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Dossier
Un profond renouvellement des recherches

“A fome reinava-lhes em casa, mas a revolução reinava-lhes na cabeça”: ocupações, greves e conflitos laborais de operárias durante o PREC (1974-1975)

« La faim régnait dans leurs maisons, mais la révolution régnait dans leurs têtes »: occupations, grèves et conflits du travail des ouvrières pendant le PREC (1974-1975)
“Hunger Reigned in Their Homes, but the Revolution Reigned in Their Heads”: Occupations, Strikes and Labour Conflicts by Female Workers During the PREC (1974–1975)
Pâmela Peres Cabreira

Résumés

L’objectif de cet article est de discuter et de problématiser l’histoire de milliers de travailleuses en tant qu’agentes actives de cette période, qui ont lutté pour le droit au travail et de meilleures conditions de vie pendant le processus révolutionnaire en cours (PREC) au Portugal, d’avril 1974 à novembre 1975. Sur le plan méthodologique, des sources primaires ont été utilisées pour cette analyse, à savoir des journaux, des tracts, des communiqués et des journaux d’usine – non pas des « sources officielles », mais des sources alternatives.

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Notes de l’auteur

Essa pesquisa contou com apoios através de bolsas de investigação financiadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) Doutorado Pleno/Processo n.º 88881.129278/2016-01, e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia UI/BD/150943/2021.

Texte intégral

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen,
O nome das coisas.

  • 1 “A fome reinava-lhes em casa, mas a revolução reinava-lhes na cabeça”: a expressão foi cunhada pela (...)
  • 2 Compreendemos que o país vivenciou uma revolução através de um conjunto de conceitualizações: de Ti (...)

1A ruptura advinda no dia 25 de Abril de 19741 possibilitou a ação prática na vida de milhares de trabalhadoras e trabalhadores em Portugal que passaram a ocupar espaços de discussão e decisão e entrelaçaram a vida social com dinâmicas políticas, o que proporcionou uma tomada de consciência através da ação prática nos bairros, nas escolas, nos hospitais e clínicas, nos quartéis e, sobretudo, nos locais de trabalho. O golpe militar encetado pelo Movimento das Forças Armadas transformou-se em uma revolução social pelo envolvimento do povo, que tomou as ruas e, em suas mãos, a tentativa de estabelecer novas formas de viver foi, muitas vezes, frustrada pelos antagonismos políticos que permearam o período2. No cerne dessa disputa, as guerras de libertação dos povos colonizados em África descarrilharam na necessidade da “implementação de uma descolonização radical, [sendo] necessário um movimento popular urbano”, que envolveu tanto as lutas nas próprias colónias quanto na metrópole (Chilcote 2014: 115).

2Hammond afirma que a força desse movimento consistiu na sua relação direta com a vida das pessoas reais, as quais puderam “apropriar-se da revolução e torná-la sua” (1988: 9). Durante os cinco primeiros meses do período revolucionário, as greves romperam em centenas de fábricas com a entrega de cadernos reivindicativos e com ocupações que se iniciaram nos locais de trabalho. As lutas sociais foram expressas tanto na metrópole portuguesa (com a organização da classe trabalhadora nas ocupações para habitação e nas disputas nos campos), como em grandes fábricas coloniais e em ações dos povos colonizados e de tropas portuguesas na recusa à continuação da guerra. Para Maxwell, “foram precisamente estas manifestações de controlo das fábricas pelo operariado, de poder popular nas cidades e de posse de terra pelos camponeses que conferiram aos acontecimentos em Portugal neste período, o seu carácter revolucionário” (1999: 139-140).

3Após a tentativa frustrada de golpe pelo general António de Spínola, em 28 de setembro de 1974, deste mês até fevereiro de 1975, houve um reforço nas ocupações de fábricas e na reivindicação contra os despedimentos, por parte, sobretudo, das Comissões de Trabalhadoras/es. Por outro lado, na intervenção do Estado sobre “setores chave” do país, formalizada, a partir de março de 1975, através das nacionalizações que se iniciaram e engajaram um novo período nas medidas governativas, sobretudo, nas medidas reformistas de travar os órgãos de poder popular nas fábricas com o fortalecimento das comissões e vias organizativas, fosse de “controlo operário” ou pela “autogestão”. A Reforma Agrária se aprofundaria nos meses seguintes, como considera Piçarra, não enquanto uma decisão do Estado através de instrumentos legislativos, mas sim como “um processo revolucionário” (2022: 10).

4Varela defende que é a partir de setembro de 1975 que a “crise revolucionária” atravessa o “Estado que não consegue governar, generaliza-se a dualidade de poderes a todos os níveis e todas as medidas do Estado são impossibilitadas por greves, manifestações, ocupações” (2014: 497). Por sua vez, Chilcote caracteriza o contragolpe de 25 de novembro de 1975 a partir da “incapacidade do sexto governo provisório para controlar os meios de comunicação social, os militares e o movimento laboral” (2014: 111). Ainda que as lutas reivindicativas tenham continuado com força ao longo da década seguinte (Cristóvam 1982), o golpe articulado pelo Partido Socialista (PS) em conjunto com a sua “longa cauda de aliados, que ia de grupos maoístas e partidos de direita à extrema-direita terrorista” (Rosas 2023: 104) pôs termo a um momento determinante nos organismos de poder operário e popular.

5A atenção voltada às investigações que privilegiem o estudo sobre os movimentos sociais com um foco centralizador na classe operária durante o 25 de Abril de 1974 ganhou um novo impulso nas últimas décadas. Este movimento pode ser traduzido também em teses, monografias e publicações, as quais passaram a observar o 25 de Abril a partir de uma visão mais alargada e relacional sobre os fenômenos sociais e políticos. Barreto, em 1996, Rosas e Rezola, ambos em 2007, proporcionaram essa relação dialética entre instituições e organizações populares. Por outro lado, Abadia (2010), P. Cerezales (2003), Fontes (2018) e S. Pérez (2023) contribuíram para o desenvolvimento de uma análise do movimento operário que contempla e privilegia as contradições da história e relacionam dialeticamente os poderes possíveis em revolução.

6Todavia, mesmo nas obras que consideramos como referência sobre o período, o papel da mulher trabalhadora ou é apresentado pontualmente enquanto à parte do contexto geral ou é diluído através da língua por meio dos pronomes masculinos. Por essa razão, as mulheres são apagadas, sem distinção de que naqueles chãos de fábrica, eram corpos femininos que transitavam; mesmo quando eram maioria nas lutas, são retratadas enquanto trabalhadores ou operários sem que haja um aprofundamento no tratamento das relações específicas de classe e género.

7As exceções são poucas e o recorte em classe e género é encontrado, por um lado, na investigação de Vieira (2018) que buscou compreender a organização das empregadas domésticas em torno do Sindicato do Serviço Doméstico e as implicações da auto-organização, utilizando principalmente a ferramenta metodológica da história oral no período de 1960 a 1986. Por outro lado, Tavares (2000), embora se tenha concentrado em compreender os movimentos femininos e feministas em Portugal nas décadas de 1970 e 1980, explorou repetidamente as organizações populares durante o PREC, enfatizando o papel das mulheres trabalhadoras que integraram comissões nas diferentes frentes de luta na busca efetiva por mudanças sociais. Melo (2016), em um artigo, também buscou compreender as organizações feministas do período, enquanto Gomes (2019), igualmente neste formato, traçou considerações gerais sobre “o lado feminino” da revolução.

8No devir do contexto revolucionário, a nossa principal questão se coloca: onde estavam as mulheres operárias durante o PREC? O nosso objeto de pesquisa corresponde, dessa maneira, a uma indagação permanente sobre o seu papel histórico, as suas formas de organização, as suas reivindicações e o entrelaçamento entre os espaços que confluíram para o poder popular. Cabe-nos ainda destacar que o nosso objeto de estudo não são todas as mulheres; temos, enquanto fator determinante, o recorte de classe, portanto, as que dependem de seu labor para sobreviver, ou, como chamou Antunes, da “classe-que-vive-do-trabalho”, das trabalhadoras que dele dependem (1999).

  • 3 Exemplos que perduraram como as mulheres que simbolicamente colocaram cravos nas espingardas dos so (...)

9Falar sobre as operárias durante o período revolucionário português é falar sobre um tema ainda difuso. Essa é uma ausência que persiste sob a forma de uma generalização dos agentes masculinos e sob uma presença estereotipada, através da mulher pacificadora, mãe, seio, prole3. A ausência de estudos sobre as mulheres que vivem do seu próprio trabalho ao longo da historiografia sobre o 25 de Abril de 1974 salta aos olhos de quem percorre este tema

10Neste sentido, concordamos com a afirmação de Hirata e Kergoat (1994) e de Souza-Lobo (2011) de que “a classe operária tem dois sexos”. Essa é primordialmente uma problemática a ser encarada, ou seja: ter em perspectiva que a classe operária não é homogénea e, logo, não é constituída por um bloco sólido de características fechadas em si mesmas. Ao serem suprimidas da história e equalizadas enquanto trabalhadores e operários, a noção de que desempenharam, de facto, um papel ativo e transformador na história, esvai-se. Como afirmou Arruzza, “considerar a classe apenas no masculino é equivalente, em primeiro lugar, a não entender, ou entender de uma forma parcial, o modo como funcionam e se estruturam as relações de produção e exploração” (2010: 97). Buscaremos, ainda que de forma pontual, demonstrar casos de reivindicação e resistência de mulheres trabalhadoras durante o período revolucionário, almejando abrir caminhos para a compreensão de que elas estiveram envolvidas em lutas que proporcionaram problematizações e, em muitos casos, transformações.

  • 4 Trata-se de um corpus documental aqui restrito aos casos apontados mas inserido em uma investigação (...)
  • 5 Este trabalho apresenta resultados parciais da etapa de sistematização de fontes outras, como entre (...)

11Metodologicamente, para esta apreciação, optamos pelo uso de fontes primárias, nomeadamente jornais, panfletos, comunicados e jornais de fábricas4 – não se tratando, portanto, de “fontes oficiais” mas sim de fontes divergentes. Sem descuidar a noção de que a história oral abriu possibilidades para a “história vista pelos de baixo” e pelos “marginalizados da história”, na concepção thompsoniana, e sendo este um espaço limitado para a explanação de nossa investigação, a escolha das fontes cinge-se por sua possibilidade de abranger não apenas discursos de experiência, mas também contextos políticos e dos desdobramentos socio-laborais5.

Trabalho e experiência: resistir e lutar

12As reivindicações em fábricas com maior força de trabalho feminina passaram de questões económicas para a defesa de direitos e questões sociais, como a criação de infantários e creches, direito à licença maternidade e períodos de aleitamento, salário igual para trabalho igual. As formas de resistência das trabalhadoras que encetaram lutas durante o PREC, evoluíram de formas “tradicionais”, como a greve ou o recurso aos sindicatos, para ocupações com atividades políticas, mas também estruturas lúdicas de ocupar o espaço fabril, reconhecendo dinâmicas culturais nos períodos de permanência nos piquetes.

  • 6 Não descartamos aqui a opressão exercida entre mulheres, mas a relegamos a um espaço menos expressi (...)

13A ausência das mulheres nos espaços de luta política institucionalizados, durante o período ditatorial, como o partido ou sindicato, muitas vezes era imposta por homens de sua própria classe social: trabalhadores do sexo masculino que compartilhavam os mesmos objetivos de contestar o sistema, que as/os oprime e explora6, reforçando ativamente a ideia do papel subalterno da mulher. Os discursos sindicais, por exemplo, frequentemente liderados por homens em suas representações, criam uma assimetria na perceção das mulheres como elementos constituintes da classe trabalhadora (Gitahy et al. 1982), mas que não se veem refletidas nas ações, discursos e práticas sindicais. Um caso que merece menção é o das empregadas domésticas que se organizaram durante o período revolucionário para a criação de um sindicato próprio. Em diversos jornais, após o 25 de Abril de 1974, expressava-se a urgência na organização das empregadas, o que assinalava “a tomada de consciência dos trabalhadores enquanto classe” (Vieira 2018: 47). Contudo, Bebiano observa que elas se defrontaram com uma “sociedade fortemente hierarquizada em função do sexo. […] aquando da constituição do Sindicato, a própria CGTP Intersindical teve dúvidas sobre as possibilidades de vingar: afinal, tratava-se de uma organização constituída exclusivamente por mulheres” (2018: 13).

14De acordo com uma sondagem realizada pela Comissão da Condição Feminina, em 1975, “nas situações mais otimistas, as mulheres não excedem 1/4 dos lugares de direção” dos sindicatos onde havia maior força de trabalho feminina; e apontava situações de “sonegação de poder”, como nas conserveiras de Faro ou nos Têxteis do Norte. Mesmo quando eram 90% da força de trabalho, não possuíam nenhuma representante nos sindicatos. Em mais de 100 entrevistas a mulheres de diferentes localidades do país, quando questionadas se participavam ou não da vida política, a maior parte das respostas voltavam-se à não participação por “falta de tempo”, “cuidado com os filhos”, “meu marido não gosta de me ver andar de um lado para outro”. As que responderam afirmativamente e consideravam importante a participação na vida política formal eram, na esmagadora maioria, profissionais especializadas (Comissão da Condição Feminina 1976). A participação em organismos locais e de poder direto sobressaía em face das formas organizativas formais, em comissões de moradores/as, trabalhadores/as e na constituição de núcleos para a ampliação da educação e cultura nos bairros.

15Como descreveu Maria Velho da Costa, “elas vieram dos arrabaldes com fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas disseram à mãe: ‘segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa, dizer-lhes como é’. Elas foram pedir ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas souberam dizer salário igual, creches e cantinas” (1975: 138). O engajamento de mulheres trabalhadoras durante o período revolucionário português possibilitou uma esfera organizativa de transformações, seja na habitação, saúde e educação, seja na luta pelo direito ao emprego e, frequentemente, esforçaram-se em subverter a ordem estabelecida.

16Compreendemos este momento histórico para as mulheres enquanto uma possibilidade de consciência a partir da ação direta, da experiência coletiva, “na escola política viva, na luta pela luta, no decorrer da revolução em marcha”, como demonstrou Luxemburgo (1974 [1906]: 36).

17Neste sentido, Thompson afirma sobre o sentido da “experiência” que,

os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, indivíduos livres, mas como pessoas que experimentaram suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura […] das mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (1981: 182).

18O autor torna, por sua vez, a consciência numa relação dialética entre experiência em termos sociais, culturais e mesmo institucionais a partir de determinadas práticas comuns, de forma processual.

“A revolução como trabalho quotidiano”: reivindicar através da greve

19A resposta das operárias foi, como destaca Miguel Pérez, a mais imediata. Na fábrica corticeira Mundet um processo de autogestão foi despoletado poucas semanas após o 25 de Abril, onde as “trabalhadoras, na sua maioria […] avançaram com o saneamento da administração da emprega[dora] (sic) e a criação de um sistema original de gestão que deixava a capitalista proprietária num lugar quase decorativo” (2023: 22).

20Na fábrica têxtil Sogantal, situada no Montijo, as 48 jovens operárias entram em baixa de produção no início do mês de maio pela aprovação do caderno reivindicativo apresentado. Sob a ameaça de encerramento da fábrica, ocupam-na no início de junho e iniciam a venda das peças que já se encontravam confecionadas, intercalando postos de venda em sindicatos, universidades, cooperativas, bancas e em deslocamento de norte a sul do país. Publicam jornais, organizam comícios, encenam uma peça de teatro. Lutam pelo direito ao trabalho, reorganizam e reconfiguram o espaço fabril (Cabreira 2019).

  • 7 Consideramos que esse número será ainda mais abrangente, o que poderá ser auferido em futuras inves (...)

21Essas situações foram caracterizadas por diferentes formas de luta, respostas imediatas após a queda do regime. No período de abril de 1974 a dezembro de 1975, registamos que os piquetes e ocupações foram as formas mais recorrentes de protesto, inicialmente concebidos para bloquear a entrada de patrões e administração e impedir a retirada de máquinas e materiais. Identificamos, ao todo, 76 greves, 124 ocupações e 52 piquetes, predominantes no setor têxtil/confecções, de produção eletrónica, farmacêutica e na indústria alimentar7.

  • 8 Valente afirma que “ao se constituírem como estrutura autónoma suscitaram desde logo uma hostilidad (...)

22Nesse contexto, as mulheres que compunham a força de trabalho do setor têxtil e de vestuários em 68,9% do contingente (Comissão para a igualdade e para os direitos das mulheres 1992) apreenderam ações voltadas para a elaboração de cadernos reivindicativos após a eleição de Comissões de Trabalhadores, constituindo-se assim em uma arena de luta que, até então, lhes era dificultada ou vedada. Essas comissões “passaram a ser eleitas por assembleias de operários em cada fábrica” (Maxwell 1999 167), consolidando um poder de decisão que, em muitos casos, ultrapassava as iniciativas sindicais preexistentes8. Esse processo envolveu a participação ativa de centenas de mulheres trabalhadoras, ainda que elas tenham sido sub-representadas nas Comissões, mesmo onde elas eram a maioria da força de trabalho. Estes eventos se multiplicam no setor de componentes eletrónicos, por exemplo, onde eram elas 85% da força de trabalho, mas raramente compunham sequer metade do número de representantes das Comissões de Trabalhadores. O mesmo se verifica no setor alimentício.

23A greve, enquanto principal e primeira estratégia de ação da classe trabalhadora, tornou-se uma ferramenta indispensável no enfrentamento da exploração perpetrada pelo patronato no contexto do sistema capitalista e em períodos de possibilidade revolucionária. Nesse ínterim, a greve se consolidou como um elemento unificador das trabalhadoras e dos trabalhadores nas fábricas, com o objetivo de assegurar a manutenção do emprego, prevenindo a remoção de maquinaria e produtos acabados, por saneamentos, bem como reivindicando direitos e condições laborais. A greve evoluiu para se tornar uma manifestação legítima da dinâmica de poder entre a classe trabalhadora e a burguesia e, nessa conjuntura, também refletiu a correlação de forças entre trabalhadores/as, partidos políticos, sindicatos e governos provisórios. Temos enquanto hipótese que em muitas fábricas as/os trabalhadoras/es vivenciaram as greves como os seus primeiros conflitos laborais, representando, em muitos casos, a primeira experiência de enfrentamento na vivência de milhares de mulheres e homens assalariados/as.

  • 9 Os salários médios das operárias no setor de confecções, por exemplo, era de 1 500 a 2 100 escudos; (...)

24A maior parte das primeiras greves com que nos deparamos foi relacionada pelo pleito de aumentos salariais, associada por direito a subsídios e condições de trabalho, somados às exigências pela licença maternidade e espaço para criação de creches. Esse cenário não surpreende, dado que as mulheres recebiam salários mais baixos em comparação com os homens, que por sua vez também não eram adequadamente remunerados. Além disso, esses salários eram insuficientes para elas alcançarem uma independência económica ou um sustento digno9.

  • 10 A Força Operária, 30 de maio de 1974, n. 1.
  • 11 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1; Luta Popular, 20 de junho de 1974, n. 21.
  • 12 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1. Conseguem aumentos de 1 500 escudos.
  • 13 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1. Exigiam 40 horas semanais, subsídio de férias, pagamento de ho (...)
  • 14 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.
  • 15 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.
  • 16 A Capital, 12 de junho de 1974, n. 2254.
  • 17 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.
  • 18 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.

25Na região centro/norte, o mês de maio proporcionou às operárias da fábrica Barros, na Covilhã, a oportunidade de se organizarem em uma greve, culminando na conquista de um aumento de 1 000 escudos10. Esse movimento pelo aumento salarial marcou o início de uma série de outras reivindicações. Em junho, as greves por aumentos salariais, inseridas em um contexto de demandas mais amplas, se expandiram nos CTT (Correios, telégrafos e telefones), sendo de “salientar o conteúdo avançado das principais reivindicações, bem como o papel iminente desempenhado pelas trabalhadoras”11. Durante este movimento, há intervenção das Forças Armadas com a justificatição de se tratar de um serviço essencial e o I Governo Provisório inicia uma campanha contra a greve, difundida em diversos canais nos medias. As mobilizações também abrangeram a corticeira Wincander12, a têxtil Melka13, Naturana Portuguesa Confecções14, nos Lanifícios da Covilhã, de Portalegre e de Mira d’Aire, a Fábrica Têxtil Avelar15, na Intar16, Empresa Fabril do Norte17, na Fábrica Nacional de Margarinas18, para mencionar alguns exemplos.

  • 19 Decreto-Lei n.º 217/74 de 27 de maio de 1974. Diário do Governo, n. 123. Presidência do Conselho de (...)

26No dia 27 de maio de 1974, a Presidência do Conselho de Ministros estabeleceu um prazo de trinta dias para a regulamentação das greves, do lock-out e das relações coletivas de trabalho19. O Decreto ainda clarifica que a abrangência do salário mínimo alcançaria 50% da população ativa no setor privado, e no setor público, 68% dos funcionários. As pensões passam de 800 para 1 650 escudos. Com essa medida, indicam que seja uma forma “de redistribuição do rendimento nacional entre o trabalho e o capital, em vez de se transformarem em fator de alta de preços”. O mês que testemunhou o maior 1º de Maio já registrado na história do país chegou ao fim com greves e ocupações ocorrendo em diversos setores. A pressão exercida pelos/as trabalhadores/as, bem como o temor de perder o controle sobre as manifestações que se disseminavam pelo país, levou o PS e o PCP (Partido Comunista Português) a se posicionarem contra as greves. Eles propunham que essas manifestações fossem conduzidas pelos sindicatos e se manifestavam “contra a greve pela greve” (Santos et al. 1975: 332). De acordo com Maxwell, “quando os comunistas recomendaram moderação nas reivindicações salariais, os trabalhadores encontraram colaboradores mais simpáticos nos partidos pequenos e mais militantes da extrema esquerda” (1999 167).

27É durante a vigência do I Governo Provisório que a radicalização dos conflitos se estende para além das greves, dando lugar às ocupações de casas e a dilatação dos conflitos laborais. Nesse período, a formação de Comissões de trabalhadores e moradores assumiu um papel central na disputa por direitos sociais e na consolidação incipiente do poder popular (Varela 2014).

  • 20 Decreto-Lei n.º 392/74, de 27 de agosto de 1974. Diário do Governo, n. 199. Ministério do Trabalho.
  • 21 Ver, por exemplo, o jornal Voz do Povo, 1 de outubro de 1974, n. 9.

28Em meio a diversos conflitos e pressões, fosse no espaço laboral, nas ocupações ou na recusa de soldados em continuar a guerra nos países colonizados, o II Governo Provisório enfrentou uma crise política em sua constituição formal e nas tensões sociais. O Decreto-Lei 392 de 27 de agosto de 1974, buscando regulamentar o exercício de greves e de lock-out20, rapidamente foi rotulada de lei “anti greve” por partidos de esquerda como o MES (Movimento de esquerda socialista) e UDP (União democrática popular)21 que exigiam a sua revogação.

  • 22 Decreto-Lei n.º 392/74, de 27 de agosto de 1974. Diário do Governo, n. 199. Ministério do Trabalho.

29O referido decreto estipulava que seriam consideradas ilegais as greves “por motivos políticos”, “greve de solidariedade” ou ainda a “ocupação dos locais de trabalho”, alegando a “defesa da economia nacional” (Varela 2014: 60-61); ficava proibido a greve às forças militares e militarizadas, aos magistrados judiciais, às polícias e guardas prisionais e aos bombeiros. A greve de solidariedade mantinha-se permitida entre trabalhadores da mesma empresa, o que de facto aconteceu em dezenas de fábricas. Ao patronato, ficava proibido o “encerramento total ou parcial da empresa para impor condições de trabalho aos trabalhadores ao seu serviço”, o que passava a ser considerado “lock-out defensivo” em resposta a ocupações “ilegais” determinadas pelo diploma. A emergência das lutas laborais, muitas vezes, não acompanhou a burocracia legal, sobretudo nos conflitos pela readmissão de pessoal e na formação de piquetes seguido de ocupações, em resposta ao encerramento das fábricas. Similarmente, as entidades patronais nem sempre obedeceram a proibição de encerrar suas operações “para impor condições de trabalho aos trabalhadores ao seu serviço22”.

30No período compreendido entre junho e agosto de 1974, as greves ganharam força e se intensificaram. A abertura proporcionada pelo novo diploma, combinada com o poder das organizações sociais, resultou em um aumento das pressões sobre os patrões e administrações de empresas que, em muitos casos, viam em Portugal a emergência de uma revolução que em nada os beneficiava. As fugas de patrões e administradores aumentaram e esse fenômeno parece-nos ter sido mais significativo nas fábricas cuja força de trabalho feminina era maior, como no caso dos têxteis e componentes eletrónicos, justamente por muitas serem compostas na totalidade ou parcialmente pelo capital estrangeiro.

As ocupações como forma de resistência

31Christopher Dejours argumenta que “trabalhar, não é somente produzir ou fabricar, não é apenas transformar o mundo, é também transformar-se a si próprio, produzir-se a si mesmo” (2011). Se considerarmos que é por meio do trabalho que se condicionam as transformações subjetivas do sujeito, podemos afirmar que é também através da luta reivindicativa – manifestação objetiva da integração nas condições laborais – que as relações sociais de género e classe são (re)construídas e moldadas (Kergoat 2018: 95).

32As ocupações demonstraram uma capacidade de “subversão das estruturas do poder dentro da empresa”, além de terem implicado “um significativo desejo de transformação das relações capital força de trabalho […] ao nível das relações de produção, ou pelo menos das relações de força” (Santos et al. 1976: 39-42).

33Essas ações foram desencadeadas por diversos motivos, sendo os mais frequentes relacionados com disputas pela manutenção da fábrica, nomeadamente com casos de fuga do patronato e/ou tentativas de conduzir as fábricas a novas produções ou reverter produtos e máquinas para o pagamento de salários e indemnizações. As ocupações pela readmissão de trabalhadoras também marcaram uma consciência de solidariedade operária, pelo direito ao trabalho e melhores condições de vida. Contra a hierarquia social que perdurava após o 25 de Abril, foi transvertida em um poder de confronto com o patronato. É evidente que “a grande capacidade de reivindicação das classes trabalhadoras rompe com a ‘legalidade’ existente, excede os limites de adaptação do sistema económico anterior, contribuindo para o seu desmoronamento, ultrapassa as expectativas do patronato, dificulta a institucionalização dos conflitos e acentua o vazio do poder político” (Santos et al. 1977: 8).

34No setor de componentes eletrónicos, as ocupações tornaram-se meio de resistir em face da recusa do cumprimento dos cadernos apresentados e da ameaça de desemprego, sobretudo por serem quase sempre multinacionais. O modelo de cadeia de montagem fracionada, adotado por essas organizações, promove uma dissociação para as/os trabalhadoras/es sobre o que produzem e qual o seu valor de produção. Fragmentam não apenas o produto, mas a noção do próprio trabalho. Para Weil, nenhuma “intimidade liga os operários aos lugares e aos objetos por entre os quais a sua vida se dissipa, e a fábrica faz deles, no seu próprio país, estrangeiros, exilados, desenraizados” (2022: 20-21). As ocupações transvertem essa relação dissociativa e passaram a compor sentido ao trabalho em casos que chegaram à autogestão, como na Sogantal, Charminha, Sousabreu, Artedu, Candidinha, dentre outros casos.

  • 23 A fábrica tinha como base a tecnologia estadunidense, mas um serviço de desenvolvimento local, em P (...)
  • 24 Segundo a Luta Proletária, 16 de agosto de 1974, n. 4, 65% do pessoal era feminino; o mesmo em Auto (...)
  • 25 Tratava-se de uma medida humilhatória, que consistia em destacar trabalhadoras consideradas “improd (...)
  • 26 Documento das Operários da Messa, em reunião no dia 9 de maio de 1974. Em Santos et al. 1976: 221.

35A Messa23, por exemplo, empresa de metalomecânica ligeira e eletrónica com produção de máquinas de escrever, localizava-se em Mem Martins com 1 800 jovens trabalhadoras e trabalhadores. Era composta por 65% mulheres24. A fábrica já estava envolvida num processo de luta anterior ao 25 de Abril de 1974, juntamente com o Sindicato dos Metalúrgicos, exigindo um “salário mínimo digno de 6 000 escudos” (Valente 2001: 233). Segundo Villaverde Cabral, a secção mais “importante, onde a força-de-trabalho se apresenta compacta sob a origem da figura da operária não qualificada, é a secção de montagem, com cerca de 400 operárias” (Cabral 1976: 246). Lançaram um caderno que incluía não apenas aumento salarial, mas também a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, abolição dos prémios, férias subsidiadas, 13º e 14º salários, além da restrição de despedimentos sem justa causa (Pérez Suárez 2023: 86-88). Propunham a denúncia de situações de “policiamento e vexame”, como a proibição à ida a casas de banho, a “colocação de chapas nas bancadas de ‘improdutivo’”25 ou ainda a delação de “certos chefes do seu lugar privilegiado para se dirigirem especialmente às operárias em termos vexatórios e muito pouco adequados a quem tem de ganhar o pão durante um dia de trabalho26”.

  • 27 Jornal do Trabalhador Messa. Em Santos et al. 1976: 233.
  • 28 No Diário de Lisboa, 23 de maio de 1974, contudo, apontam que “o pessoal fabril é constituído na su (...)
  • 29 A Voz do Trabalhador, 6 de junho de 1974, n. 2.
  • 30 A Força Operária, junho de 1974, n. 2.

36No dia 16 de maio, as trabalhadoras da Messa iniciaram uma greve exigindo o cumprimento de suas reivindicações. A greve desencadeou uma ocupação com piquetes, onde “participaram activamente nas tarefas de ligação, transporte, recepção, segurança, vigilância de entradas, recolha de fundos e abastecimento” (Valente 2001: 234). Além disso, assistiam a filmes e a peças teatrais, escreviam poesia27. Durante esse período, publicaram dois números de jornais e um comunicado à população. No caderno reivindicativo apresentado a 15 de maio, é exigido “para trabalho igual salário igual” (Santos et al. 1976: 224)28. A ocupação durou até o dia 28 do mesmo mês quando, no dia 27, que a direção do Sindicato dos Metalúrgicos acordará o salário para as bases no valor de 4 500 escudos, facto que levou ao término da greve com uma insatisfação latente das/os trabalhadoras/es29. Chegaram mesmo a reivindicar um conselho disciplinar que fosse paritário (Santos & Casimiro 1997: 39) e alguns resultados práticos foram alcançados, como a assinatura do Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) do setor metalúrgico e a divisão de tarefas para o funcionamento da creche e da cantina30.

  • 31 Diário de Lisboa, 23 de maio de 1974, p. 20.
  • 32 Autogestão Revolucionária, maio de 1974, n. 0.

37Lia-se em um poema escrito pelas operárias, divulgado em diversos jornais, dedicado ao administrador e engenheiro chamado Gallo: “Antigamente cantava o Gallo/E não nos dava um tostão/Tivémos que depená-lo/Porque era um intrujão”31. Certamente, esse lado espontâneo, desbocado e afrontador das trabalhadoras transmite uma mensagem de segurança não apenas prática, refletindo o peso da autonomia que encontravam na ocupação, mas também simbólico, possibilitando que expressassem abertamente suas personalidades e o valor de suas representações. A capacidade de se manifestar livremente e de desafiar as normas estabelecidas não só reforça a possível mudança dessas mulheres, mas também o poder coletivo das trabalhadoras. Em mais uma demonstração desse peso representacional, uma operária da Messa afirmava para o Autogestão Revolucionária que “a luta faz com que camaradas que não falavam há anos, andem agora abraçados. Faz com que eu trate por tu, eu casada, todos os homens da minha secção. Faz com que a gente perceba a força que isto é32”.

  • 33 A Capital, 12 de julho de 1974, n. 2280.
  • 34 O 1º de Maio, 1 a 15 de agosto de 1974, n. 5.
  • 35 O 1º de Maio, 1 a 15 de agosto de 1974, n. 5.
  • 36 Luta Popular, 18 de julho de 1974, n. 25.
  • 37 O 1º de Maio, 1 a 15 de agosto de 1974, n. 5.

38Na Applied Magnetics, de 700 trabalhadores33, 90% eram operárias (Pérez Suárez 2023: 94) dedicadas à produção de cabeças magnéticas e matrizes para computadores. A crise teve início em junho, quando o patronato procurou destacar ao Ministério do Trabalho uma Comissão de Trabalhadoras/es eleita antes do 25 de Abril de 197434. No entanto, essa tentativa foi prontamente respondida com a formação de uma nova comissão, eleita pelas trabalhadoras. A luta prosseguiu com a apresentação de um caderno reivindicativo, que incluía exigências como aumento salarial, adoção de uma jornada de 40 horas semanais (uma medida colocada em prática pelas trabalhadoras), salário igual para trabalho igual35. Realizaram uma paralisação de 14 dias pelo cumprimento dos pontos indicados no caderno36, levando a cedência das reivindicações pela direção da empresa37.

  • 38 Revolução, 26 de julho de 1974, n. 9.

39Em julho, a direção alegou que não poderia cumprir o aumento salarial estipulado no Contrato Coletivo de Trabalho, aferido em 4 800 escudos, e, por esse motivo, anunciava o despedimento de 116 operárias38. Em resposta a essa decisão, ocuparam tanto a fábrica quanto os escritórios, com o objetivo de evitar a remoção de documentação e maquinaria. Deixaram de receber salários desde 18 de julho.

  • 39 O jornal A Causa Operária, 24 de fevereiro de 1975, n. 5, apontava que a duração seria de 6 meses d (...)

40A pressão exercida pelas trabalhadoras e pela Comissão resultou no Estado assumindo o pagamento das indemnizações que caberiam à entidade patronal. Esse pagamento foi feito por meio de um subsídio no valor correspondente à metade de um salário mínimo, totalizando 1 650 escudos. Esses pagamentos começaram em agosto de 1974 e previa-se uma duração de quatro meses39. Essa iniciativa representou um marco significativo, sendo uma das primeiras medidas que impulsionaram a criação de um subsídio de desemprego, ainda que a luta dessas operárias tenha sido sempre em prol do direito ao trabalho. O subsídio foi uma ferramenta de sobrevivência. A sua formalização foi então institucionalizada com a promulgação do Decreto-Lei n.º 169-D, de 31 de março de 1975.

41Ao entregarem a fábrica ao governo, tendo em contrapartida o pagamento do subsídio, passaram a organizar uma peça de teatro, ensaiada e encenada em diversos momentos durante o PREC, além da formação de uma comissão de desempregados, no ano de 1975. Se é verdade que a forma estética se renova sob as condições que o tempo histórico exige, essas encenações buscavam aproximar, tomar para si o que Bertolt Brecht (2005 [1954]) chamou de “teatro épico”, aquele que devia despertar o interlocutor para uma reflexão e atitude críticas, aproximá-lo para o problema real. A cultura andava de braços dados com a revolução.

  • 40 Voz do Povo, 20 de maio de 1975, n. 42.
  • 41 Jornal dos Trabalhadores da Applied, 20 de fevereiro de 1975, n. 2.

42No final de janeiro, participaram em uma manifestação junto a trabalhadoras e trabalhadores de outras empresas, reunindo cerca de 2 000 pessoas em protesto contra os despedimentos e em defesa pelo direito ao emprego40. No dia 3 de março, a Comissão organizou uma manifestação “das trabalhadoras da Applied”, em Moscavide, com a presença do cantor e compositor José Mário Branco. As operárias da Applied acreditavam que era possível obter ajuda direta do governo para serem realocadas em outros postos de trabalho. Uma operária expressou seu sentimento: “é necessário fazer jornais murais nos bairros operários contando a nossa luta, é necessário avançarmos com a nossa manifestação exigindo o direito ao trabalho e mostrarmos que não estamos dispostos a morrer de fome”41.

43Essas mulheres não apenas criaram atividades, mas também ultrapassaram barreiras que haviam sido impostas a elas ao longo de décadas. Elas fumavam, conversavam em voz alta, participavam ativamente de debates, dormiam noites fora de casa. Se é verdade o que afirmava Lenin (1946), de que “a consciência social reflete o ser social”, essas mulheres envolveram-se em uma experiência transformadora que desafiou as expectativas dos padrões impostos. Muitas delas romperam com essa película invisível da moralidade patriarcal. As ocupações não apenas possibilitaram mudanças subjetivas, mas também frequentemente resultaram em conquistas objetivas sob as reivindicações colocadas, oferecendo referenciais sobre o poder transformador das ações coletivas e das ocupações enquanto forma de resistência.

44Também interessa-nos perceber como as ocupações “subvertiam o uso do espaço fabril” (Noronha 2018: 67), convertido em creche, espaço para o tricô, crochê, debate político, atuação artística, ou, simplesmente, o convívio entre pares. É curioso compararmos a observação de Patriarca sobre os momentos “livres” dos trabalhadores e trabalhadoras durante ocupações na Lisnave e na Messa. Segundo ela,

nos estaleiros, ao longo da ocupação, os operários ocupam o seu tempo, durante o dia, estendendo-se ao sol ou jogando às cartas e, à noite, acendendo fogueiras e tagarelando, ou reunindo-se, durante horas intermináveis, para discutir o decorrer das negociações. E, em momentos mais tensos, entregam-se também a alguns actos de violência simbólica, como a do “enforcamento” de um boneco que representa o patrão. Na Messa, são criadas várias comissões que controlam o espaço fabril. Há música, sardinhadas, filmes e convívio. Abrem-se as portas das fábricas, em visitas guiadas, a operários de outras empresas. Trocam-se experiências e contam-se histórias passadas e presentes. A violência aqui é substituída por versos satíricos, que visam um administrador e sobretudo os chefes em relação aos quais o ressentimento é maior (Patriarca 1998: 140).

45Embora a autora não se aprofunde na comparação entre a maior presença de homens na Lisnave ou mulheres na Messa, é possível traçar alguns paralelos. Para as mulheres, esses momentos foram ainda mais simbólicos, uma vez que a liberdade expressa fora da família muitas vezes representava algo nunca experimentado. A possibilidade de interagir, expressar ideias e comportar-se fora do “molde” esperado por elas, deixar o corpo falar neste contexto de luta parece ser substancialmente diferente dos momentos experimentados pelos homens, dado que para estes, o espaço de liberdade nos costumes já era algo cotidiano.

46Um operário da fábrica Applied Magnetics, quando perguntado sobre o destino da fábrica e dos materiais durante a ocupação, responde que têm evitado vender o material e maquinaria “porque nós sabemos que este material, se sair de Portugal, se destina a montar uma fábrica idêntica num país subdesenvolvido” (Palla & Sousa 1974). A consciência das trabalhadoras/es alarga-se a partir da experiência, vivida e confrontada. Ou, conforme caracterizado por Thompson, a experiência é o elemento crucial na dialética entre as transformações das forças produtivas e da vida cotidiana (1998), enquanto uma “resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social” (1981: 15).

Considerações finais

47Buscamos demonstrar a noção de que a trabalhadora assalariada não se restringe ao papel de proletária passiva ou hegemónica, mas também representa uma mulher que luta, cuja experiência está profundamente entrelaçada com a rica carga histórica que envolve o trabalho e a consciência a partir do confronto, da revolta e da luta ativa. Justamente por estarem inseridas predominantemente nas fábricas com processos de produção mais repetitivos, representadas em grande número por multinacionais, elas estiveram entre as primeiras a enfrentar a ameaça do desemprego e a deslocalização das fábricas para outros países. Além disso, enfrentaram grandes dificuldades nas negociações por direitos laborais e por aumento de salários, que eram efetivamente muito baixos, colidindo com um cenário de maior prevalência de piquetes e de ocupações em detrimento da greve numa clara demonstração de ação direta pela preservação dos postos de trabalho.

48Assim, além de aprenderem a confrontar as estruturas no espaço do trabalho assalariado, as mulheres também desenvolveram e afinaram formas de organização no âmbito familiar. Os modelos foram transpostos para as suas estratégias de luta durante o período revolucionário. Esta ação, de caráter imediato, a divisão igualitária de tarefas entre elas, a dinamização de espaços de convívio, atividades lúdicas e o cuidado com as filhas e filhos durante os períodos de resistência emergiram como características distintivas deste movimento.

49Este artigo buscou traçar, em linhas gerais, a presença de mulheres neste intenso processo de transformações encarrilhado durante o 25 de Abril de 1974, ainda que outras questões de fundo não tenham sido discutidas ou colocadas. Ainda assim, podemos considerar que as lutas empreendidas por estas operárias foram constantemente deixando “atrás de si um terreno fértil, onde surgem mil rebentos” (Luxemburgo 1974 [1906]: 58). Na experiência da greve, das ocupações e dos conflitos, muitas desvendaram o poder combativo que possuíam e que se mantinha resguardado por uma camada de adestramento social. A consciência surgiu da prática, uma vez que é “na revolução em que a própria massa aparece na cena política, [que] a consciência de classe torna-se concreta e activa” (ibid.: 79).

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Bibliographie

Fontes

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Notes

1 “A fome reinava-lhes em casa, mas a revolução reinava-lhes na cabeça”: a expressão foi cunhada pelas operárias conserveiras da fábrica Unitas (O Setubalense, 26 de setembro de 1975).

2 Compreendemos que o país vivenciou uma revolução através de um conjunto de conceitualizações: de Tilly (1996) concebemos que a dimensão mais importante neste processo seria a existência de uma dualidade de poderes; de Trotsky (1978 [1930]) que teorizou a Revolução Russa de 1917 enquanto “a intervenção das massas na vida política”, possibilitando uma situação revolucionária; para Anderson (1984) a existência de uma revolução pressupõe a transformação social enquanto elemento de convulsão social e uma busca pela transição para o socialismo através da tomada do poder estatal. Por sua vez, Hobsbawm (1992) destaca a necessidade de uma mobilização de massas para que uma revolução seja desencadeada. Varela (2014: 489) define que uma situação revolucionária “seria um processo político caracterizado pela entrada em cena de vastos sectores da população (trabalhadores e classes médias) que altera a relação de forças entre as classes sociais, num quadro de crise (decadência) nacional”. Para uma discussão mais específica e com diferentes posições sobre o caso português, ver Varela (2012).

3 Exemplos que perduraram como as mulheres que simbolicamente colocaram cravos nas espingardas dos soldados, mães que carregavam seus filhos ao colo enquanto defendiam o direito à habitação digna, ou a ênfase sobre o debate do feminismo/feminino nas Novas Cartas Portuguesas.

4 Trata-se de um corpus documental aqui restrito aos casos apontados mas inserido em uma investigação mais ampla (Cabreira 2024).

5 Este trabalho apresenta resultados parciais da etapa de sistematização de fontes outras, como entrevistas a ex-operárias do setor têxtil e do setor eletrónico, bem como médicas, professoras e diversos militantes, homens e mulheres, que vivenciaram o PREC. Utilizamos de maneira diluída a concepção do período para essas entrevistadas, tendo a problematização da memória tão somente para se debater a noção de perspectiva de tempo, ou seja, para não se tomar a narrativa como o que “realmente aconteceu”, de “informações que se alternam e sobrepõem” (Portelli 2013), mas sim dos indícios e caminhos deixados e partilhados. (Ginzburg 1989).

6 Não descartamos aqui a opressão exercida entre mulheres, mas a relegamos a um espaço menos expressivo se tratando da posição social, económica e espacial como a opressão patriarcal entre géneros/sexo.

7 Consideramos que esse número será ainda mais abrangente, o que poderá ser auferido em futuras investigações que se concentrem em estudos regionais sobre esses processos de luta, em fábricas onde predominasse o trabalho de mulheres.

8 Valente afirma que “ao se constituírem como estrutura autónoma suscitaram desde logo uma hostilidade aberta da maioria das direcções sindicais, que, pelo menos até meados de 1975, considera as CT como formas selvagens de organização, instrumentos do patronato e do ‘divisionismo’” (2001: 241).

9 Os salários médios das operárias no setor de confecções, por exemplo, era de 1 500 a 2 100 escudos; o valor do salário mínimo nacional, decretado em junho de 1974 era de 3 300 escudos, demonstrando como a remuneração feminina anteriormente ao 25 de Abril era insuficiente e super-exploratória.

10 A Força Operária, 30 de maio de 1974, n. 1.

11 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1; Luta Popular, 20 de junho de 1974, n. 21.

12 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1. Conseguem aumentos de 1 500 escudos.

13 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1. Exigiam 40 horas semanais, subsídio de férias, pagamento de horas extraordinárias, pagamento do 13º salário e aumentos salariais.

14 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.

15 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.

16 A Capital, 12 de junho de 1974, n. 2254.

17 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.

18 Revolução, 1 de junho de 1974, n. 1.

19 Decreto-Lei n.º 217/74 de 27 de maio de 1974. Diário do Governo, n. 123. Presidência do Conselho de Ministros.

20 Decreto-Lei n.º 392/74, de 27 de agosto de 1974. Diário do Governo, n. 199. Ministério do Trabalho.

21 Ver, por exemplo, o jornal Voz do Povo, 1 de outubro de 1974, n. 9.

22 Decreto-Lei n.º 392/74, de 27 de agosto de 1974. Diário do Governo, n. 199. Ministério do Trabalho.

23 A fábrica tinha como base a tecnologia estadunidense, mas um serviço de desenvolvimento local, em Portugal. Exportavam 80% da produção, escoada sobretudo para Estados Unidos, Japão e Espanha. (Cabral 1976: 243).

24 Segundo a Luta Proletária, 16 de agosto de 1974, n. 4, 65% do pessoal era feminino; o mesmo em Autogestão Revolucionária, n. 00, MARP, maio de 1974.

25 Tratava-se de uma medida humilhatória, que consistia em destacar trabalhadoras consideradas “improdutivas” através de uma placa na respetiva bancada de trabalho.

26 Documento das Operários da Messa, em reunião no dia 9 de maio de 1974. Em Santos et al. 1976: 221.

27 Jornal do Trabalhador Messa. Em Santos et al. 1976: 233.

28 No Diário de Lisboa, 23 de maio de 1974, contudo, apontam que “o pessoal fabril é constituído na sua grande maioria por mulheres que trabalham nos sectores metalúrgicos, recebendo salários inferiores aos dos homens e muito abaixo do mínimo reivindicado de 6 contos”.

29 A Voz do Trabalhador, 6 de junho de 1974, n. 2.

30 A Força Operária, junho de 1974, n. 2.

31 Diário de Lisboa, 23 de maio de 1974, p. 20.

32 Autogestão Revolucionária, maio de 1974, n. 0.

33 A Capital, 12 de julho de 1974, n. 2280.

34 O 1º de Maio, 1 a 15 de agosto de 1974, n. 5.

35 O 1º de Maio, 1 a 15 de agosto de 1974, n. 5.

36 Luta Popular, 18 de julho de 1974, n. 25.

37 O 1º de Maio, 1 a 15 de agosto de 1974, n. 5.

38 Revolução, 26 de julho de 1974, n. 9.

39 O jornal A Causa Operária, 24 de fevereiro de 1975, n. 5, apontava que a duração seria de 6 meses do subsídio, mas as/os trabalhadoras/es indicam no Jornal dos Trabalhadores Desempregados da Applied , em fevereiro de 1975, que o subsídio acabara em janeiro.

40 Voz do Povo, 20 de maio de 1975, n. 42.

41 Jornal dos Trabalhadores da Applied, 20 de fevereiro de 1975, n. 2.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Pâmela Peres Cabreira, « “A fome reinava-lhes em casa, mas a revolução reinava-lhes na cabeça”: ocupações, greves e conflitos laborais de operárias durante o PREC (1974-1975) »Lusotopie [En ligne], XXIII(1-2) | 2024, mis en ligne le 01 décembre 2024, consulté le 15 mai 2025. URL : http://journals.openedition.org/lusotopie/8157 ; DOI : https://doi.org/10.4000/13e4q

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Auteur

Pâmela Peres Cabreira

Universidade Nova de Lisboa, Instituto de História Contemporânea
cabreiraperes[at]gmail.com

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Droits d’auteur

CC-BY-NC-4.0

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