Ana Isabel Queiroz, Bárbara Direito, Helena da Silva, Lígia Costa Pinto (coords), Pobreza e Fome, Uma História Contemporânea. Temas, Metodologias e Estudos de Caso. Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2022, 329 pp. ISBN 9789898956422
Texto integral
1A pobreza e a fome são problemas de grande atualidade. Percorreram o passado, mais próximo ou mais distante, tendo suscitado inúmeras medidas por parte dos poderes (nacionais e internacionais), de grupos e indivíduos, muitas vezes anunciadas como estratégias para a erradicação da pobreza e da fome. Mas permaneceram e hoje novos fatores colaboram para afirmar e reforçar estes problemas, como é o caso das alterações climáticas, particularmente em regiões do mundo e populações à partida mais vulneráveis. Com orientações atuais e pertinentes, a obra aqui em análise percorre as duas questões, pobreza e fome, com estudos alicerçados na história que são combinados com perspetivas pluridisciplinares. Coordenada por Ana Isabel Queiroz, Bárbara Direito, Helena da Silva e Lígia Costa Pinto, a obra Pobreza e Fome, Uma História Contemporânea. Temas, Metodologias e Estudos de Caso foi editada no final de 2022 pela Imprensa de História Contemporânea, uma editora universitária, criada pelo Instituto de História Contemporânea (IHC), da Universidade Nova de Lisboa, que definiu como objetivo a divulgação de investigações originais no âmbito da história e das ciências sociais.
2Como se informa, a obra é publicada no âmbito do projeto programático do IHC, tendo resultado do trabalho desenvolvido pela linha temática “Mundos precários e sustentabilidade: trabalho, saúde e natureza”. Considerando a capacidade agregadora dos temas da pobreza e da fome, reuniu-se um grupo de investigadores maioritariamente do IHC, mas integrando pesquisadores de outras unidades de investigação, que inicialmente dinamizaram um conjunto de oficinas e de conferências sobre diferentes dimensões da pobreza e da fome. Foi deste processo que resultou a obra Pobreza e Fome, Uma História Contemporânea, com uma edição cuidada e atraente, reproduzindo um desenho de Jorge Queiroz na composição da capa e no interior da obra, disponibilizando diversas imagens muito adequadas e de boa qualidade e quadros com uma boa legibilidade. O livro está em acesso aberto e pode ser descarregado por qualquer interessado em o obter.
3Pobreza e fome são, assim, os dois eixos de análise definidos para a obra, que se concretiza estar direcionada para a história contemporânea. No subtítulo definem-se as perspetivas de estudo contempladas: os temas, as metodologias e os estudos de caso. São estas três dimensões que estruturam a obra, alicerçada numa perspetiva espácio-temporal, logo histórica, e contemplando uma abordagem pluridisciplinar. É em torno destas três linhas que se organizam as contribuições das 29 investigadoras e investigadores que colaboram no livro, precedidas por uma introdução da responsabilidade das coordenadoras do mesmo. Além de se apresentar a obra e os diferentes estudos que a compõem, a introdução é exemplo do rigor conceptual que de forma geral caracteriza os estudos aqui publicados. Afinal, do que estamos a falar quando falamos de pobreza (?), e como pode ser definido o conceito de fome (?). Estas são questões debatidas, demonstrando a vantagem em se procurar definições históricas destes conceitos, circunscritas a tempos e espaços concretos, bem como a grande variedade de indicadores utilizados no presente para clarificar o que é a pobreza e a fome e os diferentes graus que estas podem apresentar. Como se afirma, “pobreza é um conceito polissémico e multidimensional, que tem evoluído ao longo dos tempos” (p. 20), existindo atualmente diversas aceções do que é a pobreza, que ultrapassam definições apenas alicerçadas na ideia de privação ou circunscritas à esfera económica. Pobreza implica, assim, um estatuto de maior vulnerabilidade às crises que possam ocorrer.
4No século XXI, a explicação de fenómenos como a pobreza e a fome tem de contemplar um conjunto alargado de dimensões que inclua, além da escassez natural, os fatores económicos, sociais, políticos (e geopolíticos) e mesmo culturais. Como se refere especificamente para o caso da fome: “Atualmente, as causas naturais e antropogénicas da fome são assumidas como complementares” (p. 24). Embora se anuncie que se procura uma compreensão dos fenómenos da pobreza e da fome no Portugal contemporâneo, alguns dos textos apresentados reportam-se a outras geografias, como Espanha, ou ainda Angola e Cabo Verde, e outros realizam incursões pelo período moderno, demonstrando-se a pertinência em não circunscrever a abordagem destas questões às realidades nacionais e a forma como o alargamento da dimensão temporal pode colaborar para um enriquecimento do seu conhecimento.
5A estruturação da obra em três partes revela-se um recurso adequado para organizar os textos e dirigir o leitor. A primeira parte da obra é dedicada à exploração e identificação de “Temas” que colaborem para o entendimento dos problemas da pobreza e da fome, em particular no Portugal contemporâneo. Conta com nove estudos e são referenciados um alargado número de temas. Lígia Costa Pinto liga os diferentes âmbitos da pobreza aos conceitos de vulnerabilidade e risco; Leonardo Aboim Pires relaciona as fomes com os problemas dos abastecimentos e as dinâmicas do regime alimentar em Portugal, desde os finais do século XIX até à ditadura salazarista; Inês Gomes analisa a procura e implementação de medidas para fazer face à destruição de culturas por pragas agrícolas; Filipa Soares reflete sobre as destruições provocadas por fenómenos naturais extremos; os estudos de Helena da Silva e de Celia Biralles Buil relacionam a pobreza e a fome com questões sanitárias, com a saúde e a doença. Os estudos de Mariana Reis de Castro, Marta Silva e Yvette Santos analisam a forma como foram pensadas algumas estratégias por parte de populações afetadas pela pobreza e pela fome, salientando-se o desenvolvimento de processos migratórios como resposta aos problemas que enfrentavam. Por último, Elisa Lopes da Silva trata a relação entre pobreza e desemprego.
6A segunda parte do livro é dedicada à exploração das metodologias e fontes que podem ser mobilizadas para o estudo da pobreza e da fome. É a parte com uma menor dimensão, mas conta com oito estudos onde encontramos propostas e exemplos de estratégias metodológicas e fontes que podem ser utilizadas para o estudo destas questões. Neste sentido, Inês Amorim e Luís Pedro Silva salientam a importância dos dados relativos aos eventos climáticos, mas também a dificuldade em a eles aceder, em particular para análises centradas no período moderno. Já Cristina Joanaz de Melo demonstra as potencialidades informativas da documentação relativa à administração local e a documentação epistolar para o estudo de calamidades públicas, neste caso as inundações ocorridas em 1770 e entre 1782 e 1790 nas lezírias do Tejo. Joana Vieira Paulino explora os róis de confessados, os registos paroquiais e documentação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa relativa às crianças abandonadas, enquanto Bárbara Direito salienta a importância dos dados proporcionados pela imprensa para a compreensão de eventos climatéricos (cheias e secas…) em Moçambique no início do século XX. Carlos Augusto Ribeiro e Ana Paula Guimarães enfatizam as potencialidades informativas da cultura popular, dos contos populares e provérbios, entre outros, e Ana Isabel Queiroz demonstra a importância da literatura enquanto fonte histórica para o estudo da pobreza e da fome. Lais Pereira explora a fotografia como fonte para a realização de uma história da pobreza e da fome em Portugal. A proposta metodológica de Maria Alice Samara e Raquel Pereira Henriques remete para o recurso à história oral, a construção de fontes pelo próprio historiador através da realização de entrevistas e da recolha de depoimentos.
7A terceira e mais extensa parte da obra coletiva é dedicada à apresentação de estudos de caso, contando com oito contribuições que percorrem casos muito diversos, mobilizando fontes e metodologias variadas. Frederico Ágoas centra-se nos Inquéritos Sociais realizados em Portugal no sentido de analisar as condições de vida no país entre 1880 e 1960. São também evidenciados grupos particulares da população, como o faz Ana Alcântara, que se foca nas mulheres operárias em Lisboa no final do século XIX. Para Espanha, no início do regime franquista, David Conde Caballero estuda a escassez e a fome no pós-guerra civil, enquanto Mónica Truninger analisa as consequências da pobreza alimentar em grupos mais vulneráveis da população de Lisboa, como é o caso das crianças, no início do século XXI. Paulo Jorge Fernandes, ultrapassando barreiras nacionais, trata as representações da pobreza e da fome no humor gráfico contemporâneo. Pedro Aires Oliveira centra-se na questão da seca e da fome no contexto de Cabo Verde, entre 1920 e 1990, relacionando-a com as políticas públicas desenvolvidas para mitigar os seus efeitos. Com uma problemática também centrada em África, Philip J. Havik reflete sobre a criação de programas de investigação e missões de estudo por parte da administração colonial portuguesa, em particular em Angola e Moçambique, com o objetivo de estudar e agir sobre hábitos de nutrição das populações, no sentido de se reduzir a morbilidade e mortalidade infantil. O último texto do livro é da autoria de Inês Ponte, que procura compreender o que designa como uma “sociabilidade da escassez” através de uma pesquisa antropológica centrada na população de uma zona rural no Namibe, a sul de Angola.
8Como um todo, a obra coloca em evidência problemas do passado de grande atualidade, a pobreza e a fome, que se foram metamorfoseando no espaço e ao longo do tempo, existindo nos nossos dias diversos fatores que colaboram para o seu aprofundamento. Entre eles, o racismo, a sobre-exploração de humanos e não humanos, como referido pelas coordenadoras da obra, mas também as desigualdades sociais e de género, os vários tipos de discriminação, a poluição, as alterações climáticas, entre tantos outros. Estamos perante uma obra que deve ser valorizada pela atualidade temática, mas também metodológica, dos muitos contributos que divulga. Percorrendo sobretudo um passado mais recente, os estudos que integram este livro disponibilizam um conjunto de ferramentas e reflexões que permitem percorrer as questões relativas à pobreza e à fome de forma inovadora do ponto de vista historiográfico. Proporcionam ainda equacionar novos desafios, alguns já claramente afirmados nos nossos dias, demonstrando que fenómenos como as migrações, a precaridade laboral e as alterações climáticas podem implicar novas formas de pobreza e de fome. Atualmente, num mundo globalizado, problemas como a pobreza e a fome transcendem as fronteiras nacionais e as respostas da sociedade e dos poderes devem ter em conta esse facto para que possam demonstrar uma eficácia mínima. Este livro é uma leitura que se recomenda, não só aos diretamente interessados pelos temas abordados, mas a todos os que procuram conhecer problemas do passado e algumas das respostas então ensaiadas, e a forma como essas questões se foram reconfigurando, mantendo hoje plena atualidade.
Para citar este artigo
Referência eletrónica
Maria João Vaz, «Ana Isabel Queiroz, Bárbara Direito, Helena da Silva, Lígia Costa Pinto (coords), Pobreza e Fome, Uma História Contemporânea. Temas, Metodologias e Estudos de Caso. Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2022, 329 pp. ISBN 9789898956422», Ler História [Online], 84 | 2024, posto online no dia 12 junho 2024, consultado o 11 julho 2025. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/13505; DOI: https://doi.org/10.4000/11ur5
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