Editorial. Impérios: temas emergentes
Texto integral
1Os impérios, em todas as suas dimensões (política, cultural, económica, social e outras), são não só um dos fenómenos mais notáveis da história da humanidade como um dos mais controversos, desde logo porque assentam em relações assimétricas de poder. Relevância e controvérsia são atributos que, naturalmente, fazem dos impérios um objecto de interesse recorrente por parte da opinião pública, da memória colectiva e da historiografia, vindo a ser estudados ou interpretados, ao longo do tempo, segundo perspectivas tão variadas quanto as que vão desde a sua glorificação até ao seu “cancelamento”. Sendo uma presença já habitual nas páginas da revista, este número é inteiramente dedicado à história dos impérios, reunindo para o efeito dois dossiers temáticos que exploram temas emergentes nesta área de estudos.
2O primeiro dossier, a que a Ler História está associada desde o início, tendo co-organizado um pequeno colóquio em finais de 2022 do qual resultam os artigos agora publicados, faz parte de um projecto mais amplo que visa historicizar uma palavra ou noção hoje tão usada e debatida – o consentimento. No caso vertente, procura-se saber qual era o significado dessa noção no âmbito de relações imperiais, tanto para os dominantes como para os dominados, os colonizadores e os colonizados. Pode assumir-se que os povos e os estados que acabaram incorporados em impérios, em última análise, consentiram nessa condição. O que é menos claro, tanto para os historiadores de hoje como para os actores sociais daquele tempo, é se esse consentimento era total ou limitado, se era explícito ou implícito, se era livre ou feito sob coacção, e se era simplesmente uma fatalidade ou se podia ser usado como instrumento de uma agência indígena. Também ainda mal identificado está o próprio vocabulário usado nas várias línguas europeias e indígenas para exprimir, e sobretudo para traduzir, o consentimento. Aos quatro autores deste dossier, organizado por Sonia Tycko, foi pedido que revisitassem e reequacionassem temas sobre os quais já têm trabalhado à luz desta nova abordagem e desta grelha de interrogações. É o que fazem, colocando-se ora mais na perspectiva dos poderes coloniais ora mais na dos “colonizados”, Tamar Herzog e Caroline Cunill para o caso dos impérios ibéricos nas Américas, e Paulo Sousa Pinto e Ângela Barreto Xavier para o caso do império português na Ásia. Os resultados são muito estimulantes, mostrando que esta nova via de abordagem merece ser estendida a outros impérios e a outros períodos.
3Se este primeiro dossier se destaca, na historiografia dos impérios, pela absoluta novidade da formulação do tema, o segundo, organizado por Rozely Vigas e Rômulo Ehalt, acrescenta valor ao ocupar-se de grupos sociais que, no que respeita à Ásia dos séculos XVI a XVIII, têm permanecido largamente marginalizados pela investigação histórica. É o caso das crianças e das mulheres, sobretudo quando a essa identidade juntavam uma condição escravizada, servil ou de liberdade limitada. Os estudos de Isabel dos Guimarães Sá sobre a existência de mulheres e crianças escravizadas nas famílias dos mercadores portugueses da Ásia, de Daniel Michon sobre as freiras enclausuradas num convento de Goa, de Patricia Souza de Faria sobre as crianças escravizadas na Índia, ou de Haruko Nawata Ward sobre a vida das mulheres cristianizadas no Japão do xogunato, vão seguramente ficar como referências e estimular novas investigações.
4Para além dos dossiers, este número conta com uma secção de recensões que merece ser destacada por mais do que uma razão: por ser mais alargada do que o habitual, compreendendo mais de uma dezena de títulos; pela qualificação dos autores que assinam as recensões; e pela diversidade e relevância das obras recenseadas. De entre estas, seja permitido salientar o livro póstumo de António Manuel Hespanha, que sintetiza uma parte significativa das suas teses; o novo livro de Serge Gruzinski, onde este desenvolve o conceito de “colonização alfabética”; o ensaio colossal de J. J. Ruiz Ibáñez sobre a “hispanofilia”; ou a recentíssima contribuição de Francisco Bethencourt, Strangers Within, dedicada a uma das mais poderosas minorias da história mundial – os cristãos-novos.
5Finalmente, este editorial não pode deixar de registar o regresso da Ler História ao Q1 na última actualização do Índice SJR (Scimago Journal Rank), significando a sua inclusão no quartil de topo das revistas de história a nível mundial, e consolidando a posição de referência entre as revistas da especialidade no âmbito geocultural que lhe é mais próximo (Portugal, países de língua portuguesa e Península Ibérica). Independentemente de todas as reservas que se possam apontar a estes rankings, e da sua própria contingência, a manutenção consistente da Ler História entre o Q1 e o Q2, desde o ano de 2017, não pode deixar de ser entendida como resultado da qualidade, do nível de exigência, do cuidado posto na selecção dos temas, da internacionalização dos seus autores e leitores, e do impacto académico do material publicado. Continuaremos a trabalhar neste sentido.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
José Vicente Serrão, «Editorial. Impérios: temas emergentes», Ler História, 84 | 2024, 5-6.
Referência eletrónica
José Vicente Serrão, «Editorial. Impérios: temas emergentes», Ler História [Online], 84 | 2024, posto online no dia 12 junho 2024, consultado o 19 julho 2025. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/13235; DOI: https://doi.org/10.4000/11uqr
Topo da páginaDireitos de autor
Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Topo da página