iminência de que toque deixa no ar a possibilidade da não existência de censura.
- 3 Utilizo uma categoria do regime, ciente de que o seu uso generalizado na bibliografia não exime o (...)
- 4 Esta reorganização fez-se por meio da análise de exemplos internacionais. A comissão responsável (...)
2Durante o século XX, o poder autoritário contou com a censura, usada diferentemente consoante a conjuntura, como uma das estratégias de produção de consenso (Garcia 2009). Ancorada na tradição conservadora pré-existente, mas fortemente fomentada pela sua acção, a censura em Portugal sob o Estado Novo3 (1933-1974) foi uma ferramenta utilizada para o estabelecimento, consolidação e manutenção do regime (Franco 1993). A par da propagada (Ó 1999), a censura foi determinante nas subsequentes intenções de moldar, de forma eficiente, a sociedade portuguesa à sua medida, contribuindo para eliminar progressivamente a dissidência da esfera pública (Cádima 1996), erguendo instituições centralizadoras (Gomes 2006) e gerindo internamente a posição internacional do regime (Baiôa 2012; Alves 2017; Barros 2017). Actuando de forma a obter o maior grau de abrangência com os menores custos políticos possíveis – ou seja, segundo uma lógica de “economia da censura” (Melo 2016), que reproduz o princípio do uso de violência por parte do regime (Martins 1998) e os efeitos materiais que a censura provocava (Forte 2000; Gonçalves 2012) –, o Estado Novo herdou e aperfeiçoou um passado de censura do escrito e do espectáculo público, cujos aspectos institucionais e normativos são hoje bem conhecidos (Carvalho 1999; Cabrera 2013), também através de casos de estudo (Forte 2000; Gonçalves 2012; Morais 2016 e 2021). A reorganização das metodologias censórias,4 à medida que novas tecnologias, como a rádio (Cristo 2005) ou a televisão (Cádima 1996 e 2017) foram surgindo, tem sido menos estudada.
3Imposta desde 1926, a censura inscreveu-se na constituição de 1933 como forma de defesa estatal da opinião pública (art. 20º). Ao contrário de outros países europeus onde o serviço público de rádio e televisão foi assumido pela mesma empresa, com recurso a capital público e preocupações institucionais de manutenção da independência relativamente ao poder político, o modelo português foi original: a adjudicação não foi concedida à empresa pública de rádio, a Emissora Nacional, mas a uma sociedade anónima, a RTP, na qual a maior parte do capital era privado, embora o estado português fosse um destacado investidor inicial e o regime garantisse a sua influência tanto através de produção legislativa como no organigrama institucional e até mesmo na administração quotidiana do meio (Carvalho 2009). Contudo, o caso português não pode ser isolado do contexto europeu ao nível do controlo estatal do broadcasting. A ameaça de “americanização” anunciada pelo cinema, a primeira forma cultural global, sinalizou a rádio e a televisão como meios úteis a projetos de construção do estado-nação e, portanto, sujeitos a um controlo estatal mais rígido (Hilmes 2012) No entanto, há indícios de que a história do desenvolvimento da televisão em Portugal revela a adaptação do regime a um mercado dominado pela influência dos EUA e, enquanto meio, moldado pela dinâmica da Guerra Fria.
4O impacto do trabalho de Michel Foucault e Pierre Bourdieu tornou mais difícil conceber o poder censório enquanto monopólio estatal, exercido top-down (Post 1998; Moore 2005). A noção de um poder disperso e de uma repressão entremeada nas práticas discursivas e disciplinárias, inteligíveis enquanto produtivas, cuja existência se situa a montante do poder do estado, coexiste com a capacidade do poder estatal, ao erguer instituições dedicadas ao exercício da censura, em estabelecer normas e nomear agentes, e de produzir documentação que torna materialmente visíveis processos que, noutros contextos, são genericamente intangíveis. Foucault (2013) explora explicitamente a lógica da censura a partir do estabelecimento de uma interdição: declarando-se a sua proibição, negando-se a sua formulação e, por último, negando-se a sua existência, acaba por se extinguir a sua possibilidade discursiva. Nem sempre recorrendo ao termo censura, Bourdieu (1991) faz depender as condições discursivas e respectivas práticas de princípios de exclusão, demonstrando como de um habitus linguístico e corporal, adequado às formas e formalidades de determinado campo, depende o sucesso de uma produção discursiva. É assim possível reconhecer distintos regimes de opressão concomitantes, impregnados na norma social, e em relação dialéctica com a censura regulatória, tais como a ordem racial, classista, sexual e de género vigente na sociedade portuguesa, cujo poder produtivo emerge em consonância com o desenvolvimento tecnológico.
5Na inauguração do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), António Salazar (1935, 259) expôs a chave da publicness do regime: “Politicamente só existe aquilo que o público sabe que existe.” Levada esta formulação ao extremo, a não-existência surge como objectivo último do sistema de censura regulatória no qual assenta o regime. Nesta afirmação converge a fórmula distintiva do discurso de Salazar, o “escrito-lido”, capaz de inscrição no espaço público e de representação do poder a par de uma memorização eficaz. “Uma retórica sem retórica destinada a transformar os homens” (Gil 1995, 8), cuja invisibilidade assoma enquanto elemento central. “Prescindir de agir (de se destacar), de aparecer, de se afirmar individualmente” (Gil 1995, 31) materializa-se no ser-político Salazar. Aliada às normas sociais que herdam uma índole conservadora que lhe é anterior e moldando a emergência de subjectividades segundo uma ordem social produtora de não-existências, a censura regulatória tornar-se-ia dispensável (Butler 1998). Contudo, o ser-político Salazar não transita eficazmente para um meio como a televisão, ambiente tecnológico no qual nunca se sentirá à vontade, ao contrário de Marcelo Caetano (Cádima 2017). Se entendermos, na esteira de Kittler (1999), o homem como produto da tecnologia e, portanto, o ser absorvido pelo sistema de informação a uso, afectando a produção humana, tanto psicológica como cultural, deparamo-nos com um ser-político, Salazar, forjado conceptualmente pela invisibilidade e distância permitidas pela palavra escrita e, quiçá, a raiz da sua inadaptação ao modelo de comunicação exigido pela televisão.
- 5 Teves, “RTP 50 anos de História (Década de 60: No reino do ‘directo’)”, p. 19.
6Sair da galáxia de Gutenberg exigiu um novo modus operandi censório, capaz de lidar com meios com linguagens, tempos e modos de produção e recepção diferentes. A linguagem audiovisual complexifica o processo censório, abrindo camadas de leitura e, portanto, múltiplas “vozes” a serem silenciadas numa programação já de si estruturada pela dominação (Hall 2019b) e privilegiando, portanto, uma leitura preferencial. Se a codificação de uma mensagem determina, em grande medida, a sua recepção, a relativa autonomia de cada uma das fases do circuito comunicacional proposto por Hall (2019a) confere agência ao acto de descodificação, dando espaço à existência de leituras alternativas à preferencial, sejam estas negociadas ou opositivas. Resolvido o controlo da palavra dita, já que os locutores se limitavam à leitura dos textos aprovados à saída da redacção, a maior preocupação censória e objecto de cortes recaía sobre as imagens que, nas peças com o locutor em off, ganhavam “todo o protagonismo”.5 Como se adaptou o sistema censório à tecnologia televisiva? Em que medida a informação exigiu abordagens censórias específicas? Parto da hipótese de que abordar a relação televisiva entre o regime e os EUA – um referente televisivo marcante, quer pela capacidade de inovação como de difusão da sua produção – permite responder, em parte, a estas perguntas, fornecendo alguns elementos sobre a censura exercida na informação televisiva, nomeadamente aquela de cariz produtivo.
- 6 A abordagem indirecta incluiu a análise de imprensa (Rádio & Televisão, Televisão, Nova Antena), (...)
7Abordar a censura constitui um desafio metodológico, pois é um gesto que procura a invisibilidade (Darnton 2015). Mesmo quando faz parte do monopólio de violência do estado e há instituições que lhe são dedicadas, o acesso aos seus vestígios é indirecto, fragmentado e frequentemente incompleto. A censura da informação televisiva acrescenta o problema da efemeridade do directo, que limita o investigador à utilização de fontes truncadas ou a recorrer a abordagens indirectas.6 Destas condições resultam, em parte, a selecção dos eventos nos quais se baseia este artigo. Através de uma etnografia do arquivo, metodologia cara aos estudos sobre censura regulatória (Costa 2010; Darnton 2015), procura-se interpretar a relação entre estado e sociedade, reconstruindo prácticas quotidianas da censura televisiva. Procurando analisar a tensão regulatória de um meio essencialmente transnacional, este artigo foca-se na análise da cobertura, mas também dos mecanismos censórios e de política informativa em funcionamento, de três eventos estado-unidenses que alcançaram dimensão global: o assassínio de John F. Kennedy (JFK) em 1963, o ressurgimento mediático da guerra do Vietname em 1968 e a chegada à Lua em 1969.
8Realizou-se uma análise quantitativa da composição material dos alinhamentos do TJ e uma análise qualitativa da sua hierarquização, complementadas por uma aproximação às práticas quotidianas através da análise documental da estruturação do aparelho censório televisivo, dos variados registos da censura militar (já que a partir de 1961 Portugal passou a ser um país em guerra e, portanto, sujeito a dupla censura), e de elementos indicativos da recepção mediática da aterragem lunar, na metrópole e nas colónias. Ao colidirem com a política informativa do regime, estes eventos tornam-se objectos privilegiados para analisar algumas das práticas que lhe eram inerentes, deixando em evidência mecanismos como: uma acção censória interna muito centrada nas relações pessoais, não necessariamente conducente a registos escritos; a reprodução do fluxo noticioso transnacional nos noticiários da RTP; e uma gestão política da noticiabilidade, nomeadamente através de mecanismos de produção tanto de invisibilidade como de uma agenda noticiosa subjugada aos interesses do regime.
9A introdução da televisão em Portugal colocou problemas à censura a exercer, uma vez que a censura já exercida noutros formatos não se verificou completamente adaptável aos tempos e modo de produção e recepção da televisão, nomeadamente da informação televisiva. No decurso da implantação de um aparato censório adaptado a uma nova tecnologia, a confiança política tornou-se uma condição necessária ao exercício dos cargos de chefia de divisões, nomeadamente na informação, pois deveria zelar pela imagem do país e do mundo que os espectadores metropolitanos consumiam. A cobertura da morte de JFK e o afastamento do chefe desta divisão, Manuel Figueira, demonstram precisamente a importância da confiança política e da personalização como mecanismos que caracterizavam a censura da informação televisiva.
- 7 O Decreto-Lei nº 38964, de 27-10-1952, regulou a assistência de menores a espectáculos públicos (...)
- 8 ANTT, SNI, Direcção Geral dos Serviços de Espectáculos (DGE), Actas das sessões de comissão de (...)
- 9 Decreto Lei nº 41051, de 01-04-1957.
- 10 A clarificação do Decreto-Lei nº 41051, de 01-04-1957, acessível na “Acta nº 227 da Comissão de (...)
10Ao ser inicialmente concebida com um “espectáculo público” (Pinto 2019), já que as emissões experimentais eram vistas em montras ou na feira popular da Palhavã, tornando a experiência do público similar a uma ida ao teatro ou sessão de cinema, a televisão herdou o mesmo tipo de sistema de controlo: uma regulação baseada na idade, adoptada igualmente noutros países.7 No entanto, a mimetização do código estabelecido pela comissão de censura de espectáculos depressa se verificou inadequada, sobretudo dada a decisão de Marcelo Caetano de manter a televisão apta a todos os públicos.8 Mesmo depois da actualização legislativa propiciada pelo início das emissões regulares, a concepção de espectáculo público excluía da emissão televisiva eventos realizados em instalações onde a permanência de menores não fosse permitida (artigo 8º),9 nomeadamente fados, teatro de variedades ou boxe. A proibição de exibição de programas para maiores de 12 anos provocou desconforto relativamente à tutela moral e educativa que materializava. Os protestos reivindicavam, também, a televisão como um produto de consumo doméstico, sublinhando a autoridade do chefe de família (Carvalheiro 2018; Pinto 2019, 134). Caetano suaviza a aplicação do código: “não deve tornar-se a expressão no rigor técnico que ela tem no diploma”, interpretação que encontrou tradução legislativa rapidamente.10
- 11 ANTT, AOS, cx. 679, Comissário do Governo Relatório Trimestral (Out.-Dez. 1956), pp. 24-25.
- 12 ANTT, AOS, cx. 679, Comissário do Governo Relatório Trimestral (Jan.-Mar. 1958), p. 8.
- 13 ANTT, AOS, cx. 679, Comissário do Governo Relatório Trimestral (Jan.-Mar. 1958), p. 8.
- 14 Geraldes Cardoso ascenderá a director-geral de informação da Secretaria de Estado da Informação e (...)
- 15 Em 1960 o conselho de programas era presidido por Carlos Barradas da Silva e composto por António (...)
- 16 Os funcionários da empresa nomeados semestralmente passavam a auferir uma gratificação mensal ext (...)
- 17 Arquivos RTP, Ordem de serviço nº 10, de 03-08-1962 (anexa à nº 11, de 04-07-1962, e à nº 16, sem (...)
11Como nem toda a programação era inteligível enquanto espectáculo público, o exame prévio que o código etário exigia não se coadunava com diversos segmentos, nomeadamente o directo, base dos noticiários, mas não só. A pedido da RTP adoptou-se a solução da rádio: ter alguém de confiança política, um delegado do SNI,11 a zelar pelo processo. Este delegado garantia que a programação obedecia ao código moral, social e político não efectivamente redigido, ao contrário das directrizes precisas do exame prévio. Também analisava os guiões e, em articulação com o chefe de produção, decidia se havia garantias para que os directos (entrevistas, debates, etc.) fossem realizados. Recorria-se a estratégias censórias ad personam (Müller 2004), focadas nos participantes, incluindo o entrevistador.12 Alguns nomes seriam considerados apropriados para discorrer na televisão sobre determinados assuntos, correspondendo à exigência de um habitus linguístico e corporal, ou seja, uma submissão aos valores, hierarquias e censuras inerentes à pertença ao campo (Bourdieu 1991), definidos por critérios políticos, mas também de respeitabilidade. Outros seriam apagados da paisagem televisiva e relegados à não-existência. A transferência da responsabilidade para a RTP materializou-se na difusão do poder interno. Delegou-se a triagem no conselheiro literário, que mantinha a articulação com o chefe dos serviços de produção, de forma a assegurar “a conveniência de todos e quaisquer textos e programas sob os aspectos moral e político-social”.13 Figueira esteve envolvido em todos estes organismos, cujos membros eram figuras proeminentes do regime:14 o conselho de programas,15 o conselho de leitura,16 o gabinete literário17 e, finalmente, o gabinete de exame e classificação de programas, resultante da reestruturação da RTP em 1964.
12Em suma, à televisão foi exigido que fosse adequada ao consumo familiar, embora autorização superior instasse a que as normas fossem interpretadas com benevolência, característica de um regime onde a indefinição inscreve a ambiguidade nas leis e propicia uma grande amplitude interpretativa (Gil 1995, 46). A censura tornou-se uma tarefa interna, cuja responsabilidade recaía sobre as chefias, criando uma cultura na qual o poder censório se amalgamava na hierarquia da relação laboral. Definir os contornos desta relação é um desafio metodológico, que, apesar de algumas memórias conservadas (Pinto 1995; Teves 1998), os investigadores não conseguem ainda resolver. Faltam testemunhos, porque se antevê que “those who are on the receiving end of censorship are well aware that it can take on many different guises” (Freshwater 2004, 241) e que um questionário sobre as práticas quotidianas poderia ajudar a distinguir o que, numa ordem hierárquica, é uma intervenção indesejável – censória – ou simplesmente exercício de poder. A análise dos aspectos a montante da cobertura do assassínio de JFK permite, no entanto, perceber alguns contornos deste mecanismo de controlo personalizado.
- 18 Teves, “RTP 50 Anos (Década de 50: Emissões regulares)”, p. 7.
13Na informação televisiva a censura recaiu, desde cedo, na responsabilização do chefe de divisão. Manuel Figueira, vindo dos serviços de produção, assumiu a chefia na sequência da demissão de Domingos Mascarenhas, a 25 de Março de 1959, com quem mantinha divergências ideológicas que não impediam a colaboração. Figueira era ainda um dos poucos jornalistas com formação, que havia obtido em Espanha18 e trouxe novidades: a substituição do Jornal RTP pelo Telejornal; a introdução de rubricas fixas (efeméride, entrevista do dia, jornal da mulher, etc.), que desapareceram com a sua substituição; uma paulatina introdução de opinião no TJ: uma revista de imprensa, que reforçava as opiniões dominantes ou segmentos de comentário protagonizados por João Coito, José Mensurado ou ele próprio (Cádima 1996), e a adjudicação da realização do TJ aos seus redactores. Mantinha-se, contudo, o controlo sobre a redacção, cabendo aos locutores cingirem-se ao texto recebido e revisto pelo responsável pela divisão.
- 19 O número de receptores era baixo, se comparados com os de rádio: 119 282 (TV) e 1 067 732 (rádio) (...)
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- 22 Ramiro Valadão, íntimo de Caetano, afastou, nas palavras de Pinto (1995, 179), grande parte dos q (...)
14Quando JFK foi assassinado em Dallas, às 12h30 do dia 22 de Novembro de 1963, a televisão em Portugal era um meio medianamente estabelecido.19 A difusão havia sido lenta, dado o preço do equipamento,20 mas começava a alcançar audiências fora dos centros urbanos, no espaço doméstico, mas sobretudo em espaços de assistência colectiva (TV-clubes, casas de vizinhos ou cafés), cuja importância não se desvaneceu ao longo dos anos 60 e 70.21 Figueira foi, no final desse ano, substituído por Manuel Maria Múrias. Este último foi responsável pela valorização da persona televisiva de Salazar no TJ até 1968 (Cádima 2009). Quando Caetano assumiu a presidência do Conselho e Ramiro Valadão se encarregou da remodelação da RTP, Múrias foi substituído como chefe de divisão por Vasco Hogan Teves,22 responsável pelo TJ desde 1959.
- 23 O envolvimento do irmão, João Figueira, numa “acção revolucionária” no Verão de 1963, onde Figuei (...)
- 24 ANTT, PIDE, SC, SR 1089, NT 2343.
- 25 Notícias da Beira (1974). “Homenagem a Manuel Figueira Director de O Século”, 16 de janeiro, p. 8
15O afastamento de Figueira tem sido justificado por várias razões. Há explicações que o relacionam com uma intentona contra o regime (Pinto 1995); outras justificam-no com a sua incapacidade de tornar a informação televisiva num projecto de propaganda eficaz (Cádima 1996), encontrando na cobertura noticiosa do assassínio de JFK uma oportunidade de retaliação (Cádima 2009).23 Figueira foi uma figura central na estruturação da divisão informativa e na edificação da censura interna na RTP, papel que desempenhou expressando discordâncias, nomeadamente relativamente à transformação da televisão num projecto exclusivamente propagandístico. Independentemente da sua responsabilidade pela cobertura empática do assassínio de JFK, o seu afastamento resultou da perda de confiança política, como indicia um telex enviado a Salazar pelo representante da casa do pessoal da RTP.24 Ao sair, Figueira não foi ostracizado, passando a dirigir O Século, até ao verão de 1975. Em janeiro de 1974, os colegas do TJ organizaram-lhe uma homenagem na qual estiveram presentes Ramiro Valadão e Geraldes Cardoso,25 membros do círculo de Caetano, o que reforça a tese de uma sanção determinada por uma dada conjuntura política.
- 26 Arquivos RTP, alinhamento TJ de 23-11-1963, edição da tarde, p. 9.
- 27 Arquivos RTP, alinhamento TJ de 23-11-1963, edição da tarde, p. 15.
16Pela análise dos alinhamentos dos noticiários emitidos entre os dias 23 e 30 de novembro, verifica-se que a morte de JFK, contrariamente ao habitual, substituiu a actualidade nacional na abertura dos noticiários dos dias 23 e 24. Na ausência de filmagens, a edição da tarde de 23 recorreu à primeira página do New York World Telegrams – “o primeiro jornal norte-americano que chegou ao nosso país com a trágica notícia” –,26 a fotografias comentadas e a informações curtas (incluindo as reacções de Paulo VI, Eisenhower ou Khrushchev). A RTP conseguiu captar a primeira transmissão dos EUA para a Europa através do Telstar, que emitiu nesta edição realçando que se tratava do “primeiro documento filmado relativo à tragédia que enlutou o mundo livre”.27 Embora as fotografias comentadas se mantivessem ao longo da semana, na edição da noite houve mais filmagens, nomeadamente uma montagem fornecida pela UPI de flashes da vida governativa: surgem imagens de Cuba, de Berlim, da Irlanda, de audiências com o Papa, misturadas com imagens da vida familiar de JFK. A relevância do evento nas actualidades internacionais manteve-se até ao dia 29. As imagens do evento na RTP foram fornecidas praticamente em exclusivo pela UPI (31 segmentos, incluindo dois cortados) e emitidas preponderantemente na edição da noite, embora a RTP participasse no ritual de luto, emitindo reportagens próprias das missas realizadas no Mosteiro dos Jerónimos (25) e no Porto (26).
- 28 Arquivos RTP, alinhamento TJ de 23-11-1963, edição da tarde, p. 7.
- 29 Arquivos RTP, alinhamento TJ de 24-11-1963, edição da tarde, p. 13.
17O sofrimento da viúva e dos seus filhos materializa-se com frequência através de imagens do funeral, das cerimónias religiosas ou de visitas à campa, acentuadas por comentários emotivos da responsabilidade da divisão de informação. Uma fotografia é acompanhada pela pungente descrição: “Curta, mas comovente até às lágrimas, a cerimónia que precedeu o encerramento da urna com os restos mortais do Presidente assassinado. A senhora Jacqueline Kennedy colocou a sua aliança nupcial na mão do marido morto. Beijou-lhe depois os lábios frios”.28 Emitiram-se imagens de mostras de pesar por todo o mundo, em grande medida fornecidas pela UPI. Nos alinhamentos surgem rasuradas algumas notícias referentes a mostras de pesar de países do bloco de leste: a missa realizada na catedral de São João em Varsóvia, o editorial do jornal do partido comunista polaco que classificava a dor dos americanos “de boa vontade” ou a semana de luto oficial decretada na Argélia por Ben Bella.29 Aliado ao corte das imagens de sofrimento em Moscovo, pode concluir-se que tendencialmente se procurou retratar a morte de JFK como uma tragédia do bloco ocidental, que Portugal integrava, obliterando quer os elementos que pudessem humanizar os seus oponentes, quer recordar os enfrentamentos com o regime português.
- 30 Teves, “RTP 50 Anos (Década de 50: Emissões regulares)”, p. 7.
- 31 ANTT, PIDE, SC, SR 1089, NT 2343.
- 32 Teves, “RTP 50 anos de História (Década de 60: RTP aos 10 anos)”, p. 12.
18A política de preservação do império colonial português chocou com a política externa da administração Kennedy, a favor da descolonização e de uma resolução do conflito no seio da ONU, embora a posição portuguesa na NATO e o interesse dos EUA na Base Aérea das Lajes tenha obrigado a um suavizar da sua posição (Santos 2009; Silveira 2019). JKF não era uma figura política estimada por importantes sectores do regime, sobretudo depois da recusa em atender aos pedidos do mesmo aquando do assalto ao paquete Santa Maria, liderado pelo ex-quadro do regime Henrique Galvão (Silveira 2019). Entender a substituição de Figueira como resultado da perda de confiança política por parte do regime permite aprofundar a forma de funcionamento da divisão de informação. A responsabilidade pela intensidade e empatia transmitida por este evento foi de Figueira; contudo, a sua posição na RTP era complexa. Estava completamente comprometido com o seu sistema censório e não apenas com o informativo. Tal como a maioria dos profissionais que debutaram na RTP, Figueira pertencia à União Nacional (UN), tendo sido recrutado por Camilo Mendonça, companheiro do Centro de Estudos Político-Sociais.30 Contudo, entre 1941 e 1948, antes de ser presidente da Câmara do Barreiro, foi vigiado pela PVDE/PIDE, dada a sua ligação a grupos políticos assumidamente germanófilos.31 Sendo incerta a sua lealdade a qualquer um dos presidentes do Conselho, era um homem do regime, próximo de personalidades ligadas ao cinema, como Fernando Lopes, mas também de figuras malquistas.32 Quiçá por se encontrar tão comprometido, era-lhe permitido divergir, discordando da função essencialmente propagandística da informação televisiva e do carácter altamente personalizado da censura da mesma.
- 33 RTP, cx 50, Regulamento do gabinete literário da RTP, 04-06-1962.
- 34 RTP, cx 50, carta de Manuel Figueira a Freitas da Costa. Ref. 289-N/DND, 16-09-1962.
19Figueira participou na elaboração do regulamento que estipulava que “os textos do Telejornal, rubricas desportivas e outros programas da divisão de noticiários e desportos que, pelas suas características de actualidade, não possam ser apreciados com antecedência, serão censurados diariamente por um dos membros do gabinete na própria divisão”.33 Esta divisão era chefiada pelo próprio Figueira (Cádima 2009). Porém, a sua participação foi crítica, expressando ao administrador Eduardo Freitas da Costa o seu desacordo, quer com a função propagandística que se adjudicava à televisão, quer com a ambiguidade imputada à censura. Considerando que as notícias, mesmo em formato televisivo, deveriam estar subjugadas ao princípio “informativo – objectivo e sério –, e não se destina[ndo] fundamentalmente a uma finalidade formativa”,34 opunha-se à sua utilização para fins propagandísticos. Aceitava que a informação fosse “condicionada a razões de ordem moral e, nas circunstâncias presentes, também de ordem política, na preservação dos altos interesses nacionais”, aludindo à guerra, mas insistia que estes interesses fossem claramente enunciados e descritos, a nível superior, para que cada serviço pudesse cumprir adequadamente a sua função.
- 35 RTP, cx 50, carta de Manuel Figueira a Freitas da Costa. Ref. 289-N/DND, 16-09-1962.
20Figueira queria regras escritas e definidas top-down que, à semelhança da censura militar, aligeirassem a dispersão da acção e a centralização da responsabilidade. Evidenciava os riscos da personalização: sem critérios definidos prevaleceria “o risco de sujeição a práticas de sectarismo de mera inspiração pessoal, geradas no dia-a-dia, consoante as tendências particulares de cada um dos encarregados da supervisão de textos, notícias e imagens destinadas à apresentação dos acontecimentos nacionais ou do mundo”,35 precisamente o que o caso JKF demonstra. Como tal, o afastamento do responsável pela apresentação dos acontecimentos do mundo foi, sem dúvida, resultado da personalização instituída na censura da informação televisiva que Figueira veemente criticou. A perda de confiança política, um valor-chave para desempenhar este trabalho, significou a sua substituição.
- 36 Utiliza-se a categoria “metrópole” e derivados para referência a Portugal, como termos constituin (...)
21Em 1968, Portugal lutava contra os movimentos de libertação nacional em três frentes: em Angola (1961), na Guiné (1963) e em Moçambique (1964). No pequeno ecrã metropolitano,36 a tímida presença da guerra colonial contrastava com o desenvolvimento da guerra do Vietname, proporcionado pela elevada percentagem de material comprado a agências internacionais que, no fundo, contribuíram para a formação do espectador metropolitano no consumo mediático de um cenário de guerra. Este contraste permite vislumbrar uma lógica informativa à qual a censura e a dimensão proteccionista do regime, por um lado, não conseguem ser totalmente alheios, reproduzindo os desequilíbrios do fluxo de informação transnacional, e, por outro, da qual beneficiam, quando os interesses norte-americanos se alinham com os do regime.
- 37 As “Normas de segurança a observar, na publicação, radiodifusão ou televisão de notícias, crónica (...)
- 38 “Normas de segurança...”, publicadas a 1 de Junho de 1966.
22A censura militar37 impôs regras muito precisas sobre a informação dedicada à guerra. Embora a partir de 1966 já se pudessem anunciar as chegadas das tropas até três dias antes e as partidas no dia anterior, os elementos identificativos (rota, destino, número de efectivos ou material transportado) mantinham-se confidenciais e estavam proibidas as notícias que pudessem afectar “o moral, o brio ou a honra”38 das forças militares (deserções, falta de qualidade do material bélico ou indisciplina), assim como referências a “factos susceptíveis de estabelecer rivalidade entre as Forças Armadas”, quantitativos de baixas não oficiais (feridos, mortos, prisioneiros) ou identificação de baixas sem autorização prévia do Serviço de Informação Pública das Forças Armadas (SIPFA). A informação portuguesa não deveria fornecer munições que pudessem ser exploradas politicamente pelo inimigo, nomeadamente na ONU, pelo que nem as baixas do adversário nem o uso de material de armamento pesado deveriam ser salientados, embora em 1966 já não se falasse de “acção policial”, como em 1962, assumindo tratar-se de uma “acção militar portuguesa”.
23Ambicionou-se que a RTP fosse uma máquina de propaganda. No pequeno ecrã os territórios coloniais surgiam, nos programas de propaganda colonial da Agência Geral do Ultramar (AGU), como terras onde o desenvolvimento e a prosperidade se deviam ao crescente investimento da colonização portuguesa. A partir de 1965, o programa Ao Serviço da Nação apresentava quinzenalmente, durante 30 minutos, os feitos militares portugueses, incluindo a assistência prestada aos habitantes locais. Porém, a actualidade da guerra colonial não era matéria de TJ, contrariamente ao Vietname, a cruzada estado-unidense contra o comunismo, relançada mediaticamente pela Ofensiva do Tet. Semelhante discrepância de visibilidade foi sinalizada por Jacinto Godinho (2019, 220) em relação à revolta estudantil de 1968 e à crise académica do ano seguinte, concluindo tratar-se a RTP de um “mediador evanescente” do regime. Não discordando da conclusão, a análise material realizada permite relacionar esta substituição da doutrina oficial por uma de cariz oposto, com o funcionamento do fluxo informativo transnacional, no qual os EUA tinham uma importância decisiva.
- 39 ADN, SIPFA, cx. 64, pt. 11, Conselho coordenador da informação, “Reunião de 6 de Maio de 1968. Sú (...)
- 40 ADN, SIPFA, cx. 64, pt. 11, “Reunião de 30 de Outubro de 1967. Súmula 32”, pp. 1-2.
24Em 1968 a presença do Vietname na RTP estava “em contraste com o sóbrio noticiário transmitido respeitante à luta no ultramar”,39 no entender do Conselho Coordenador da Informação Pública. A preocupação do Conselho recaía sobretudo na difusão de imagens de protestos antiguerra, incluindo em Espanha,40 preocupação fundamentada, já que o movimento antiguerra soube usar habilmente os critérios noticiosos a seu favor (Gitlin 1980), criando eventos newsworthy (Tuchman 1978), propagando, desta forma, uma mensagem antiguerra através da televisão dos EUA (Mandelbaum 1982). A preocupação do Conselho incorpora ainda a possibilidade de que a exposição às imagens do Vietname pudesse mediar uma leitura opositiva (Hall 2019a) – antiguerra colonial – que, tal como se comprovou, teve os seus efeitos.
- 41 ADN, SIPFA, cx. 65, pt. 11A, “Relatórios TV”, 1968-1969.
- 42 ADN, SIPFA, cx. 65, pt. 11A, “Discriminação das notícias directas”, p. 5.
25Em março de 1968 as notícias sobre os territórios coloniais portugueses referiam-se sobretudo àqueles que eram teatro de guerra (Angola, Guiné e Moçambique), mas invisibilizando-a.41 Emitiram-se três notícias tangencialmente sobre a guerra: a cerimónia de encerramento da escola de recrutas de 1967-1968, a inauguração “de uma exposição de armamento apreendido aos terroristas”42 e um acidente da força aérea em Cabo Delgado, devido a um violento temporal, quiçá indício de um ataque. Transmitiram-se oito boletins militares do SIPFA, três sobre Angola e cinco sobre a Guiné, o território cuja presença noticiosa mais se baseava nestes comunicados, talvez porque escasseassem imagens desenvolvimentistas. As restantes notícias eram maioritariamente dedicadas à vida dos colonos: aos rituais de estado (inaugurações, visitas, etc.), ao desenvolvimento de infraestruturas, às idas e vindas de personalidades, a eventos da vida cultural e desportiva ou inesperados desastres naturais. Entre 1968 e 1969, o material internacional nos noticiários portugueses podia atingir entre um quarto e metade dos mesmos (tabela 1.) Porém, o acesso a estes elementos é indirecto, reduzindo-se ao material escrito. Falta o enquadramento dado a esses excertos, a linguagem corporal do locutor ou a entoação da sua voz, e principalmente a possibilidade de cotejar as imagens em bruto com as emitidas. Ainda assim, permite concluir que, apesar das mudanças de chefia, não se verificou uma diferença substancial na utilização de material estrangeiro e que estas imagens constituíram um certo tipo de representação da guerra que a audiência portuguesa consumiu a par dos programas de propaganda militar.
26Apesar de ser um tópico informativo dominante, a presença quotidiana do Vietname na televisão não era garantida por filmes ou fotos do imediato (Patterson 1984). As condições materiais (custo do filme e tempo de envio) influenciavam a produção televisiva. Havia escassez de filme, e as imagens dos noticiários, em décalage com as notícias, serviam como “ruído de fundo” ao comentário do locutor. Ao contrário da interpretação adoptada pelo Pentágono, de que a guerra se havia perdido nas salas de estar, conferindo aos media o estatuto de contrapoder (um poder mais associado à visibilidade que o movimento antiguerra de facto conseguiu obter), tem sido demonstrado que a maioria dos media não foi antiguerra, nem providenciava interpretação das imagens fornecidas, limitando-se a seguir os comentários das autoridades político-militares sobre os últimos desenvolvimentos (Mandelbaum 1982). Algumas imagens produzidas tornaram-se icónicas e perduraram no tempo, influenciando não só a memória colectiva (Hoskins 2004) como integrando a mitologia do que a reportagem de guerra deveria ser (Griffin 2010). No entanto, a maioria das imagens seguia uma lógica mercantil: o ponto de vista estado-unidense tinha como personagem principal o soldado americano lutando contra um inimigo anónimo. As sequências de luta eram incentivadas, pois eram dramáticas, capazes de chamar a atenção do público e de gerar mais procura no mercado (Mandelbaum 1982). O consumo da guerra do Vietname servia a própria agenda do regime, fornecendo uma leitura preferencial sobre o conflito: imagens de uma guerra anticomunista, travada contra movimentos de guerrilha.
Tabela 1 Notícias internacionais de noticiários do canal 1 da RTP, Março 1968-Abril 1969 (em percentagem)
Fonte: ADN, SIPFA, cx. 65, pt. 11 A, “Relatórios TV (1968-1969)”.
- 43 O contrato com a UP, através da ANI, data de 1956 (ANTT, AOS, cx. 679, Comissário do Governo Rela (...)
27Assumindo que a tecnologia televisiva afecta a produção cultural e psicológica da época (Kittler 1999), não será despiciendo considerar que, em parte, a audiência da RTP se formou a “ver as notícias” por formatos internacionais, presentes desde o início.43 Forma e conteúdo tiveram o seu papel, pois o regime não conseguia, e por vezes não lhe interessou, retirar-se totalmente da influência da agenda mediática transportada pelo fluxo informativo transnacional. Entre 1968 e 1969, as notícias internacionais ou, pelo menos, as suas imagens eram compradas sobretudo a fornecedores estado-unidenses, como a UPITN (5,23 a 20,02% dos noticiários) e a CBS (2,23 a 6,41%), seguidas da ORTF francesa e das agências de informação dos EUA (USIS) e do Reino Unido (COI) (tabela 2). Em 1973, a RTP continuava a importar cerca de 35% do seu material televisivo (entre 40 e 60 % dos EUA), não destoando da média da Europa Ocidental (Nordenstreng e Varis 1974, 23). É, portanto, plausível que o público metropolitano estivesse mais a par dos desenvolvimentos no Vietnam e familiarizado com as suas imagens icónicas, que informado sobre o que se passava em Angola, Guiné ou Moçambique, onde muitos tinham familiares a lutar.
Tabela 2 Fornecedores internacionais de notícias nos noticiários do canal 1 da RTP, 1968-1969 (em percentagem)
Fonte: ADN, SIPFA, cx. 65, pt. 11A, “Relatórios TV (1968-1969). Notas: A – em % do total de notícias; B – em % do internacional.
- 44 RTP, cx. 114, Grelhas.
28Durante a Ofensiva do Tet, que recolocou o Vietname neste fluxo sob um prisma diferente (Hallin 1986), os números da UPITN e da CBS são especialmente altos. Todavia, os registos da programação diária44 mostram-nos outros tópicos. Comparando dias específicos: 21 de Março de 1964 e 20 de Julho de 1969, sob o controlo personalizado distinto – Múrias e Teves –, verifica-se que o tipo de notícias dedicadas aos territórios coloniais não diverge. Há rituais de estado: uma visita do governador Silvério Marques em Angola (1964) e uma visita do governador-geral de Angola a Malange (1969), eventos de cariz religioso, propagandístico ou cultural como a visita a São Tomé e às suas plantações de café por estudantes metropolitanos, patrocinada pela TAP (1964), a actuação de Amália em Lourenço Marques/Maputo (1969), as celebrações da Páscoa na Guiné e em Nampula (1964), a partida do navio da AGU a caminho de Moçambique e, finalmente, a chegada de tropas militares, vindas de Moçambique (1969). Se a guerra colonial não era notícia, vários conflitos armados surgiam, contudo, no ecrã metropolitano.
29Nesta amostra verifica-se que as notícias internacionais na RTP se acomodam aos factores culturais que Galtung e Ruge (1965) identificaram para que um evento se torne notícia relevante no fluxo informativo e seja distribuído mundialmente: as noções de nações e pessoas de “elite”, a possibilidade de personificação do evento e as suas consequências negativas. No caso da RTP é determinante a noção de “elite”. Tornam-se relevantes notícias cujo palco são os EUA ou o Reino Unido, sejam estes mundanos e/ou envolvendo personalidades de fama mundial – a condecoração dos Beatles (1964) ou o concurso de Miss Universo em Miami (1969) – ou políticos – o envolvimento de Ted Kennedy em Chappaquiddick (1969). Quanto mais perto do “Norte”, detentor dos canais de distribuição responsáveis por moldar a agenda mediática (McNelly 1959), nomeadamente as agências noticiosas americanas, inglesas e francesas, maior a probabilidade de o evento se transformar em notícia. Porém, o “Sul” penetra tendencialmente, quer através de personalidades “de elite” de nações menos relevantes no sistema-mundo, como a Princesa Sofia, esposa do sucessor de Franco, ou Joseph Kasa-Vubu, primeiro presidente do Congo-Léopoldville, quer através da negatividade (guerras, golpes, desastres naturais). A representar o “Sul global” encontramos conflitos no Sudeste Asiático (Vietname, 1969), no Médio Oriente (conflito entre Israel e o Egipto, 1969), no sul da Europa (guerra civil no Chipre, 1964), na América Central (conflito entre El Salvador e Honduras, 1969) e em África (crise do Biafra, 1969).
30A política informativa do regime protegeu os seus interesses, nomeadamente tornando invisível a guerra colonial na informação. Porém, a presença de material internacional nos noticiários, em particular o fornecido pelos EUA, mantinha um esquema noticioso que hierarquizava entre nações e pessoas de “elite”, representando negativamente o “Sul”. Alimentava-se o espectador metropolitano com “exportações” estado-unidenses e dinâmica de Guerra Fria, que, baseada no combate ao comunismo, era partilhada pelo regime, ainda que o Vietname permitisse mediar tanto sentimentos anticomunistas (leitura preferencial) como antiguerra colonial (leitura opositiva). Exportava-se igualmente a sociedade cívica estado-unidense, formas de governança e um ethos democrático baseado no consumo (Grazia 2005), que era associado a um tipo de conhecimento geopolítico e de cultura de celebridade, potenciador da mediação evanescente (Godinho 2019). Apesar dos vários níveis de controlo, inclusive o personalizado, o regime não manteve a televisão completamente fora da lógica dominante do fluxo de informação transnacional e do poder de sedução do “império do mercado” (Grazia 2005). Como tal, duas lógicas informativas, por vezes coexistindo e noutras colidindo, concorriam na limitação da visibilidade: uma baseada na repressão e outra baseada na imposição material do seu ponto de vista.
31No Verão de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin aterraram na Lua, protagonizando um dos eventos televisivos mais famosos do mundo e consagrando a vitória estado-unidense na corrida ao espaço. Este feito televisivo permite-nos analisar a forma como na televisão portuguesa se lidava habitualmente com o fluxo informativo transnacional: subjugando-o à agenda nacional no alinhamento dos noticiários. Como evento televisivo, a aterragem lunar teve importantes consequências: foi decisiva para a introdução da televisão na África do Sul, decisão a que o Partido Nacional se viu forçado pela minoria branca, limitada a imaginar a chegada à Lua, ouvindo o relato radiofónico e folheando periódicos, tal como em Angola e Moçambique, onde a televisão era também reclamada. A nomeação da comissão TV/ultramar no início de 1970 foi influenciada pela decisão sul-africana, ambas impulsionadas pela acessibilidade que a televisão via satélite, impossível de controlar, começava a proporcionar (Krabill 2010).
- 45 Diário (1969). “O Homem na Lua. Intensa cobertura radiofónica do Rádio Clube de Moçambique”, 21 d (...)
- 46 Peça de Jacinto Godinho (19-03-2007), https://bit.ly/3rG527i.
- 47 Notícias da Beira (1969). “Os astronautas americanos fazem hoje o mesmo que os portugueses já fiz (...)
- 48 Peça de Joaquim Godinho cit., 51’’.
32Em Moçambique, o Rádio Clube de Moçambique, uma rádio cujo alcance e ambição baralhava a noção de centro metropolitano e periferia colonial (Freitas 2021), organizou uma longa cobertura do evento, retransmitindo a Emissora Nacional e a Voz da América.45 Na metrópole, as pessoas reuniram-se em frente à televisão para assistir à emissão especial da RTP. Os inquiridos pelos vários media46 manifestavam, na metrópole como nas colónias, opiniões e expectativas similares: grande aventura, feito equivalente à expansão marítima, desperdício de dinheiro, etc. Estas reacções demonstram que a corrida espacial foi enquadrada pela história portuguesa em diversas ocasiões e por actores distintos, desde os repórteres da RTP ao diplomata estado-unidense citado na imprensa moçambicana.47 A chegada à Lua enquanto extensão da expansão marítima portuguesa mobiliza um tema central na natureza ideológica do regime e da sua máquina de propaganda (Castelo 2015) que teve lastro, a avaliar pelas evocações dos inquiridos. A importância de ambos os eventos é equiparada, realçando a importância global do passado português, a par de alusões à dimensão política da corrida ao espaço, reconhecendo, na chegada à Lua, a vitória do bloco ocidental.48
- 49 RTP, cx. 114, Grelhas.
33A RTP organizou um longo directo (cerca de 15 horas), apresentado por José Mensurado, intercalado pela programação dominical: missa, compacto desportivo, noticiários, TV Rural, etc. A emissão ininterrupta entre a 01h03 e as 6h37 foi proporcionada pela Eurovisão, que transmitia imagens da televisão japonesa e do Houston Control Center. Ora, um evento de tamanha magnitude transnacional, cuja importância foi reconhecida tanto na metrópole como nas colónias, onde fez primeiras páginas, não teve no TJ esse tipo de destaque. Ao longo do dia, os noticiários mantiveram o seu alinhamento habitual, abrindo com as actualidades nacionais: a procissão da Nossa Senhora da Arrábida em Setúbal (1ª ed) ou o 25º aniversário da fábrica de cimento Cibra, visitada pelo Presidente da República (2ª ed).49 A chegada à Lua foi entalada entre as festas de Marco de Canaveses e as declarações de um militar no Vietname (1ª ed) ou entre a entrevista de Rui Romano aos organizadores do cruzeiro da AGU e a reunião do Partido Socialista Israelita (2ª ed).
34O alinhamento do TJ obedecia à lógica habitual de precedência do nacional, independentemente dos critérios que hierarquizam a agenda noticiosa. Neste sentido assemelhava-se à imprensa metropolitana, onde valores do jornalismo, como os critérios de noticiabilidade ou o valor-notícia não encontravam lugar (Lima 2014, 115). Algumas notícias estado-unidenses, como o assassínio de Robert Kennedy ou a candidatura de Nixon à presidência, abriram o TJ (Cádima 1996, 199). No entanto, tal como o assassínio de JFK, constituem-se excepções ao habitual. Apesar da reprodução do fluxo transnacional, a agenda televisiva não é habitualmente perturbada, pelo menos na hierarquização que o alinhamento traduz. Contrariamente à conclusão de Godinho (2019), este gesto habitual parece transcender decisões dos chefes de divisão, daí a insistência em considerá-lo habitual, no sentido de inquestionável. A forma como se hierarquizava o alinhamento permite aceder ao aspecto produtivo do condicionamento do espaço público: uma construção da realidade onde reina o primado da nação. Neste evento, duas lógicas colidem: a imposição global da agenda estado-unidense, que transforma a aterragem na Lua num evento televisivo mundial, no qual a RTP participa, e a necessidade de o reenquadrar segundo a lógica informativa do regime.
35O que é que as formas produção informativa, incluindo a censura, nos dizem sobre o Estado Novo? A introdução da nova tecnologia televisiva implicou reconceptualizar a censura, nomeadamente estabelecendo a(s) fase(s) do processo em que se podia intervir e como. É um exemplo de como o material instigou o conceptual. O ímpeto de centralização da decisão, comum a várias instâncias censórias do regime, viu-se posto em causa por uma alteração profunda da temporalidade e das formas que a tecnologia televisiva exigia. Ao contrário de outros meios, sujeitos à aprovação de uma entidade externa à sua actividade (a Comissão de Censura, a Inspecção de Espetáculos, etc.), a censura televisiva fazia-se sobretudo internamente: o material que podia ser sujeito a exame prévio passava, a partir de 1964, pelo gabinete de exame e classificação de programas. O restante, nomeadamente uma parte importante da informação, ficava sujeito ao critério pessoal de uma censura diluída nas relações laborais. A disseminação interna do controlo teve como contrapartida a centralização da responsabilidade nas chefias – cargos que passaram a ser de confiança política. Como demonstrado pelo caso de Manuel Figueira – e até, mais tarde, de Manuel Múrias – a perda da confiança política significava o afastamento do cargo.
36Na informação internacional vislumbra-se o funcionamento da economia política da comunicação, capaz de ultrapassar fronteiras literais e imateriais. Ou seja, apesar de haver uma política proteccionista para os media, foi necessário fazer concessões não só ao contínuo desenvolvimento tecnológico da emissão televisiva como às dinâmicas transnacionais das quais esta resulta. Desta análise obtém-se uma nova leitura sobre o fechamento mediático do regime: obriga-nos a ter em consideração que no domínio da informação estão presentes outras dinâmicas, relacionadas com o funcionamento do mercado informativo internacional, em particular o estado-unidense, um dos maiores fornecedores da televisão portuguesa. Dinâmicas que são muitas vezes relegadas quando se entende o constrangimento do espaço público como prerrogativa do regime. Os três eventos demonstram como a televisão portuguesa não se conseguiu isolar da dinâmica transnacional, reproduzindo o fluxo transnacional de informação, que tanto podia enaltecer uma figura malquista pelo regime, como JFK, como beneficiar as opções políticas do mesmo, demonstrado pelo caso do Vietname. A visibilidade deste conflito contra o inimigo comunista contrasta com a invisibilidade da guerra colonial, cuja presença mediática, sujeita às normas militares, foi em grande medida substituída por imagens da vida colonial. A análise da aterragem lunar permite observar como a política informativa do regime moldava um espaço público impregnado de produtos mediáticos transnacionais, hierarquizando o nacional independentemente do carácter newsworthy dos eventos internacionais, constituindo um exemplo do carácter produtivo da censura televisiva.
37O espectador metropolitano acompanhava a actualidade internacional, mais ou menos deturpada, as suas celebridades e os seus eventos-chave, forjando-se enquanto espectador através de formatos e conteúdos estado-unidenses e da lógica proteccionista do regime. Várias limitações, contudo, enformam este trabalho. A carência de uma análise do grau de manipulação noticioso, dificultada pela falta de acesso ao tipo de cortes de imagens de fornecedores estrangeiros, dificilmente será colmatada, pois exigiria um arquivo diferente daquele que se encontra disponível. Contudo, futuras investigações poderiam resolver outras limitações, como a ausência de testemunhos sobre da cultura laboral na RTP, que permitissem aferir o grau de efectividade da personalização da censura, ou de elementos sobre o processo de descodificação por parte da audiência. Avaliar o tipo de leitura provocada – preferencial, opositiva ou negociada –, pela presença quotidiana do fluxo transnacional permitiria avaliar o grau de efectividade das políticas informativas do Estado Novo.
