1Há poucos dias atingimos os cinquenta anos do fim da ditadura que oprimiu e censurou Portugal por décadas, havendo já a democracia superado, em dias e horas, a duração do regime ditatorial cujo fim hoje é comemorado nos mais diversos âmbitos da sociedade portuguesa.
2Um excerto do passado tão palpável, mas ao mesmo tempo tão maleável e disputado, há sempre de figurar nos embates políticos da atualidade e há sempre de surpreender com seu potencial de atualização e apropriação. Os atores sociais estão sempre a agir explorando as possibilidades e noções de temporalidade, moldando os processsos que utilizam do passado parar criar o presente, sendo este último histórico e movido por agentes sociais que também o são. Tendo como objeto de análise as práticas comemorativas em torno das efemérides da Revolução de Abril, parte-se do pressuposto de que a comemoração é resultado de esforços de fabricação ou concepção da memória coletiva (Ricœur 1999) e que esta última é munida por um constante criar e recriar o passado, ao invés de apenas reconstituí-lo (Candau 2011).
3A data, celebrada anualmente nas ruas de Portugal, cuja natureza vagueia, consciente e inconscientemente, entre comemorar, rememorar, reivindicar, batalhar e protestar, sofreu e sofre, ao longo dos anos, uma constante metamorfose quase que à imagem e reflexo de um camaleão que se adapta e modifica de acordo com o ambiente e suas emoções. Ainda que externamente representado por uma ideia de reconciliação e coesão materializada nas inciativas oficiais em torno da memória da Revolução, o 25 de Abril é mais do que um: são muitos abris dentro de uma mesma imagem geral do passado. Maurice Halbwachs (1990) sustenta o raciocínio através de sua tese a respeito da memória coletiva ao afirmar que existem tantas memórias quanto grupos, ou seja, quanto mais grupos existirem, mais memórias existirião e mais interpretações a respeito do passado surgirão.
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- 2 “Pois o tempo histórico, caso o conceito tenha mesmo um sentido próprio, está associado à ação soci (...)
4Designado como “Dia da Liberdade1” em 1978, o 25 de Abril tornou-se um universo de co-criação de uma memória coletiva e de co-produção de modos de ser e agir no espaço público, adquirindo um status de espaço de intersecção de muitas visões acerca do passado, de inscrição da memória através de símbolos e da co-existência de diversos regimes temporais; estas variadas temporalidades representam profusas vivências e experiências que podem sobrepor-se umas às outras em um mesmo tempo histórico (Koselleck 2006)2.
5No caso das comemorações do 25 de Abril em 2024, o 50º aniversário coincidiu com uma conjuntura política interna bastante delicada, não apenas em relação à realização de novas eleições legislativas, mas especialmente aos resultados nelas obtidos, onde uma quebra nas relações de poder político há anos cultivadas no Parlamento Português foi verificada quando da derrota do Partido Socialista após anos no poder e da irrupção de deputados da extrema-direita, formalizada nos cinquenta representantes eleitos do Chega. Nesta conjuntura, o que chama-nos a atenção é um infindável acervo de novas dinâmicas contextuais, as quais, quando apropriadas na esfera pública em debates e manifestações, são abordadas a partir de temporalidades mais veementes e as disputas pelo passado florescem. A “novidade” circunstancial no ano em que se celebram os cinquenta anos inaugurais da democracia portuguesa resultou em grande comoção por parte daqueles que saíram às ruas para defender, cumprir e atualizar os valores de Abril. Em momentos como estes, os conflitos pelo futuro também emergem na equação, o que nos permite pensar os usos do tempo em períodos de inconciabilidade como “um terraço para outra coisa ainda, baseado num porvir delineado com esperança, com futuros presentes em vez de passados presentes” (Godinho 2021: 10).
6Corpóreo, permanente, gravado na pedra e no simbólico – o aspecto material aparece, em meio a estes impasses, como um suporte privilegiado de ação nas encruzilhadas disputáveis em torno da(s) memória(s), possibilitando a fixação tangível de certo fragmento pregresso em um contexto que abrange o enquadramento do presente e a projeção de um futuro. Demarcar o espaço público, empedernindo referências oriundas de uma excursão ao passado é adornar o hodierno contexto com aquilo que se quer para o hoje e amanhã. A memória oficial, aqui entendida como responsável por institucionalizar a recordação e constituir-se por iniciativas desenvolvidas pelo poder institucional, mormente pelo Estado, aparece como peso da balança que (des)equilibra dinâmicas de poder quando da publicização ou apagamento de memórias.
- 3 Sobre memórias subterrâneas, ver Pollak (1989) e sobre memórias fortes e memórias fracas, ver Trave (...)
- 4 De acordo com a sondagem “Os Portugueses e o 25 de Abril”, realizada pelo ICS-Ulisboa e pelo ISCTE, (...)
7O presente artigo tem como ponto de partida a homenagem substancializada pelo poder público, na figura da Câmara Municipal de Lisboa, aos quatro indivíduos assassinados pela PIDE/DGS no dia 25 de Abril de 1974 em frente à sede da polícia política. O processo de substancialização do tributo, iniciado por pressão popular de segmentos da sociedade civil, foi corporificado no dia 3 de abril de 2024, grifando o espaço público e honrando memórias marginalizadas3 através do aspecto material. A partir disto, o olhar reflexivo acerca do terreno etnográfico deste evento pretende abrir caminhos para pensarmos outras duas iniciativas de memorialização a nível tangível ocorridas no mês de março deste ano, também enquadradas no âmbito das comemorações do cinquentenário da Revolução. Desta forma tenciona-se pensar as comemorações como políticas públicas de memórias e perceber de que forma estes instrumentos de memorialização contribuem para a materialização de celebrações do passado. As práticas comemorativas são aqui o ponto de partida para analisarmos a gestão da memória no ano em que se celebra o cinquentenário do evento considerado como o mais relevante da história de Portugal4. Assentado em uma interface teórica entre comemoração e memória, o presente estudo baseia-se em uma metodologia centrada na observação participante, recolha de conversas informais e entrevistas.
- 5 Manuel Loff (2014) expõe que vinte anos distanciaram o 25 de Abril ao momento que o mesmo chama de (...)
8No ano em que se celebra meio século da revolução que rompeu com a ditadura, a memória desfruta de protagonismo e o campo de batalhas por ela performada ganha ainda maior eco. Como comemorar um fragmento do passado – materializado por sua própria calendarização no “arquivo” de datas a serem relembradas nacionalmente – oficialmente consensualizado, mas interpretado, sentido e utilizado de maneiras tão distintas? Como transmitir a memória da resistência5 ao regime ditatorial e da luta pela democracia e pela liberdade? Qual o papel das comemorações oficiais na transmissão dessas memórias? Comemorar é fazer política pública e de memória?
9Na primeira parte do artigo, conceitos que permeiam os estudos da memória e das práticas comemorativas serão mobilizados, enquanto as efemérides da Revolução dos Cravos servirão como pano de fundo e ponte para construção de diálogos conceituais. Na segunda parte, convergiremos para a exploração e análise de iniciativas selecionadas no que diz respeito à processos de memorialização e materialização de memórias no âmbito das comemorações.
10O passado, constantemente recriado e podendo ser caracterizado como objeto do presente, passa por transformações induzidas pelo regime temporal que o rege e pelas mãos dos atores sociais que protagonizam esta temporalidade. Segundo o autor francês P. Nora, “Fala-se tanto de memória porque ela não existe mais” (1993: 7). Assim, a ausência da memória, a ausência do passado e das tradições e eventos a ele ligados fizeram com que o elemento fosse valorizado a um nível maior: devido à urgência de se preservar algo antes que este desaparecesse e já não fosse funcional para aquele grupo ou sociedade. De acordo com Nora, esse interesse pelo aspeto material deu-se em consequência da velocidade com a qual as mudanças no mundo estavam e estão se instalando, ainda nos dias de hoje, calcadas na ruptura e não na continuidade. “Há locais de memória porque não há mais meios de memória” (ibid.). A partir do momento em que percebemos não fazermos mais parte da memória, nossa relação com a mesma se modifica, dando lugar à uma atenção redobrada ao símbolos e significados do passado que desejamos salvaguardar no presente e no futuro.
11No entanto, é neste cruzamento que alguns autores como Paula Godinho e Raul Contreras (2024) trazem um outro olhar para se pensar passados presentes e futuros presentes, abordando as nuances da memória no presente através da relação da mesma com o futuro. Dessa forma, não é apenas o presente que dita a recriação do passado de acordo com as conjunturas sociais, políticas e económicas, mas é também o devir e sua antecipação que vão ditar formas de elaboração de uma memória e suas demandas presentistas. A crença exacerbada em um passado e o esforço voltado à patrimonialização do mesmo garantindo a cristalização de elementos caros ao ontem, mas sobretudo ao hoje, deve-se também à ausência de esperança no amanhã.
- 6 No campo da produção audiovisual, emprega-se a definição de “final aberto” para desginar um recurso (...)
12Contra a ideia do presentismo que obstringe e reduz o horizonte de expectativas (Koselleck 2006), facilitando uma espécie de aniquilação do futuro, onde apenas o presente existe, pretende-se pensar também a temática aqui proposta a partir das possibilidades de “finais abertos6” co-criados por diferentes grupos no tempo presente, costumeiramente com recurso a elementos do passado e do espaço de experiência.
13Os trabalhos da memória (Jelin 2002), sempre enfatizados a partir do presente, atuam no sentido de fornecer aos contemporâneos a sensação de continuidade, uma ponte que une passado e atualidade, uma ponte que – em constante construção – forja sentimentos que afloram dado o elo de ligação entre o que passou, o que ocorre e o que se pretende passar no amanhã. O repositório de aspectos abrangidos pela memória fornecem “dados”, quase que como um empréstimo ao presente que permitem reconstruir o tempo passado de acordo com impressões atuais que regem o modo de pensar de grupos dentro de uma sociedade. Este esforço em nome da preservação daquilo que já não faz parte – ao menos organicamente – do cotidiano, utiliza-se de diferentes suportes materiais e simbólicos selecionados para canalizar, materializar e vocalizar certos recortes do passado.
14A ânsia em resgatar e salvaguardar memórias transformou o presente em uma constante expedição ao passado, a qual busca, em outrora, materiais que respaldem o hoje e perdurem espacial e temporalmente. Não é de hoje que estátuas, placas memoriais e monumentos são erigidos no espaço público como forma de tributo ou homenagem a indivíduos, grupos e eventos históricos. A memória passa a figurar no cotidiano das pessoas ainda que as mesmas não a percebam ativamente, através de suportes físicos de períodos e símbolos que, no presente, são invocados para a lembrança.
15Handler (1988) contribui ao afirmar que, no século XIX, há um aumento da propensão a se edificar a memória no espaço físico em decorrência de um sentido de ansiedade experienciado por aqueles que clamavam pela permanência dessa anamnese no tempo presente. Assim, de acordo com o autor, os monumentos tinham a função de respaldar
[…] a lembrança coletiva, um processo disperso, em constante mudança e, em última análise, intangível, em locais altamente condensados, fixos e tangíveis. Os monumentos incorporavam e legitimavam a própria noção de uma memória comum e, por extensão, a noção do povo que possuía e se unia em torno dessa memória (Handler 1988: 130-131)7.
- 8 Por “militares de Abril” aqui entende-se os indivíduos reunidos em torno da Associação 25 de Abril, (...)
16As celebrações cívicas e cortejos populares organizados, de acordo com Daniel Ramalho (2015), pelos militares de Abril8 e por grupos da esquerda política tiveram início na década seguinte à revolução, o que deu início ao ritual público e político ainda hoje perpetuado. As comissões coordenadas de forma centralizada passam então a figurar sobretudo em datas “redondas”, como é o caso da atual em vigor, cujas atividades estão planeadas, em caráter excepcional, para ocorrer em um período de quatro anos (2022-2026), tendo como ápice as efemérides de 50 anos do 25 de Abril no ano de 2024.
17No que diz respeito aos processos memoriais desenvolvidos desde 1974 em Portugal, de acordo com Filipa Raimundo (2015), as políticas de memória aplicadas no âmbito da Justiça de Transição em Portugal, na década de 1970, foram “substituídas” na década seguinte e em diante, por uma maneira menos combativa de se lidar com o passado. Manuel Loff (2014) fala de ciclos da memória pública portuguesa após o 25 de abril, ao que divide este percurso em três momentos: em uma primeira fase, durante o Processo Revolucionário em Curso, percebe-se uma recusa e reprovação quase que autorizada do período ditatorial, passando para o período inaugurado à volta do 25 de Novembro de 1975, o qual estende-se até fins dos anos noventa onde o discurso reconciliador da Nação impera junto do apagamento de memórias da resistência à ditadura. O que acaba por desembocar – após uma conjuntura de Rebelião da Memória – no ciclo em que nos encontramos, no qual memórias marginalizadas emergem na superfície e políticas reparatórias, no âmbito simbólico e material, aparecem gradativamente no país, oriundas, sobretudo, da pressão popular.
18No caso do presente estudo, as comemorações – suportes simbólicos, ainda que apoiados em muitos signos materiais (Jelin 2014) – atuam como um elo entre o que se quer para o passado, o presente e o futuro; nesta encruzilhada temporal, a memória é utilizada, apropriada, reapropriada e protagoniza a trincheira destas dinâmicas. Do micro ao macro, da Comissão Comemorativa 50 anos do 25 de Abril, passando pela Câmara Municipal de Lisboa ao interpelar de associações da sociedade civil, as práticas comemorativas reunem, recollhem, reafirmam símbolos e sentidos que, quando ativados nestes momentos de periodicidade renovadas, servem como amálgama de coesão de individuos e grupos.
19Permeando a relação entre democracia e memória – ideais caros à Revolução e à sua perpetuação no hoje – Elizabeth Jelin (2014) expõe que a corporificação da memória em signos territoriais e simbólicos é um processo amplamente difundido na atualidade. Falar de comemoração é pensar também a calendarização de datas históricas e a transformação de determinados acontecimentos em feriados nacionais, o que faz com que a memória inscreva-se no cotidiano dos indivíduos de um país, ainda que de forma heterogênea quando da transformação do tempo em algo palpável.
20Nesse sentido, segundo Jelin, os significados não permanecem petrificados no aspecto mais material de uma placa de rua, por exemplo, mas são esses sustentáculos que atuam no “[…] trabalho subjetivo e para a ação coletiva, política e simbólica, de outros atores específicos, que o farão em outros cenários e em outras conjunturas históricas” (Jelin 2014: 227)9.
21A intersecção entre o político e o simbólico resulta em uma fusão transitória, gerando uma representação que nem sempre reflete a realidade, mas sim um desejo pelo futuro. John Gillis (1994), ao explorar a conexão entre memória e identidade, promove um debate crucial sobre as celebrações, destacando seu caráter intrinsecamente político e social. Ele argumenta que essas práticas abrangem a integração de memórias coletivas, individuais e grupais, o que frequentemente leva a conflitos e momentos de contestação devido à falta de consenso. As diversas formas de celebração incluem a construção de monumentos, a criação de objetos comemorativos, bem como festividades, feriados nacionais e desfiles. Estes elementos, em sua essência, refletem divergências, exclusões e seleções entre diferentes memórias, a partir das quais os grupos a elas relacionados buscam publicizar símbolos próprios através de políticas que os demarquem no presente. Estas estratégias encabeçadas por atores específicos atuam com fins de transmissão de certo legado, buscando a legitimação do mesmo na esfera pública.
22A memória oficial, no entanto, esta espécie de institucionalização da recordação, aparece como agente homogeneizador de excertos do passado cuidadosamente mobilizados, como é neste caso, em momentos de comemoração, utilizando-se de poderes e controles discursivos para impor certa leitura acerca do passado. De uma forma ou de outra, comemorações aparecem aqui como recursos, geralmente oficiais, de legitimação de narrativas sobre determinados acontecimentos, configurando-se enquanto políticas de memória de naturezas distintas.
23Dito isso, parte-se para uma observação sobre iniciativas comemorativas que tropeçam na materialidade como forma de incutir, substancializar e transmitir valores, sobretudo a partir da narrativa oficial.
24Esta seção pretende utilizar um terreno etnográfico para pensar três atividades realizadas em Lisboa por iniciativa – respectivamente – da Câmara Municipal de Lisboa, da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril e da Associação 25 de Abril, no âmbito das comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de Abril, e que dialogam entre si devido à materialidade das ações, as quais refletem-se no espaço público da capital e justificam a seleção metodólogia.
25A Câmara Municipal de Lisboa, autarquia representativa da capital do país, é responsável por um grande aparato comemorativo10 no ano de 2024, envolvendo juntas de freguesia, associações locais e segmentos da sociedade civil na preparação e elaboração de iniciativas que buscam recordar o 25 de Abril de 1974. Sob o pretexto de fortalecimento democrático, valorização de conquistas e transformações oriundas da Revolução e, sobretudo, da utilização da memória da liberdade enquanto motor para voltar-se ao futuro e suas possibilidades, a municipalidade organizou centenas de eventos comemorativos, enquadrados em diferentes categorias, tais como conferências, cursos, exibições, entre muitas outras iniciativas. É importante ressaltar que Carlos Moedas (PSD), o presidente da Câmara de Lisboa, esteve, em 2024, no centro de polémicas a respeito da criação de um aparato comemorativo forte em torno da memória do 25 de Novembro de 1975, cujas celebrações organizadas pela municipalidade tiveram lugar pela primeira vez oficialmente. Acerca do cinquentenário da Revolução, o presidente da câmara afirmou que
- 11 Trecho do texto escrito por Carlos Moedas, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. “As comemoraçõ (...)
Abril abriu este horizonte de possibilidades. Passaram 50 anos deste momento definidor daquilo que somos, e poderíamos pensar que o seu simbolismo está a esmorecer. Hoje as novas gerações dão como garantidas a liberdade e a democracia que Abril nos deu – mas não podemos dá-las como garantidas. Precisamos de lhes dar valor. Não relembrar a memória de Abril é cair na tentação da ditadura, onde o horizonte se fecha e a audácia desaparece. O 25 de Abril foi o contrário deste abaixamento do olhar; foi a audácia de ver e ir mais longe11.
- 12 A passeio e a título de investigação ao acompanhar um itinerário organizado pelo Museu do Aljube ch (...)
- 13 A placa já foi retirada, teve sua posição alterada e também, por décadas, contou com a escrita errô (...)
- 14 QR Code: sigla para Quick Response. Ao apontarmos a câmera do telemóvel para a recém fixada placa, (...)
26No dia 3 de abril de 2024 pela manhã, dirijo-me à rua António Maria Cardoso, número 22, onde deparo-me com um edifício imponente, pelo qual já havia percorrido externamente em diferentes ocasiões12. Vitrines suntuosas onde exemplares de eletrodomésticos e móveis estão expostos conferem a base, no rés de chão, ao que foi transformado, em parte, em um condomínio de luxo. Para quem lá passa sem atenção, é um edifício comum da arquitetura refletida em outros tantos na baixa de Lisboa. Para quem conhece a história local, abrem-se possibilidades de sentimentos gerados por aquele símbolo material do passado: indiferença, inquietação, dor. Uma placa em pedra (que sofreu muitas movimentações por quase vinte anos) hoje em um canto superior13 do prédio, que outrora abrigou a sede da PIDE/DGS no centro da cidade, é hoje então acompanhada por uma placa em material que se assemelha ao alumínio com um QR Code14 e a frase “a cidade de Lisboa não vos esquece”, suporte material que foi o objeto da inauguração deste dia.
Fig. 1. Placa com QR Code instalada em frente à antiga sede da PIDE/DGS na rua António Maria Cardoso
Fotografia da autora
Fig. 2. Placa com os nomes dos indivíduos assassinados a 25 de Abril de 1974 em frente à antiga sede da PIDE/DGS na rua António Maria Cardoso
Fotografia da autora
- 15 Petição iniciada por Pedro Vieira, jornalista e escritor, que entregou o abaixo-assinado à autarqui (...)
- 16 “Mais Memória”, Lisboa, MaisMemoria, https://maismemoria.org/ (consultado a 6 de abril de 2024).
- 17 Ainda que Bickford (2007) afirme que as iniciativas oficiais tenham sempre maior credibilidade e al (...)
- 18 Iniciativa da Associação 25 de Abril com Câmara Municipal de Lisboa – elaborada em 2019 no âmbito d (...)
27O motivo que me leva ao local nesta manhã é o convite, estendido à população através das redes sociais, feito pela Câmara Municipal de Lisboa para a participação em uma homenagem aos jovens mortos em uma Revolução – quase – sem sangue. Por pressão popular15, na forma de petições públicas e movimentação de segmentos da sociedade civil como o Movimento Cívico Não Apaguem a Memória16, e uma importante petição encabeçada por um jornalista em mais de uma tentativa, o tributo materializado através dos poderes legais da autarquia17 de que falamos veio de encontro à duas marcas distintas no mesmo sítio, mas inerentemente complementares: a placa em pedra instalada há anos na parede do prédio, cuja inscrição assinala o ocorrido trágico do dia 25 de Abril e o Projeto Lugares de Abril18, uma iniciativa entre a Associação 25 de Abril e a Câmara Municipal de Lisboa, ambos demarcando aquele espaço sob a forma de publicização e identificacão. Assim, dialogando com ações que buscam modificar o espaço público e a toponímia, assinalando e circunscrevendo estes suportes a partir das comemorações que operam através da concentração do tempo no espaço (Gillis 1994: 14), o ato, incluído no programa das comemorações municipais dos 50 anos do 25 de Abril em Lisboa, contou com a colaboração do Museu do Aljube, estando a diretora e alguns membros do quadro de funcionários presentes no descerramento de uma placa com QR Code fixada no chão em frente ao edifício, a qual remete-nos para suas biografias no website do Museu do Aljube, fruto de investigação histórica relevante.
28Cheguei no espaço indicado minutos antes das onze horas, horário de início da ianuguração oficial daquele momento histórico, e já lá estavam cerca de dez pessoas, as quais, a partir das dinâmicas sociais observadas, pareciam conhecerem-se – as dinâmicas de sociabilização, importantíssimas no trabalho de campo, revelam a familiaridade a uma possível assiduidade dos mesmos atores sociais nas lutas pela memória na cidade de Lisboa.
29Em um momento dividido entre as falas pré-definidas de três pessoas – e participação de mais duas de forma espontânea, mas integradas ao evento –, Pedro Vieira, o escritor e jornalista responsável por mobilizar os dois abaixo-assinados a favor da publicização do local de que se fala, inicia seu discurso expondo que, se por vontade própria, o local poderia e deveria ser um museu da memória. Pedro Vieira, desde 2018, trava a batalha, com a utilização das redes sociais, pelo não esquecimento dos indivíduos assassinados no dia 25 de Abril de 1974, sendo um dos cidadãos envolvidos nos esforços que resultaram no evento do dia 3 de abril de 2024. Entre falas sobre o processo para que hoje chegassem à correção dos nomes inscritos em pedra, aqueles que por décadas estiveram incorretos, demonstrando sobretudo um descaso com estas memórias, ressalta o auxílio da tecnologia na materialização desse excerto do passado e as muitas narrativas possíveis acerca de um mesmo acontecimento – dentre elas a destes jovens mortos, a qual estava incompleta com nomes trocados. “A batalha pela memória nunca termina”, frase essa que ecoa devido à precisão e pertinência quando tratamos de eventos traumáticos da nossa história.
30Nesta esteira reflexiva, Miguel Carvalho em Quando Portugal Ardeu (2017) traz consigo considerações acerca dos conflitos na profusão de memórias e passados no plural, e dá voz à excertos memoriais, nem sempre integrados nos “consensos” criados pela institucionalização do passado, ao dedicar-se, em parte, aos personangens do acontecimento aqui evocado. A recuperação de um nome de relevância e autoridade na investigação científica sobre a PIDE – o de Irene Pimentel – também é útil dada à potência destes estudos acerca da atuação da política do regime e das controvérsias em torno destas memórias; entre as muitas obras de interesse, destaco o livro O Essencial sobre a PIDE (2024), lançado no âmbito das comemorações do cinquentenário da Revolução.
31O patrimônio, alter ego da memória (Hartog 2015) – enquanto um abrigo da memória e das disputas nelas ligadas –, constitui um território de impressões e conflitos entre grupos distintos, nomeadamente entre aqueles que detiveram e detém o poder e aqueles que tiveram suas memórias marginalizadas e silenciadas historicamente. Assim, a iniciativa, a publicização deste espaço como política de memória e sua dimensão pedagógica atuam buscando também aproximar as gerações atuais aos valores democráticos e a luta em defesa dos direitos humanos.
- 19 O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM) começou a ser pensado em 2005 no contexto do projeto (...)
- 20 Fala observada pela autora no terreno etnográfico.
32A concretização desta homenagem traz a tona memórias que, apagadas na materialidade e recuperadas na mesma “moeda”, contribuem – enquanto exemplo do que pode ser feito – para a vocalização de outras tantas narrativas e demandas do passado que refletem e se repetem no presente. Nesta perspectiva de ativismo mnemônico, conceito cunhado por Gutman e Wüstenberg (2022), o segundo nome a discursar na calçada que se torna palco da performance política e memorial é Eurico Reis, presidente do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória, exemplo ríquissimo de militância através e para a memória19. Em uma fala profundamente marcada pela menção ao direito à memória e à verdade, bem como pela necessidade de apuração da história, o ativista mescla passado, presente e futuro, traçando paralelos transnacionais onde evoca confrontos atuais que se desenrolam na frente dos nossos olhos, como é o caso do conflito na Palestina, em uma tentativa de valorizar a democracia como objetivo elementar. É necessário que a memória seja preservada para “nos guiar para o que está a acontecer hoje […] para ajudar a lutar no dia de hoje, salvar as democracias, construções humanas muito frágeis20”. Assim, o mote é recordar para impedir a repetição dos erros do passado, honrando aqueles que vieram antes de nós e defendendo os direitos dos que ainda virão, independente de serem portugueses ou não.
33Em outras duas falas, também acompanhadas atentamente pelas cerca de quarenta ou cinquenta pessoas que reuniam-se para presenciar o instante singular, a simbologia das flores como evocação de algo pacífico na teoria, mas contrastante com o acontecimento do dia 25 de Abril de 1974, aparece junto do anseio por perceber o que ocorreu no processo iniciado no fatídico mês. Esta curiosidade necessária dá-se então, através de instrumentos de memorialização, os quais podem utilizar o material como meio para um fim.
34No final da cerimônia, cravos vermelhos são depositados ao lado da tangível homenagem que agora ressignifca um momento e dá voz àqueles que já não estão entre nós para o fazer. Canais de televisão registram o momento. Vítimas assinaladas em concreto, alumínio e tecnologia.
35A partir do ponto de partida do terreno, buscou-se fazer uma aproximação com outras duas iniciativas realizadas no último mês no âmbito das comemorações do aniversário de meio século da Revolução, ambas encabeçadas por ou em colaboração com órgãos oficiais, mas também com o envolvimento de associações não governamentais. É este o exemplo da edificação do Memorial em homenagem à vígilia da Capela do Rato no Jardim das Amoreiras, como parte das comemorações oficiais da Comissão 50 anos do 25 de Abril junto da Câmara Municipal de Lisboa, e o projeto Lugares de Abril, iniciativa da Associação 25 de Abril também em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa.
36Seguindo na esteira de iniciativas que operam no espaço físico do palpável, especialmente neste material duradouro e permanente que é a pedra, deparamo-nos com um projeto iniciado pela Associação 25 de Abril em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa.
37Constituída em 1982, a Associação 25 de Abril, uma associação sem fins lucrativos, contou desde sua génese com grande parte dos militares que estiveram implicados no processo que resultou no 25 de Abril de 1974. O papel protagonizado pelos integrantes do Movimento das Forças Armadas reflete-se na importância que esta instituição possui na sociedade portuguesa, atuando nas mais diversas frentes de preservação da memória e de defesa da democracia. Representativa dos valores por trás da libertação iniciada no final do admirável Abril de 74, a associação opera em linhas de atuação que convergem a imaterialidade e materialidade na defesa dos ideais da Revolução, a documentação histórica do período e o compromisso com a proteção da democracia portuguesa.
- 21 Aqui é possível enquadrar estes atores sociais como empreendedores da memória (Jelin 2002) e também (...)
38É importante frisar que a agremiação composta por militares que fizeram Abril é parceira de diversas iniciativas referentes à memória da Revolução e do período que a ela seguiu, no país inteiro, sendo presença e convite assíduos em diversas ações, sobretudo no âmbito da comemoração popular do 25 de Abril, na qual titula como promotora e amálgama entre tantos atores sociais na comissão organizadora do desfile que desce a Avenida da Liberdade anualmente. Esse engajamento com as questões da memória faz muito sentido quando pensamos no papel dos capitães enquanto uma das forças e linhas discursivas do passado e presente de Portugal, uma vez que os militaress ainda vivos orquestraram o acontecimento histórico e são testemunhas oculares de um passado bastante recente21.
39No ano de 2019, no âmbito das comemorações do 45º aniversário da Revolução de Abril, o projeto Lugares de Abril22 teve início com o objetivo de assinalar locais que marcaram o dia “inicial, inteiro e limpo”23. Esta demarcação faz-se através de dois suportes: um virtual, na figura de um mapa realizado no Google Maps e disponível online e um tangível, substancializado em 25 placas em pedra com o auxílio de um QR Code que remete ao website da associação.
40É no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril que as últimas placas do projeto Lugares de Memória foram inauguradas em Março de 2024. Com o intuito de marcar o espaço público e preservar a memória dos fatos iniciados no dia 25 de Abril pelo Movimento das Forças Armadas, as placas evocativas levam-nos à recordação e descrição dos episódios revolucionários ocorridos em cada um desses lugares, inscrevendo nas ruas uma espécie de roteiro em pedra que capta os olhos daqueles que assim atentam-se e que oferece uma ferramenta pedagógica de apelo ao passado.
41Sob a forma de um memorial descentralizado que instrui informalmente no espaço público, a iniciativa contempla os lugares por onde o Movimento das Forças Armadas passou há 50 anos, os quais, segundo uma fala do presidente da associação na inauguração – a qual observei – de uma exposição24 sobre o movimento dos capitães, são “referência em todo mundo25”. O recurso a esse passado por parte do debate internacional, agora também materializado pelas ruas protagonizadas durante a Revolução, pode sobretudo assinalar a história do 25 de Abril como referência para o presente e orientação para futuros possíveis a partir de experiências passadas. Acerca destes espaços repletos de significados, Elizabeth Jelin e Victoria Langland (2003) completam que
Esses espaços se tornam lugares de lutas entre aqueles que tentam transformar seu uso e, dessa maneira (ou para) apagar as marcas identificatórias que revelam esse passado, e outros atores sociais que promovem iniciativas para estabelecer inscrições ou marcas que os transformem em ’veículos’ de memórias, em lugares carregados de sentidos (Jelin & Langland 2003: 4)26.
42Neste sentido, então, estes suportes de memória que decoram e marcam o espaço público são densamente povoados por significados atribuídos por aqueles atores que os idealizam e os evocam no cotidiano, servindo, sobretudo, de instrumento pedagógico para pensarmos o passado através daquilo que o presente opta por homenagear. Esta espécie de “intrusão” descentralizada no cotidiano dos indivíduos acaba por contrastar a imponente presença de grandes monumentos e memoriais, os quais, por vezes, não podem desviar o olhar alheio, e passam a assinalar, materialmente, itinerários diários. Sob o pretexto de não esquecimento da luta pela liberdade, este fragmento de matéria trabalha a memória a partir da memória e para a memória, auxiliando na recordação e alertando para perigos que posssamos enfrentar.
- 27 Ver mais em: Araújo (2011).
- 28 A vigília da Capela do Rato é um acontecimento já assinalado anteriormente – sobretudo em 2022 – pe (...)
- 29 A Comissão de que se fala teve sua concepção alinhada com uma tradição de comemoração institucional (...)
43A Vigília da Capela do Rato, ação iniciada a 30 de dezembro de 1972 e encabeçada por um grupo de católicos em repulsa e contrariedade à Guerra Colonial em curso na altura, foi marcada por uma greve de fome por parte dos indivíduos envolvidos de forma a denunciar as atrocidades cometidas em nome da guerra e publicizar a solidariedade com as vítimas do conflito instaurado em Angola, Guiné e Moçambique27. Tópico bastante abordado28 no primeiro ano das comemorações oficiais, ciclo este marcado por iniciativas em torno da memória dos movimentos sociais, estudantis e de resistência que levaram ao fim do regime, a Vigília pela Paz na Capela do Rato foi assinalada, no dia 25 de Março de 2024, a 1 mês dos 50 anos do 25 de Abril, pela instalação de um memorial concebido pela artista Cristina Ataíde no Jardim das Amoreiras. A homenagem, pensada pela Comissão Comemorativa 50 anos do 25 de Abril29, foi direcionada à esta ação organizada por um grupo de católicos para denunciar a violação de direitos humanos nas colônias, pensar a necessidade a paz e recusar a continuação da guerra arrastada pelo regime até seus últimos dias.
44Buscando representar, a partir de duas paredes paralelas que não se encontram mas buscam comprimir aquilo que está dentro, o memorial, nas palavras do Presidente da Câmara de Lisboa na inauguração observada, traça paralelos entre passado e presente ao mencionar apelos referentes a violação de direitos humanos e ao fim da guerra, questões fundamentais para Portugal em 1972 no âmbito da guerra colonial, que não servem apenas para 1972, mas sobretudo para o hoje, quando a guerra volta a Europa, o confronto na Palestina torna-se cruel e a militarização vai ganhando espaço. Assim, utilizar essa memória é não apenas honrar o passado e aqueles que resistiram, mas sobretudo orientar o presente e abrir possibilidades para o amanhã:
Além do ato de homenagem, toda marca ligada ao passado tem inscrita em si um horizonte de futuro, uma ideia de que o que se inscreve hoje (em relação ao ontem) carrega uma mensagem para o amanhã, uma intenção de intervir para que o futuro seja melhor, para que não repita os erros e horrores do passado (Jelin 2014: 227-228)30.
- 31 Excerto fruto de contacto realizado pela autora com a artista convidada.
45O memorial representa a urgência da libertação e da denúncia de tudo aquilo que é contrário a paz. Nesse sentido, a homenagem a um movimento organizado por católicos mostra o 25 de Abril e as múltiplas datas e sentido dentro de uma só. Em conversa com Cristina Ataíde, artista convidada, a mesma aponta que o convite para elaboração do memorial ocorreu no início do programa das comemorações, quando o comissário executivo ainda era, na altura, Pedro Adão e Silva. A Comissão Comemorativa 50 anos do 25 de Abril desafiou a Câmara de Lisboa, a fazer algo que perdurasse no tempo e marcasse o espaço público de forma singela; em resposta a isso, a artista assinala que “a escultura pública é uma disciplina muito exigente, pois vai interferir com o espaço do outro, não deve agredir, mas ser significativa31”. O suporte tangível aparece, então, mais uma vez como um instrumento de memorialização e da substancialização das práticas comemorativas repletas de simbolismo.
46A discussão aqui proposta fez parte de um trabalho reflexivo a partir do que foi observado em terreno e das interpretações que surgem com as pistas do trabalho de campo e suas simbologias, dos discursos, das interações, repetições e demarcações.
47Se iniciamos este texto com o intuito de alguma forma acreditar no horizonte de possibilidades de futuro como uma antítese ao presentismo, armados da análise de iniciativas que buscam reparar lacunas do passado, inscrevendo marcas no presente para criar alternativas otimistas do amanhã, finalizamos refletindo acerca das nossas ações e pensando no potencial material das homenagens simbólicas.
48Sob a égide da publicização da memória e preservação da mesma, a demarcação do espaço público através da materialização de práticas comemorativas no âmbito dos 50º aniversário do 25 de Abril nos concede meios para pensar processos de memorialização em determinados contextos do presente. A excursão ao passado, a qual serve como uma espécie de arqueologia semiótica, traz ao hoje ferramentas de um repositório que pode e é utilizado como arma simbólica do presente e munição para o futuro. A terminologia bélica corresponde ao lugar ocupado pela memória no debate público: um campo de batalhas em constante construção, atualização e oscilação de forças.
49O elemento simbólico figura enquanto um dos instrumentos de acerto de contas com o passado. Esta dimensão, por vezes negligenciada, mas com grande potencial de reparação histórica – através da musealização de passados e sítios traumáticos, a construção de memoriais, edificação de estátuas e suportes imateriais como práticas comemorativas –, pode e deve ser utilizada pelos Estados de forma com que os mesmos assumam, culpabilizem e se desculpem publicamente por crimes cometidos em nome da nação em passados recentes ou lonínguos. A publicização – sobretudo a partir de cima – de memórias difíceis possibilita a criação de mecanismos de integração social destes segmentos do passado na memória coletiva de uma determinada sociedade, contribuindo para a vocalização de excertos da história outrora silenciados pelas narrativas dominantes.
50Se foi nas ruas que a ditadura caiu, que o povo construiu e ainda constrói a democracia, que os movimentos sociais manifestam, em todos os sentidos que esse verbo incorpora, é também nas ruas que a memória, dimensão em constante atualização, deve ser materializada.
51As iniciativas aqui listadas dão-nos pistas para pensarmos momentos nos quais o passado se atualiza, mas também operam como espaços privilegiados da criação e expressão de novos sentidos e demandas por diferentes grupos em uma espécie de reafirmação e utilização pública do passado para garantir horizontes de futuro. As datas comemorativas, neste caso 25 de Abril, acabam por tornar-se instrumentos de transmissão de significados entre pessoas utilizando o espaço público e a apropriação das ruas através sobretudo do elemento emocional para reivindicar aquilo que se quer e a emergência de memórias que não só a oficial. Ainda que os sentidos e interpretações das datas modifiquem-se ao longo do tempo e dependam do contexto político no qual se encontram, a calendarização das mesmas permite certa fixação de significados.
52A partir dos discursos proferidos e interpretados na etnografia inicial e a posterior comparação de duas outras iniciativas, nota-se uma constante atualização do passado; essa contínua “reciclagem” temporal – ligada, sobretudo, a pautas do presente que afetam Portugal na atualidade – mescla aproximações entre passado, presente e futuro e acaba por atuar como forma de combate a novas dinâmicas políticas do mundo de hoje. O internacional toca o nacional utilizando este passado como referência; pontes entre regimes temporais distintos se formam, quase que em uma sobreposição de temporalidades em um mesmo espaço.
53Por fim, o material aparece aqui como um instrumento corriqueiro nos processos de memorialização, mantendo tradições memoriais passadas e protagonizando uma série de iniciativas no âmbito das comemorações do 50º aniversário da Revolução. Assinalar o espaço, permitir uma ação duradoura e a apropriação dos símbolos por parte das pessoas unem aqui as três iniciativas analisadas e servem como base para pensarmos nas práticas comemorativas na atualidade.