Amílcar Cabral, intelectual e líder político: um olhar guineense a partir da diáspora

1Amílcar Cabral e a luta de libertação na Guiné-Bissau têm constituído, desde pelo menos finais dos anos 1960, temas de reflexão entre acadêmicos, sobretudo de origem estrangeira, como pontuado na obra (Davidson 1969; Rudebeck 1974; Ignatiev, 1975, 1984; Chabal, 1983; Chilcote, 1991; Dhada, 1993; MacQueen 1999; Oramas, 1998, entre outros). Estes representam, em termos gerais, investigadores pioneiros que se têm dedicado ao estudo da trajetória política e intelectual de Amílcar Cabral e do seu contributo teórico e ao processo da luta pela independência. A obra em análise está escrita de forma clara e acessível e é resultado de uma aturada pesquisa documental e bibliográfica, bem como de observações sistemáticas efetuadas ao longo dos anos pelo autor. O livro é fruto de uma reflexão ampla, densa e bem fundamentada sobre o contributo de Amílcar Cabral para a luta de libertação na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, bem como para o continente africano na sua generalidade. Os capítulos encontram-se escritos de forma estruturada e sequencial com ancoragem histórica, permitindo aos leitores compreender a trajetória de Amílcar Cabral na sua globalidade em interface com os acontecimentos mundiais, isto é, através dos conteúdos, fica claro que não é possível compreender as dinâmicas da luta de libertação na Guiné-Bissau e em Cabo Verde sem enquadrá-las numa reflexão mais ampla sobre a luta pela unidade do continente africano. O objetivo de Peter Mendy, como ele próprio refere na introdução (p. 23), é o de demonstrar a importância da liderança de Amílcar Cabral, focando nos desafios políticos e intelectuais e nas suas realizações a partir de quatro caraterísticas que o autor considera relevantes: a) a competente organização e condução de uma das lutas de libertação mais bem sucedidas no continente africano; b) a capacidade mobilizadora de mais de uma dezena de grupos étnicos em torno de uma causa bi-nacional; c) a habilidade na condução de uma frente unida contra o colonialismo português em África; d) os escritos e as reflexões teóricas de Amílcar Cabral que permanecem de grande atualidade.

3Na introdução (pp. 19-23), Amílcar Cabral é apresentado como um “nacionalista e pan-africanista revolucionário que idealizou o fim da dominação estrangeira na Guiné-Bissau e em Cabo Verde e que se engajou nas lutas nas restantes colônias africanas de Portugal, (p. 19). Peter Mendy defende a ideia de que, muito possivelmente, o maior interesse de Cabral foi a sua preocupação em obter um “conhecimento estratégico” sobre a condição social dos africanos “seus compatriotas”, que lhe permitisse compreender o nível de descontentamento em relação à realidade colonial (pp. 20-21), pensar teoricamente a luta de libertação e organizá-la em termos práticos. Isto é, o quê, como e com quem.

4Mendy desenvolve a sua tese em torno de quatro aspetos fundamentais que contribuíram, na sua perspectiva, para moldar a personalidade do futuro líder: em primeiro lugar, a história familiar de Amílcar Cabral, marcada por resistências e lutas contra as recorrentes secas e fomes em Cabo Verde, pela emigração “voluntária” de seus pais Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora para a Guiné “Portuguesa” em 1911 (onde em 1924 nasceria Amílcar) e pelos conflitos socio-raciais num sistema onde a condição de “civilizados” garantia aos sujeitos colonizados (caboverdianos) a possibilidade de usufruir de uma instrução formal de qualidade, em detrimentos dos colonizados “indígenas”, a quem era destinada uma educação de tipo rudimentar (guineenses). Em segundo lugar, o autor destaca a formação superior de Amílcar Cabral (entre Cabo Verde e Portugal) no contexto mundial do pós-Segunda Guerra Mundial, marcado pela polarização e contraposição ideológica, mostrando as relações entre os processos históricos locais e globais e o contato de Cabral com uma literatura negra revolucionária. Um terceiro aspecto diz respeito ao contato de Cabral com o interior da Guiné-Bissau e o início do processo de mobilização das populações rurais e da organização da luta. O “bi-nacionalismo” (unidade Guiné/Cabo Verde) traduziu-se, segundo o autor, na fórmula mais adequada encontrada por Amílcar Cabral para enfrentar e vencer o colonialismo português. Neste sentido, discute com propriedade os fatores exógenos e endógenos que contribuíram para os sucessos alcançados, colocando a centralidade no caráter pan-africanista de Amílcar Cabral. O pan-africanismo, enquanto ideia de unidade e de solidariedade africanas só fazia sentido se considerado num quadro mais amplo de luta política em que todo o continente se engajasse de forma proativa (p. 105). Esta reflexão de Cabral constituiu um dos eixos estruturantes da práxis do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) e um dos elementos que favoreceu a coesão interna do movimento e a colaboração a nível diplomático internacional. Em quarto lugar, o autor mostra como o difícil processo de mobilização e organização da luta, embora contextualmente eficaz em termos de resultados (independência), iria desembocar num trágico desfecho: o assassinato de Amílcar Cabral em 20 de Janeiro de 1973, nas vésperas da proclamação da independência da Guiné-Bissau por via unilateral. No penúltimo capítulo, “A luta continua”, Peter Mendy resume de forma assertiva os principais momentos que marcaram a “vitória final” das forças nacionalistas e as negociações das independências. No entanto, à luz da evolução política da Guiné-Bissau nas quatro décadas sucessivas marcadas por constantes instabilidades, importa questionar até que ponto o país estava preparado para assumir a independência sem a liderança de Amílcar Cabral? Se, por um lado, o assassinato de Cabral chamou a atenção do mundo para a questão das independências e antecipou a mudança do regime de Lisboa em 1974, por outro lado, o novo contexto de independência sob um modelo “um partido, dois Estados” iria criar fraturas e clivagens internas ao PAIGC que desembocariam, mais uma vez, em episódios de violência, a exemplo do golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, historicamente conhecido como “Movimento Reajustador 14 de Novembro” que determinou o fim da unidade política entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde.

5Nas páginas do livro, Peter Karibe Mendy procura demonstrar a relevância do contributo teórico, intelectual e político de Amílcar Cabral para as independências africanas nas e para além das suas duas pátrias. No caso da Guiné-Bissau, não era possível empreender uma transformação social radical sem uma teoria revolucionária, e essa só seria possível através de uma luta de libertação nacional e da capacidade emancipatória do povo. Vencer o imperialismo significava, na concepção de Cabral, utilizar a cultura como “arma de combate”, uma vez que a dominação colonial implicava a opressão cultural. A via política proposta foi o “suicídio da pequena burguesia” e o “renascimento de uma classe de trabalhadores revolucionários”, para que os objetivos fixados no contexto da luta armada não fossem traídos. Porém, como se constatou posteriormente, a aliança da pequena burguesia com interesses neocoloniais não possibilitou nem o suicídio de classe, nem tanto menos a implementação da democracia revolucionária.

6Uma primeira consideração de caráter geral diz respeito à metodologia expositiva (estrutura do livro) e à escolha dos títulos dos capítulos; o autor apresenta a trajetória de Amílcar Cabral ao longo de dez capítulos, numa perspectiva de história e mudança. Fá-lo optando por apresentar alguns dos títulos em português e em Kriol (língua nacional da Guiné-Bissau) – Terra Natal, Terra Ancestral, Mãe Pátria, A luta Continua e Cabral Ka Muri – ainda que o livro esteja redigido em língua inglesa; esta escolha é, quanto a mim curiosa e interessante, enfatizando momentos cruciais e épocas da vida de Cabral e procurando, contemporaneamente, conduzir os leitores “anglófonos” para dentro do mundo “lusófono” e “kriolófono” ao qual Amílcar Cabral pertencia. Cabe ainda frisar que, se a obra de Amílcar Cabral permanece relativamente pouco conhecida no mundo anglófono, tal como refere o autor no seu prefácio (p. 11), esta realidade parece ser ainda mais evidente se nos reportarmos à Guiné-Bissau e aos PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, de um modo geral. Possivelmente, entre outros fatores, é relevante o fato de boa parte das obras de e dedicadas à figura de Amílcar Cabral e à história da libertação não estarem ainda incluídos na maioria dos currículos escolares e programas universitários, acrescido de uma evidente lacuna de análises críticas da sua obra, na globalidade. Este constitui, sem dúvida, um desafio sobre o qual refletir, considerando a importante questão da produção, circulação e capitalização do conhecimento em África e da formação dos mais jovens, fato para o qual diversos intelectuais africanos têm chamado atenção (Obenga, 2013; Ela, 2013; Mkadawire, 2005; Yanka, 2016). Uma sugestão de leitura que teria provavelmente enriquecido ulteriormente o quadro reflexivo (sobretudo do último capítulo “Cabral Ka Muri”) diz respeito à obra colectânea “Claim no easy victories. The legacy of Amílcar Cabral”, organizada por Firoze Manji e Bill Fletcher Jr e publicada pelo CODESRIA (Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África) em 2013. A obra conta com importantes contributos sobre o legado de Amílcar Cabral e a sua relevância para as lutas contemporâneas do continente africano.

7Teria sido interessante explorar, ao longo do texto, as fontes orais mencionadas inicialmente pelo autor (p. 12), enquanto fonte primária. Embora o mesmo agradeça os seus interlocutores na Guiné-Bissau, os “veteranos de guerra que generosamente me concederam entrevistas, partilhando memórias e conhecimento valiosos sobre Cabral”, não vislumbrei nos capítulos a utilização de tais fontes nem citadas nas notas; por exemplo, no quinto capítulo (pp. 109-11), sobre a resistência passiva e preparação da luta, teria sido enriquecedor usar, em alguns momentos (as vicissitudes das tensas relações entre o PAIGC e a FLING – Frente de Luta para a Independência da Guiné, uma organização política “guarda-chuva” criada em 1962 em Dacar, que reunia cerca de sete organizações nacionalistas guineenses rivais do PAIGC, liderada por Benjamin Pinto Bull – na disputa pela hegemonia) a par das fontes arquivísticas e bibliográficas, algumas narrativas dos entrevistados. Estas teriam contribuído para ampliar o quadro reflexivo do autor, em linha com o próprio objetivo da obra, isto é, demonstrar a importância da liderança de Amílcar Cabral e as suas realizações em termos políticos. O mesmo é valido para o sexto capítulo, na abordagem das clivagens entre o PAIGC e o MLG-Dacar – Movimento de Libertação da Guiné, organização política criada em Dacar, em 1960 por François Kankoila Mendy – no início de 1962 (p. 124). Por outro lado, a importante questão sublinhada por Peter Mendy sobre a liderança no seio do PAIGC, a tensão entre os “militares” e os “militantes armados” na prolongada luta armada que terá causado, posteriormente, uma progressiva militarização da política guineense (p. 136). Concordo com esta visão, que reconduz ao conceito de “combatentes” e de “militantes/militantes armados”. Acredito, porém, que sobre este tema relevante e de grande atualidade, teria sido útil o uso das fontes orais mencionadas no sentido de favorecer uma leitura mais holística do processo. Enfim, e não menos importante, o reconhecimento de Amílcar Cabral do papel desempenhado pelas mulheres na luta de libertação e na construção nacional (p. 137), penso que a reflexão teria merecido algum aprofundamento, seja em termos de fontes (Godinho Gomes, 2013; Urdang, 2013; Ly, 2015, 2016) que de crítica (embora a UDEMU – União Democrática das Mulheres da Guiné Bissau, braço feminino do PAIGC, tenha sido promotora da participação das mulheres no contexto da libertação através de atividades específicas, cabe interrogar em que medida essa participação favoreceu a tomada de consciência dos próprios direitos após 1973-74 e em que se traduziram esses ganhos?), tendo em conta a abrangência da temática no passado e no atual contexto.

8A importante questão da metodologia da mobilização na luta de libertação bem como dos desafios são discutidos no quinto capítulo; em jeito de conclusão, o autor retoma o tema no último capítulo (p. 205), chamando a atenção para a “deficiência ideológica” que caracteriza diversos partidos hoje no poder no continente africano, fruto de uma lacuna ideológica que originou uma das maiores fraquezas dos movimentos nacionalistas. O aprofundamento desta temática poderá abrir novas possibilidades interpretativas do processo de democratização na Guiné-Bissau e, possivelmente, levar a uma melhor compreensão dos caminhos que conduziram à perpetuação das crises político-militares. Enfim, o décimo e último capítulo coloca um importante desafio às gerações dos mais jovens, aos “cabralistas” a quem o autor dedica esta obra: num mundo (africano) em que a marginalização e a pobreza são constantes, cabe aos atuais governantes a responsabilidade de (re)construir os Estados tendo como centralidade os interesses das populações. Esta questão deixa clara, na minha opinião, a necessidade de uma revisitação do pensamento teórico de Amílcar Cabral e da sua proposta de “democracia revolucionária”, à luz da evolução pós-independência e de uma literatura crítica africana produzida nas últimas duas décadas, bem como um conjunto de trabalhos acadêmicos (teses e dissertações), que poderão auxiliar a geração dos “cabralistas” no seu exercício analítico e interpretativo, no sentido da construção da Guiné-Bissau e da África do futuro.

9Resta dizer que esta é uma obra obrigatória para tod@s @s que se interessam pela trajetória biográfica de Amílcar Cabral e pelo seu percurso enquanto teórico das revoluções guineense, caboverdiana e africana.