1Esse belo livro trata do impacto de barragens e, mais amplamente, do desenvolvimentismo, sobre grupos humanos localizados no caminho do assim chamado progresso. Trata-se de mais um capítulo na história recente de deslocamentos humanos. O singularíssima e inovadora não é tanto a denúncia de mais um caso de violência estatal contra grupos humanos que se vêem expulsos sem mais de seus territórios de vida. “Ponham-se na rua” – assim liam os brasileiros as letras “PR” de Príncipe Regente”, que significava que os moradores teriam que sair de suas casas para abrigar a comitiva de João VI ao chegar ao Brasil. Há muitos outros exemplos de expulsão de moradores pobres, tanto no Rio de Janeiro de hoje em dia, como na Amazônia, como no caso dos habitantes das margens do rio Xingu cujas moradias foram submersas pela gigantesca barragem de Belo Monte.

2Há evidente diferença de escala entre a barragem de Alqueva em Portugal (e a aldeia submersa da Luz) e a barragem de Belo Monte no Brasil (e as numerosas ilhas e habitações submersas). Mas a narrativa de Fabienne Watteau conecta as duas situações de maneira iluminadora, e por duas razões.

3Primeiro, porque mostra os componentes do drama social envolvido: seus atores – a saber, técnicos, moradores, antropóloga –, situados no contexto de projetos estatais equivocados; e depois, porque esses atores são exibidos em uma sucessão de atos de um drama. Esse recurso dá ao livro um caráter ao mesmo tempo dramático – com a forma de uma peça teatral – e etnográfico – porque as falas e situações são retiradas da vida. A forma dramática dá a este estudo social-ambiental uma dimensão extroaordinária. Essa forma desafia o modo habitual do relato etnográfico – no qual uma terceira pessoa narra ações e eventualmente dá a palavra a eles na forma de citações entre aspas. Aqui, ao contrário, as cenas e as falas ganham autonomia, em uma obra polifônica onde situações são diálogos e além disso contrapõem-se entre si. Há momentos maravilhosos – como o diálogo entre a moradora confrontada com o projeto que substituía sua casa em que um corredor dava acesso a quartos dotados de acolhedora intimidade por um plano em que quartos se abriam para um pátio central de explosiva luminosidade. O diálogo é intenso: a autora não dá uma conclusão, porque não há conclusão que concilie a habitação como cultura e a arquitetura enquanto razão.

4O formato do drama social foi indicado por antropólogos ingleses – a saber, Max Gluckman e Victor Turner – como o modo mais adequado para expressar a vida social. Mas nenhum desses antropólogos chegou a levar essa idéia ao cabo, a saber: expressar a etnografia na forma de drama. É o que Fabienne Wateau fez nessa belíssima peça, que combina a intensidade da experiência local com as implicações universais que esse drama condensa – a saber, a implosão das múltiplas formas de vida social sob o assalto avassalador do desenvolvimentismo.