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Recensões

João Martins e Silva, Porto: a epidemia de 1899. Circunstâncias e consequências. Porto: U. Porto Press, 2022, 505 pp. ISBN 9789897463402

Jorge Fernandes Alves

Texto integral

1A problemática relacionada com o surto de peste bubónica que surgiu no Porto em 1899 ganhou um novo contributo com a publicação do livro de João Martins e Silva, médico, investigador e professor catedrático aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Obra de profunda investigação em torno da patologia sustentada na infeção pela bactéria designada de Yersinia pestis, este livro configura-se como incontornável na história da saúde pública em Portugal, tanto pela sistematização epidemiológica global como pelo enquadramento histórico em diversas vertentes. A peste de 1899 observada no Porto tornou-se um acontecimento referencial por múltiplas razões ainda muito vivas no imaginário portuense, pelo que tem suscitado abordagens e revisitações diversas, algumas recentes. Acrescentando informação e interpretação ao estado da arte, o presente livro, acabado de redigir durante a recente pandemia de COVID-19, ganha ainda mais oportunidade, pois guia-nos numa visita ao passado relativamente próximo de uma vivência epidémica na qual é possível ver posições, comportamentos e atitudes de insegurança e de medo perante um fenómeno indesejado e ameaçador com potencial de alastramento na mortalidade, mas também de turbulência e de revolta na reação a algumas das medidas de controlo e prevenção então aplicadas, consideradas autoritárias, ineficazes e obsoletas, com um potencial de efeitos económicos e sociais devastadores.

2Procurando olhar além do fenómeno local, o autor, recorrendo a uma abundante bibliografia, prodigaliza-nos um documentado historial sobre a peste ao longo dos tempos e lugares, expondo as interpretações das sucessivas escolas médicas, “dos miasmas à teoria microbiana”, sublinhando a importância das propostas pasteurianas e afins, nos finais do século XIX, para a abertura do caminho a novos diagnósticos e profilaxias de muitas doenças, entre elas a peste bubónica, antigamente conhecida como “peste negra”. Neste domínio, o autor sublinha que os progressos médicos acontecem alguns anos antes da “terceira pandemia”, quando a peste bubónica, endémica em alguns lugares do globo, alastra, a partir da China, potenciada pelo tráfego marítimo, detetando-se casos na Europa desde 1896 (Inglaterra), em tripulantes de navios. Foi no estudo da epidemia verificada em Hong Kong que Alexandre Yersin, do Instituto Pasteur, conseguiu isolar, em 1894, a bactéria que mais tarde seria denominada de Yersinia Pestis (designação em sua homenagem, verificada apenas no ano de 1944). Seguiram-se outros estudos, levados a cabo posteriormente por Paul-Louis Simon (também do Instituto Pasteur), que estabeleceram a ligação animal, a partir de ratos, na transmissão da peste aos humanos, com as pulgas associadas a funcionarem como “vetores de inoculação e transporte da infeção” aos hospedeiros. A peste manifestava-se inicialmente pelo aparecimento de bubões, a que se seguiam febre alta e cefaleias violentas, podendo seguir-se a morte em tempo breve.

3Como sublinha Martins e Silva, as pesquisas de Alexandre Yersin permitiram, desde logo, ir mais longe do que a mera observação clínica e epidemiológica para o diagnóstico da peste, o qual passou então a fazer-se pela confirmação laboratorial para a deteção da bactéria em causa em amostras de bubões e outros tecidos colhidos nas autópsias de cadáveres de afetados. Detetada a origem bacteriana da peste, tornou-se possível indicar medidas preventivas e avançar para o tratamento por soroterapia. Este foi o passo seguinte de Yersin, que, em 1896, injetou 36 doentes em Hong Kong com soro de cavalo previamente imunizado com a bactéria pestífera, morrendo então apenas dois dos pacientes, embora experiências posteriores se revelassem menos otimistas. No Instituto Pasteur aprimorou-se depois o estudo do bacilo e passou-se a produzir o soro imunizante. Assim, foi no quadro deste recente, mas ainda balbuciante, conhecimento da etiologia da peste que se diagnosticaram casos de peste bubónica no Porto, em 1899, cuja narrativa Martins e Silva desenvolve a partir do terceiro capítulo. Complementa as informações do relatório oficial de Ricardo Jorge com uma leitura da imprensa e de documentação de arquivos históricos e fotografias alusivas ao processo. Procura conferir visibilidade a pessoas, procedimentos de intervenção e equipamentos, dando lugar tanto às preocupações sanitárias dos serviços municipais, liderados por Ricardo Jorge, como às hesitações das autoridades centrais.

4Dos casos de doença fulminantes de alguns “galegos”, carregadores de bordo na Ribeira, Ricardo Jorge rapidamente passou para a análise laboratorial, detetando no pus extraído de um bubão de um doente falecido o bacilo da peste, enviando a amostra para o Real Instituto Bacteriológico, em Lisboa, onde Câmara Pestana confirmou o diagnóstico. Sucederam-se os trabalhos laboratoriais para novas confirmações e as medidas profiláticas de combate que passavam inicialmente pelo isolamento dos empestados, desinfeção dos lugares contaminados, saneamento das ruas, extermínio de ratos. Providências mais amplas, com medidas extraordinárias adequadas a uma epidemia, cabiam ao governo central, que avançou lentamente dado o clamor público e o alarme suscitado. Perante a confirmação oficial da existência de peste na cidade, surgiram posições negacionistas, com alguma imprensa, a mais popular, a sustentar que existiria apenas um problema de saneamento que há muito reclamava medidas. Após as hesitações iniciais, as decisões do poder central acabaram por chegar, sustentadas nas recomendações da Junta Consultiva de Saúde Pública, sugerindo “29 medidas” para enfrentar a epidemia, desde a notificação sanitária às outras nações, inspeção e passaportes sanitários, desinfeção de mercadorias e, sobretudo, aquela que se tornaria emblemática, o “cerco” à cidade, alargado parcialmente a concelhos limítrofes, através de um cordão sanitário, assegurado por forças militares, imposto por decreto de 23 de agosto.

5O isolamento da cidade foi implementado contra o parecer do médico municipal, Ricardo Jorge, que manifestou publicamente a sua discordância, e sem o governo ouvir a municipalidade ou outras entidades representativas da cidade. Multiplicaram-se então manifestações populares, discursos de negação da peste e protestos contra as medidas que o poder central impunha à cidade, pois restringia a dinâmica económica e social, com consequências a vários níveis. Reclamavam a câmara municipal, as associações de pendor económico, a imprensa, os comerciantes com “jornadas de luto”, além dos tumultos populares na rua em face de algumas consequências, como a escassez no abastecimento de artigos alimentícios e o súbito desemprego pelo fecho de fábricas. Registe-se ainda o embargo às exportações e a circunstância do sistema portuário Douro-Leixões ser considerado internacionalmente como “porto sujo” ou “infectado”. A declaração oficial de peste bubónica no Porto rapidamente ecoou no país e no estrangeiro. Entretanto, Ricardo Jorge solicitara uma missão ao Instituto Pasteur, em Paris, e encomendava-lhe soro Yersin. E o Porto “empestado” tornou-se, então, um palco de visitas de outras delegações médicas estrangeiras que vieram conhecer a situação, confirmando e legitimando o diagnóstico inicial, e trazer algumas recomendações, numa “confraternidade universal dos que se ordenaram no sacerdócio médico”, citando as palavras sentidas de Ricardo Jorge, recuperadas por Martins e Silva.

6O autor relata-nos também a emergência e o pulsar da peste e as atribulações diversas das respostas médicas, políticas e sociais, em cronologia estreita, de cadência quase quotidiana, num processo que coincide, grosso modo, com os três meses do verão desse ano fatídico de 1899, surgindo a atenuação gradual das medidas restritivas nos finais de setembro. O cordão sanitário, porém, só foi reduzido em princípios de novembro e levantado totalmente em 16 de dezembro de 1899, embora ainda se registassem casos de peste nos primeiros dias de 1900. Em 6 de fevereiro de 1900, surgia a ordem governamental para suspender as restantes providências sanitárias relativas à peste, retomando-se a normalidade. Mas, como registou mais tarde o médico Fernando Correia da Silva no seu Portugal Sanitário, continuaram a verificar-se casos de peste bubónica até 1915, em várias localidades, embora silenciados, dadas as repercussões que teria o conhecimento público da presença desses casos.

7Martins e Silva confere ainda destaque às “controvérsias e incoerências” observadas ao longo do desenrolar do processo, abordando tópicos sobre a ineficácia e irregularidades do cordão sanitário, a desobediência popular e os diversos motins, a contestação médica ao cordão sanitário em face dos normativos estabelecidos pelas conferências sanitárias internacionais. Não descura os efeitos da politização da peste, de que os mais evidentes foram o surto de republicanismo e a eleição de três deputados republicanos no Porto, nas eleições do final do ano, em detrimento dos tradicionais candidatos dos partidos monárquicos: Afonso Costa, Xavier Esteves, Paulo Falcão, com eleição confirmada uma segunda vez (por anulação governamental da primeira), tornaram-se os designados “deputados da peste”, com o Porto a mostrar o seu descontentamento para com o regime político dominante. Não poderia faltar nesta obra a referência à casuística da crise e a sua tradução na mortalidade, conferindo desenvolvimento ao caso ocorrido com o médico Câmara Pestana, diretor do Real Instituto Bacteriológico, ele próprio uma das vítimas diretas da peste, contaminado na segunda vez que foi ao Porto, no decorrer de uma autópsia.

8Os capítulos finais do livro abrangem questões como as condições de salubridade da cidade, as “conjeturas sobre a proveniência da peste”, as repercussões internacionais. Os quatro últimos capítulos abordam, sucessivamente, as condições de prevenção e terapêutica ao tempo, os estabelecimentos de saúde ligados ao tema, bem como o caso profissional de Ricardo Jorge, que, enquanto mensageiro da má notícia, foi perseguido, apodado por alguns de “inventor da peste”. Atacado, acabou por deixar o Porto, não obstante ter considerado inadequado o “cordão sanitário” e defender, desde anos atrás, a higienização da cidade. Enquanto esteve no Porto, Ricardo Jorge, para além de professor na Escola Médico-Cirúrgica, cumpriu a sua função de médico municipal, atento à saúde pública e, no caso da peste, tratava doentes, comandava brigadas que higienizavam os locais suspeitos, prescrevia normas de higiene e recebia os especialistas. Teve, porém, de refazer a sua vida em Lisboa, onde, como inspetor-geral dos serviços sanitários e depois à frente da Direção Geral de Saúde e Beneficência, criou e aplicou princípios subjacentes à profunda reorganização dos serviços de saúde pública. As conclusões, uma listagem bibliográfica e documental e um índice remissivo preenchem as páginas finais do livro, cuja estrutura se compõe de 4 partes e 17 capítulos, nos quais se observa sob diversos ângulos a surpreendente epidemia de peste bubónica no Porto, em 1899, quase dois séculos depois do último surto epidémico na Europa.

9Em suma: a epidemia pode considerar-se um fenómeno total, pois suscita efeitos aos mais variados níveis da vida quotidiana, dos materiais aos culturais e científicos. Neste quadro, o livro de J. Martins e Silva responde, por inteiro e de forma inovadora, aos desafios que o objeto de estudo coloca. Resultando de uma investigação com preocupação caleidoscópica, que enquadra a observação do surto epidémico dos pontos de vista clínico, administrativo, político, económico, social, demográfico e comunicacional, mas assegura também um enquadramento do fenómeno em várias escalas – local, nacional e global –, a obra em referência torna-se incontornável para diversos domínios do saber e ganha transcendência atual na medida em que apresenta modelos de comportamento humano que se revelam cíclicos em contextos afins ao tema investigado.

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Referência eletrónica

Jorge Fernandes Alves, «João Martins e Silva, Porto: a epidemia de 1899. Circunstâncias e consequências. Porto: U. Porto Press, 2022, 505 pp. ISBN 9789897463402»Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 25 setembro 2023, consultado o 13 junho 2025. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/12363; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.12363

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Autor

Jorge Fernandes Alves

CITCEM, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal

jfalves@letras.up.pt

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Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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