1Este texto questiona as interações entre o 25 de Abril e a nação portuguesa, particularmente a partir de um ponto de vista político e ideológico, destacando-se neste artigo a ideologia nacionalista e as suas mobilizações políticas do passado que diz respeito ao 25 de Abril. Neste âmbito, o aspeto da Revolução Portuguesa que se procura realçar é a articulação da constituição de um novo campo de referência político e ideológico resultante de uma rutura revolucionária e a reorganização de narrativas sobre o passado que a acompanha e que inclui, como fator fundamental, a descolonização. Assim, reconhecendo que o passado nunca está determinado, a rutura revolucionária introduz também uma reorganização de narrativas sobre o passado. Perante a quebra de uma consistência narrativa onde a situação política anterior à revolução se inscreveria naturalmente, é interessante notar a reorganização das narrativas históricas também sobre o passado colonial, partindo da constatação de que a descolonização assume um papel fundamental na Revolução Portuguesa que introduz também a alteração de uma identidade portuguesa. Tendo em atenção a interrogação acerca da mudança da imagem da nação resultante do 25 de Abril, será, em primeiro lugar, realçado o seu caráter de rutura e, portanto, de reconfiguração no âmbito do imaginário nacional e das narrativas históricas sobre o passado.
2Nesse âmbito, começar-se-á por reconhecer uma forma distinta de olhar para o passado ditatorial e para o passado colonial na atualidade – apesar de o 25 de Abril ter significado uma rutura com ambos. Uma vez questionada a rutura com o passado colonial e com a forma como tal dominação se procurou confundir com a própria identidade nacional, verificar-se-á como se refletem os temas nacionalistas acerca deste passado, particularmente as memórias herdeiras do nacionalismo acerca da descolonização, na nova extrema-direita. A centralidade que esses temas adquirem nesta suscitou um olhar à reorganização de narrativas sobre o passado imperial após uma rutura como o 25 de Abril neste texto escrito no seu 50º aniversário.
3Assinalando a importância que o passado imperial assumiu no imaginário nacional, partir-se-á da afirmação de Maria Manuela Cruzeiro de que “é sob o signo da crise da identidade nacional que se desenvolve a atividade política a partir de 76” (Cruzeiro 2011: 126), sendo que a origem da democracia portuguesa assinala também uma “redefinição da imagem da nação” (Vakil 2006: 10). Esta redefinição que se desenvolverá em torno da imagem da nação está conectada não só ao marco territorial como também a reconfigurações da memória e das narrativas históricas que acompanham uma rutura como a transição democrática portuguesa. Esta rutura refletirá uma “mudança cultural” (Fishman 2023: 255) no pós-25 de Abril também neste aspeto, sendo que “a memória do 25 de Abril foi profundamente integrada na cultura popular e na conceção de si mesmo enquanto país” (Fishman 2023: 267). Assim, perante o objetivo assinalado nesta contribuição para pensar sobre o 25 de Abril, é fundamental assinalar que “deste processo histórico resultou uma redefinição radical da identidade histórica e política de Portugal” (Loff 2006: 189-190), onde se incluem também disputas em torno da memória particularmente no que diz respeito à descolonização.
4Tendo em atenção este processo histórico, a crise do Estado que caracteriza e dá singularidade à transição democrática portuguesa forneceu em 1974 e 1975 a oportunidade para reações ao passado. Neste âmbito, é relevante assinalar a existência de uma estrutura de oportunidade surgida num contexto revolucionário para essa reação e o facto de o fim da ditadura estar ligado à rejeição da continuação da Guerra Colonial também num contexto em que a crítica à guerra legitima o anticolonialismo, o qual se inscreve desta forma na linguagem democrática portuguesa. Assim, sendo a Guerra Colonial um fator fundamental para o acontecimento da Revolução Portuguesa e reconhecida como parte da natureza da democratização, a própria Constituição da República Portuguesa (1976) realça que “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos” (Artigo 7º). Esta afirmação é articulada com a própria rutura que o 25 de Abril simboliza e leva a cabo, sendo que “libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa” (Constituição da República Portuguesa: Preâmbulo).
- 1 Tradução da minha autoria assim como as seguintes.
5Perante esta rutura, tendo em atenção o enquadramento político em articulação com a inscrição do anticolonialismo na Constituição da República Portuguesa em 1976, “não houve no pós-25 de Abril correntes políticas organizadas a oporem-se total e publicamente à descolonização” (Reis 2017: 86), sendo neste âmbito importante reconhecer também o anticolonialismo referido já que, como afirma António Costa Pinto, “durante a fase inicial da Transição em Portugal, a descolonização foi acompanhada por um forte discurso anticolonial. Até a direita política foi ‘forçada’ a não se opor à descolonização” (Pinto 2023)1. Porém, é não pode esquecer-se neste texto, o qual procura também contribuir para a compreensão da herança do nacionalismo nestes processos de rememoração, que o colonialismo constituía uma parte essencial do nacionalismo português sendo que “o núcleo do nacionalismo português, o império multicontinental, no qual a ideologia da extrema-direita se havia baseado até ao final dos anos 70 foi irreversivelmente destruído” (Pinto 1995: 120). Realçando então não só a ideologia nacionalista portuguesa como também a sua articulação com o radicalismo de direita, durante a Revolução Portuguesa foi “testemunho da resiliência das ideologias, a defesa da integração de um Portugal dito pluricontinental […] entre uma franja de ultranacionalistas” (Reis 2017: 83) que se mobilizou politicamente durante a Revolução em torno de tal ligação de Portugal ao Ultramar, a qual foi reconfigurada e reavaliada no Portugal democrático. Esta ligação merece também ser analisada no pós-25 de Abril inclusive no âmbito das mobilizações políticas do passado em articulação com o nacionalismo, sendo que, já em democracia, “temas clássicos da mitologia nacionalista lusitana como os Descobrimentos ou o ‘chamamento atlântico’ herdados do império colonial […] foram invocados para legitimar um novo nacionalismo conservador” (Pinto 1995: 120). Este tipo de nacionalismo configurado por um radicalismo de direita e definido por Jaime Nogueira Pinto como um “Nacionalismo concebido como uma doutrina política em que o Estado-Nação é […] o primeiro valor a preservar e a defender” (Pinto 1981: 11, cit. em Pinto 1995: 120) não foi então capaz de ser articulado e mobilizado por um radicalismo de direita em torno a ressentimentos da descolonização ou sentimentos de crise da identidade nacional, sendo que, nesse âmbito, será essencial realçar a popularidade da integração europeia.
6No entanto, apesar da integração europeia, o Império não terá deixado de ser visto como algo complementar à identidade portuguesa mesmo fora desse espaço político do nacionalismo. Além da importância das narrativas do Império na configuração do tema da grandeza histórica nacional, tendo em atenção a relação entre a identidade nacional e o passado, verificar-se-á uma conversão desta História em herança estabelecida como parte da cultura nacional portuguesa baseada também numa memória coletiva – a partir da qual se define – onde se inserem os Descobrimentos. Segundo Eduardo Lourenço, teria existido uma incapacidade de encarar frontalmente a situação colonial e, concretamente, questionar o verdadeiro significado da descolonização em Portugal, cujo resultado seria o de que, “de povo colonizador por excelência, multiespacial e racial, passámos a nação criadora de nações” (Lourenço 2014: 280), permanecendo o Império como imaginário complementar da identidade nacional. A existência de uma rutura que se inscreve numa nova identidade nacional coexistirá então com essa incapacidade e rearticulação cuja compreensão exige o reconhecimento da forte ligação entre Império e nação portuguesa nas narrativas históricas nacionais. A importância de tal ligação nessas narrativas foi precisamente constatada por Sérgio Campos Matos nas quais se concebeu um “caráter nacional forjado” em articulação com a permanência de “um grande império colonial” (Matos 2010: 366). Apesar da incapacidade de nos questionarmos acerca do colonialismo referida por Eduardo Lourenço, o Império suscitou debate durante a sua história e suscita também debate cinquenta anos depois da descolonização, surgindo hoje como ponto importante nas mobilizações nacionalistas da nova extrema-direita.
7Apesar de uma forte atitude crítica assumida por setores da direita no pós-25 de Abril em torno da descolonização procurando inclusive uma mobilização nacionalista direcionada sobretudo a retornados ou direcionada a um suposto sentimento de crise da identidade nacional perante uma integração na Europa que suscitaria uma defesa identitária, não se alcançou sucesso nesse tipo de mobilizações, nem na rearticulação de um nacionalismo conservador em torno a esse sentimento. De facto, após a descolonização, a adesão de Portugal à Europa consolidou-se na opinião pública como parte fundamental do futuro da nação portuguesa. Neste âmbito, deve assinalar-se que não houve na nova extrema-direita em Portugal uma apresentação do partido Chega como contrário à adesão europeia nem uma reafirmação de um espaço imperial ou lusófono em oposição à Europa. Verificar-se-á, sim, uma forte reivindicação das glórias ou da grandeza do passado colonial identificado com a nação portuguesa que se enquadra no domínio das mobilizações políticas onde memórias herdeiras do nacionalismo – particularmente acerca da descolonização – assumirão um papel importante.
8Tendo em atenção a mobilização do passado, a invocação e readaptação de temas nacionalistas ocorrerá tendo por base um importante contraste na reorganização de narrativas sobre o passado no pós-25 de Abril uma vez que, apesar de a democratização e a descolonização serem interdependentes, verificar-se-á um contraste na forma de lidar com o passado autoritário e o passado colonial. Apesar da estrutura de oportunidades presente na conjuntura revolucionária, a conjugação entre a memória antiautoritária e anticolonial revelará alguma fragilidade. Nesse âmbito – de forma distinta ao consenso democrático na rejeição do passado autoritário inscrita na legitimidade democrática herdeira de uma rutura com o passado que o 25 de Abril efetua e simboliza – a descolonização tem sido “apontada como o aspeto ‘menos positivo’ da Revolução em inquéritos realizados desde o final da década de 70” (Radcliff et al. 2023). Assim, além das descrições de défices de rememoração acerca da guerra colonial e da descolonização, existirá menos consenso sobre desse tema do que a rejeição da situação política autoritária que antecedeu a rutura, tornando-o mais suscetível ao uso político da memória. Apesar da crítica à guerra ter legitimado o anticolonialismo inscrito na Constituição, o facto de os militares terem sido responsáveis pela mudança política poderia também implicar uma situação propícia à desarticulação da memória da democratização e da luta anticolonial. Assim, além de as memórias de retornados e ex-combatentes terem marcado sociedade portuguesa e a memória coletiva nacional, constata-se a ausência de uma estrutura de oportunidade para levar a cabo um julgamento claro acerca da guerra que a inscrevesse de forma clara numa nova narrativa.
9Ao olhar para esta reorganização das narrativas, destaca-se o contraste entre o passado autoritário e o passado colonial e, partindo desse enquadramento, o próprio legado do império colonial ao pensar no processo de rememoração da guerra colonial e da descolonização. Assim, apesar da inscrição do anticolonialismo na linguagem democrática portuguesa expressa na Constituição, é necessário ter em atenção o processo de rememoração que, “em relação à evocação do passado colonial” permitirá constatar que “as referências a figuras e eventos que o evocam explicitamente permanecem inalteradas, ou foram até objeto de revalidação positiva no período democrático (Fytili & Cardina 2023).
10O líder do partido Chega, André Ventura, declarou o seu “orgulho na nossa gloriosa caminhada pelo mundo” (Ventura 2021a), e assumiu reivindicações típicas do nacional-populismo como a de que é “a voz do património dos portugueses de bem e trago comigo todas as histórias de Portugal” (Ventura 2021b). Deste modo, André Ventura procurou também incluir na sua retórica a existência de uma “simbiose perfeita” entre o partido e a nação ao afirmar que “amar Portugal e o Chega tornou-se quase inquebrável” (Ventura 2021c). Afirmando-se aqui esta importância em estabelecer uma ligação entre as mobilizações nacionalistas sobre o passado e os objetivos políticos deste espaço ideológico representado pelo Chega, o seu próprio ideólogo e figura intelectual Gabriel Mithá Ribeiro, procura acrescentar que o partido “existe também para instigar nos Portugueses a ambição de restaurar a dignidade do passado secular do país” (Ribeiro 2020a). No respeitante a um passado que estaria então sujeito a debate como o passado colonial, criticou a existência de uma suposta atual tentativa de “adulteração do sentido do passado histórico português por via do apagamento da sua dimensão positiva (a riqueza do legado civilizacional transmitido a outros povos)” (Ribeiro 2021a). Nesse âmbito, afirmando proteger a própria identidade nacional portuguesa através da dignificação da história colonial, Mithá Ribeiro, considerou que um português “protege a dignidade […] da sua identidade nacional sempre que recusar utilizar a palavra «colonialismo»” (Ribeiro 2020b), vista por este espaço político como um termo que lança sobre o passado imperial uma conotação negativa à qual se procura contrapor uma reivindicação desse passado histórico nacional pelo próprio partido.
11Assim, “a lógica subjacente à nostalgia por um passado grandioso e celebrações do nacionalismo, ou a crença no caráter excecional do colonialismo português ainda intervêm fortemente em debates sobre o passado colonial” (Cardina 2024: 25). Deste modo, a retórica de grandeza nacional do passado persiste aliada a narrativas sobre o Império e à ideia de singularidade nacional onde este se insere também no âmbito das lutas políticas ao contrário do passado autoritário, o qual está menos presente e é menos mobilizado politicamente. Articulando tais mobilizações políticas, 50 anos depois, com a Revolução Portuguesa e a sua reconfiguração da identidade nacional e das narrativas sobre o passado, procuro contribuir para o estudo do 25 de Abril realçando também o nacionalismo português ao constatar o seu poder mobilizador nas lutas políticas sobre o passado democratizador onde se inscreve a descolonização.
12Neste âmbito, reconhecendo a importância da constituição de narrativas históricas na ideologia nacionalista, realça-se também a “narrativa identitária da nação portuguesa, fundada por grande parte na tradição imperial” (Alexandre 2006: 36). No entanto, a articulação da questão imperial ou colonial com a própria nação não é exclusiva do caso português, inscrevendo-se no enquadramento descrito pelo teórico do nacionalismo Siniša Malešević segundo o qual as dimensões “imperial e nacional tendiam a coincidir uma vez que a expansão imperial reforçava a legitimidade nacional” (Malešević 2017: 13), destacando então também a existência de mecanismos que facilitam a articulação do conceito de Império com o de Estado-Nação, ultrapassando uma relação de sequência lógica entre os dois. Tal relação adquire a forma de um reforço ideológico da própria nação, clarificando a persistência de narrativas históricas que revelam a herança do nacionalismo português no âmbito do passado colonial e da “relação estreita que mantém com o problema central da identidade” (Alexandre 1995: 40). Observando tal reforço no nacionalismo português mesmo após a descolonização, é importante ter em conta que a produção ideológica nacional acompanhou o desenvolvimento do Império em África. Remontando ao principal século da produção ideológica em torno da nação portuguesa,
durante todo o século XIX, mas sobretudo no seu último quartel, esteve sempre na questão colonial um dos pontos críticos do nacionalismo português, é em torno dela que, por grande parte, se pensa a identidade do país e se refaz a sua memória, se traçam os caminhos a percorrer (Alexandre 1996: 195).
13É fundamental assinalar a configuração da identidade através da memória, realçando que a conexão entre passado, presente e futuro é um elemento importante no estabelecimento de uma identificação subjetiva particular baseada em memórias de acontecimentos de um passado coletivo que se insere na afirmação e articulação de uma identidade nacional que estaria expressa na história. Nesta articulação memorialística, salienta-se a importância do “império lusitano, celebrado por sucessivos regimes políticos desde o século XIX como um pilar inegociável da ‘identidade’ e soberania nacionais” (Rosas et al. 2017: 7), presente em narrativas que ultrapassam o âmbito da situação com a qual o 25 de Abril rompe e as quais se articulam com a herança e presença da ideologia nacionalista. Esta herança ultrapassa então a importância que lhe foi atribuída pelo Estado Novo ainda que nele se verifique uma acrescida nacionalização do Império e a introdução tardia de um enquadramento lusotropicalista que é relevante.
14Encarando o mito do lusotropicalismo como um enquadramento do orgulho histórico nacional, a sua importância e persistência revela-se justamente no âmbito do tema nacionalista da afirmação de uma singularidade nacional. Ou seja, em todas as narrativas históricas que formam parte da produção ideológica nacionalista, será fundamental assinalar o destaque à afirmação de uma continuidade histórica em torno do ponto orientador do conceito de nação como é típico de uma narrativa nacionalista que, no caso português, não só inclui o Império como o destaca como fonte de singularidade nacional. É no âmbito de tal singularidade que tem interesse destacar a persistência do lusotropicalismo. Para a compreender, é necessário considerar o “peso da ideologia que durante décadas marcou o tema [colonial], subordinando a produção nesta área a preocupações de ordem política, tendentes a conformar a realidade com a imagem da «missão civilizadora» de Portugal no mundo que se procurava inculcar” (Alexandre 2000: 7). O que se deve realçar no lusotropicalismo é, então, também a sua associação a uma singularidade histórica que se inscreve nas narrativas sobre o passado produzidas em torno da ideia da nação e da essência nacional expressa na história. Assim, este mito articula-se com a produção do nacionalismo que concebe “um Eldorado longínquo, no qual se cumpriria o destino da nação” (Alexandre 1995: 40), sendo que “esse nacionalismo não deixa aliás de marcar o lusotropicalismo […] acentuando o papel do País como sujeito de um processo civilizacional” (Alexandre 1995: 49). A própria afirmação da nação como um sujeito próprio liga-se então a um processo civilizacional articulado com a mitologia do destino nacional que é definido também em torno do Império.
15Reconhecendo, portanto, que o Império se constitui simultaneamente como fonte de singularidade e fonte de orgulho nacionais, procura-se aqui destacar a relação entre identidade nacional e império, reconhecendo que, “para setores significantes da população, traços essenciais do imaginário nacional permaneceriam ligados a mitologias ainda operativas e conjugadas com base num sujeito coletivo” (Cardina 2024: 24), sendo que este imaginário articulado com a mitologia imperial sustentará também as mobilizações nacionalistas sobre o passado. Assim, esta interação entre o nacionalismo e a sua herança materializa-se também em memórias sobre o passado imperial ou colonial e a descolonização no pós-25 de Abril e no seu uso político por parte da nova extrema-direita.
16Deste modo, persiste a existência de memórias sobre o passado do 25 de Abril e da descolonização que são herdeiras da ideologia do nacionalismo, mas que não se separam da inscrição de uma rutura na estrutura na qual a política portuguesa opera e no próprio imaginário nacional provocada pelo 25 de Abril. Assim, esta persistência deve ser vista também através das lutas políticas do passado que ocorrem após um processo de rutura que se inscreve na memória coletiva, entendida enquanto atualização intersubjetiva do passado, a partir da qual se estabelecem rememorações e que serve como enquadramento destas. Neste enquadramento foi realçada a particularidade da reorganização de narrativas no pós-25 de Abril do passado colonial e nele insere-se também a ideologia nacionalista presente em todas as sociedades modernas e a sua importante relação com o passado através da constituição de narrativas históricas próprias. No âmbito da articulação de tais narrativas com as mobilizações políticas em torno do passado, Miguel Bandeira Jerónimo havia notado em 2016 o facto de as conceções do “passado imperial e colonial […] estarem umbilicalmente ligadas a debates sobre a identidade nacional” (Jerónimo 2016: 63), sendo que “os ‘ecos do império’ […] são elementos centrais nas lutas políticas contemporâneas”, concretamente, as suas “múltiplas modalidades de apropriação, representação e uso instrumental” (Jerónimo 2016: 64). Reconhecendo a ligação entre esse passado e a identidade nacional, um partido como o Chega que se autocaracteriza como “nacionalista” (Chega 2021), viria a integrar e reconfigurar também essas lutas políticas contemporâneas na sua ação. Por sua vez, em interação com a reorganização de narrativas antes retratada, e incorporando o poder mobilizador da identidade e do nacionalismo, o Chega é também capaz de reconhecer que o uso político da memória do passado colonial trata de narrativas e temas mais suscetíveis de alcançar sucesso do que a reivindicação do passado autoritário. Em contraposição com a presença destes temas na sua instrumentalização do passado para a deslegitimação da Revolução Portuguesa e da democracia que dela resultou, verifica-se a ausência de reivindicações claras da figura do ditador e do passado ditatorial ainda que adotem ideias de fundo como é o caso da utilização do slogan Deus, Pátria, Família, Trabalho readaptando o lema do Estado Novo Deus, Pátria, Família.
17Realçando o uso político da memória e a assinalada conjugação de mitologias em torno de um sujeito coletivo que permanece articulada com certos imaginários nacionais, constata-se neste partido a mobilização do “orgulho na nossa gloriosa caminhada pelo mundo” (Ventura 2021a). Nesse âmbito, é caracterizada pelo coordenador do gabinete de estudos do Chega e seu ideólogo com um percurso profissional como docente, Gabriel Mithá Ribeiro, como “auto-humilhação portuguesa” a aplicação de “conceitos e ideais como colonialismo” (Ribeiro 2021a) já que a expressão colonialismo seria uma imposição de uma conotação negativa sobre o papel do colonizador português. Afirmando como obrigação política o “dever de dignificar a história colonial”, assim como “o legado deixado em África” (Ribeiro 2020c), procura-se realçar a valorização do passado colonial. A revalorização do passado histórico nacional – assim articulado pelo Chega em associação com o passado colonial – foi um tema presente no pós-25 de Abril no enquadramento do radicalismo de direita, sendo que
o primeiro passo para a “renacionalização” do país, ou, noutros termos, para a sua moralização, passaria, para a Direita radical, pela reabilitação do passado histórico nacional, inclusive da bravura e da justiça com que as Forças Armadas Portuguesas se bateram em África pela defesa do império colonial (Madeira 2020: 530).
18Além da reivindicação nacionalista do passado colonial, a nova extrema-direita readaptará também esta temática presente no nacionalismo que o radicalismo de direita procurou configurar no pós-25 de Abril. Invocando a figura do ex-combatente na própria data de 25 de Abril, a nova extrema-direita procurará adicionalmente readaptar temas do radicalismo de direita nacionalista em associação a memórias deslegitimadoras da Revolução – perante uma instabilidade da memória coletiva nacional no respeitante à descolonização, onde se destaca a existência de memórias em conflito – em torno do seu objetivo de deslegitimação não só da Revolução como também da democracia que dela resultou. Nesse âmbito, em ocasiões de comemoração do 25 de Abril, o líder do partido Chega procura justamente argumentar que “se temos que recordar a Guerra Colonial, devíamos também hoje, por vergonha, recordar os milhares de ex-combatentes que continuam a ser destratados por um Estado que os trata como bandidos que esqueceram a sua história” (Ventura 2021d). Além da mobilização do passado histórico em articulação com a figura dos combatentes da guerra colonial, ao falar desta guerra – que seria legítima devido à “chacina que atingiu a minoria branca portuguesa no norte de Angola em 1961” (Ribeiro 2021b) –, realça-se também que “não é possível esconder, desvalorizar ou desculpar o que aconteceu a meio milhão de portugueses expulsos abrupta e violentamente de África em 1974, 1975 quando eram uma minoria racial e quando parte desses portugueses tinham nascido em África” (Ribeiro 2021b). Sendo a guerra colonial interpretada em articulação com a descolonização, destacam-se não só os combatentes no âmbito do passado histórico nacional como também o caráter negativo da forma como a descolonização ocorreu, responsabilizando o processo democratizador nas suas descrições das consequências negativas da descolonização.
19Assim, Gabriel Mithá Ribeiro recorre também ao tema dos retornados e destaca a existência de “pessoas e famílias simplesmente abandonadas a um destino que as destroçou” (Ribeiro 2020d), traçando descrições de sofrimento de portugueses em África em 1974-1975 que teria sido provocado pela Revolução. Ao realçar a memória da descolonização como fonte de deslegitimação da Revolução, o coordenador do gabinete de estudos do Chega culpabiliza o próprio sistema democrático – apelidado pelo Chega de III República, convertendo o regime autoritário que precedeu a democracia numa II República e, assim, diluindo a distinção entre ditadura e democracia – ao argumentar que tal sofrimento “seria improvável se os ideólogos fundadores da III República, ainda hoje influentes, não o tivessem instigado” (Ribeiro 2020d). Além de uma suposta instigação de um “martírio” pelos fundadores da democracia portuguesa, acusa-se “o regime” da “supressão desse martírio da memória social” (Ribeiro 2020d). Relacionando o processo de rememoração com a deslegitimação do próprio regime democrático, argumenta que “truncar a memória de indivíduos e povos é atentar contra a sua sanidade mental e, a partir daí, abrir autoestradas de alienação e mentira”, sendo “isso que melhor define a atual III República Portuguesa” (Ribeiro 2020e). Procura-se, assim, uma revalorização de memórias que no passado se associaram politicamente a retornados incorporadas no uso político da memória no âmbito da deslegitimação da Revolução Portuguesa.
20No respeitante à memória, após a descolonização, verificou-se uma articulação entre a narrativa “que vê na descolonização uma ‘traição’” e a que “se organiza à volta da experiência da perda” (Machaqueiro 2017: 234) que estarão presentes na constituição da descolonização como fonte de crítica à Revolução Portuguesa. Salientando que, como refere Manuel Loff, “o discurso que enuncia a condenação da descolonização é […] descrito a partir da perda […] até mesmo para os africanos” (Loff 2015: 55), é agora destacado também pelo partido Chega esse tema das consequências negativas, quer para os portugueses, quer para os africanos, nas narrativas produzidas acerca da descolonização. De acordo com Gabriel Mithá Ribeiro, “é ainda preciso incluir no que está em causa a dissimulação das pesadas responsabilidades morais do atual regime português” (Ribeiro 2020d), culpando o próprio regime democrático nascido do 25 de Abril por “milhões de mortos causados por guerras civis em Moçambique, Angola ou Guiné-Bissau que se sucederam à descolonização desastrosa, eufemisticamente rotulada de descolonização exemplar, com a consequente destruição social e económica daqueles países” (Ribeiro 2020d). Deste modo, destaca criticamente o papel negativo que teria tido “o atual regime português” em articulação com o tema da perda para os países africanos e afirma que a descolonização consistiu em “abandonar precipitada e desordenadamente” (Ribeiro 2020d) tais países. No respeitante ao tema do abandono, a sua presença foi constatada no pós-25 de Abril sob a forma de “uma denúncia da ‘entrega’ ou ‘abandono’ do ultramar” (Rosas et al. 2017: 8) que se manifesta também nas atuais mobilizações políticas do radicalismo de direita. No processo de rememoração associado a tais denúncias, em interação com o que foi retratado anteriormente, “muitos dos seus argumentos eram caucionados, e amplificados, pela imprensa conservadora mais militante do período pós-revolucionário, se bem que a direita com representação parlamentar tenha revelado alguma relutância em explorar esse filão, pelo menos de forma explícita” (Rosas et al. 2017: 8), constatando-se a readaptação de temas desse radicalismo de direita reconfigurado em torno da deslegitimação da democracia resultante da Revolução através da nova extrema-direita. Tal relutância não está presente no partido Chega que articula esse tema do abandono com as consequências negativas da descolonização, reconfigurando então as políticas do passado inclusive ao realçar o tema da entrega.
21Nesse âmbito, Diogo Pacheco de Amorim – que militou no Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), uma das organizações de extrema-direita durante a Revolução Portuguesa, e é atualmente deputado do Chega sendo um dos seus ideólogos – parte da visão segundo a qual “o que está de facto no centro da revolução do 25 de Abril é o ultramar português” (Amorim 2021) para dar ênfase ao tema da entrega do Ultramar. Assim, realça a dimensão internacional da guerra colonial e a configuração ideológica dessa dimensão que se teria sobreposto ao interesse nacional, evocando o tema da entrega em articulação com uma culpabilização dos comunistas, cuja presença e capacidade de ação teria sido reforçada devido a uma Revolução negativa para a nação portuguesa e os seus interesses. Realçando o contexto de transição democrática, Amorim afirma que “acabámos por perder a batalha. Como é que a perdemos? Pela intromissão do Partido Comunista Português principalmente […] nos oficiais e sargentos do exército e das forças armadas portuguesas” (Amorim 2021). Através de uma suposta intromissão comunista, Amorim procura descrever uma entrega do Ultramar a uma potência internacional como a União Soviética devido a parcialidades ideológicas sendo que “a partir daí o grosso da missão estava cumprido”, pois “sabiam à partida que não conseguiam tomar conta do país cá, mas entregaram […] o nosso Ultramar todo […] aos interesses da União Soviética” (Amorim 2021). Este tema da entrega articula-se então com a reorganização de narrativas tida aqui em consideração e o processo de rememoração acerca deste passado em torno do qual “a ideia de que aquilo que teve lugar nos diferentes territórios terá correspondido mais a uma fuga às responsabilidades, ou a uma parcialidade a favor de alguns dos grupos nacionalistas, do que a uma tentativa de organizar uma saída tão ‘honrosa’ quanto possível, revela uma resiliência assinalável” (Rosas et al. 2017: 11). Perante esta resiliência presente nas narrativas transmitidas pelo atual radicalismo de direita nacionalista e relativamente à qual se procurou contribuir para a sua compreensão neste artigo, constata-se a atual presença destes temas que procuram ser mobilizados de forma eficaz. No âmbito dessa mobilização política, Gabriel Mithá Ribeiro destaca a deslegitimação do próprio regime democrático, apelidado pelo partido de III República sendo que
não há como não admitir que os pilares da III República Portuguesa foram instituídos, em 1974-1975, em fundações que escondem cadáveres, sangue, sofrimento, miséria de meio milhão de portugueses dissimulando as sequelas trágicas da destruição abrupta e violenta de um império colonial que, por meio milénio, tinha dado sentido à identidade nacional portuguesa (Ribeiro 2020d).
22Reconhecendo a descolonização não só como uma fonte de deslegitimação da Revolução Portuguesa como também do próprio regime democrático, a memória da descolonização na extrema-direita relaciona-se expressamente com o nacionalismo português ao ser descrita como uma “destruição abrupta e violenta de um império colonial que, por meio milénio, tinha dado sentido à identidade nacional portuguesa” (Ribeiro 2020d). Indo ao encontro do que foi referido anteriormente – precisamente a articulação entre o passado colonial e a identidade nacional portuguesa – Rosas, Machaqueiro e Oliveira, ao considerar o “império lusitano celebrado por sucessivos regimes políticos desde o Século XIX como um pilar inegociável da ‘identidade’ e soberania nacionais”, destacam justamente a presença de “uma visão desencantada, se não mesma negativa, do modo como decorreu o desmantelamento do império lusitano” (Rosas et al. 2017: 7). É através deste enquadramento que se depreende também a constituição da descolonização como fonte de deslegitimação da Revolução Portuguesa, reconhecendo a herança nacionalista presente nestas memórias que o Chega procura recuperar politicamente.
23Realçando a interação entre a capacidade mobilizadora do espaço político da nova extrema-direita e a forma de olhar para este passado fortemente associado à identidade nacional, o correspondente processo de rememoração continua presente e em evolução. Este está, por sua vez, sujeito também ao uso político da memória pelo que estas mobilizações nacionalistas não só refletem este processo como também influem sobre ele, revelando rememorações representativas de um momento atual de ascensão de uma nova extrema-direita agora também em Portugal.
24Ainda que tenha existido produção ideológica em torno da descolonização no pós-25 de Abril – numa perspetiva de amputação nacional mesmo fora de setores conservadores como no caso de Eduardo Lourenço que falou também de uma “amputação” (Lourenço 2014: 249) que constituiu o “mais brutal traumatismo da História portuguesa” (Lourenço 2014: 252) – a ideia de “Finis Patriae” (Matos 2010: 381) que então esteve presente, como realçou bem Sérgio Campos Matos, não resultou numa rearticulação com sucesso de um nacionalismo conservador configurado por um radicalismo de direita. Tal como nesse fracasso se chama a atenção para o contexto de integração europeia que então se afirmava, 50 anos depois do 25 de Abril a Europa e Portugal passam por um momento em que um novo radicalismo de direita se afirma como opção política. Este momento influencia, por sua vez, também estes debates sobre o passado e a sua configuração em Portugal revela a afirmação de um nacionalismo próprio de um radicalismo de direita atualizado que não deixa de se apoiar numa reivindicação do passado colonial que agora se articula diretamente com uma mobilização política direcionada contra a Revolução Portuguesa e a democracia que dela resultou.
25Cabe então reconhecer que a reorganização de narrativas sobre o passado colonial no pós-25 de abril anteriormente referida surgirá apenas como condição de possibilidade para mobilizações nacionalistas no domínio do passado colonial, sendo fundamental reconhecer que o Chega recorre a uma argumentação que se enquadra numa memória política que não se pode confundir com uma memória de cariz nacional. Nesse âmbito, em interação também com a memória dos retornados destacados pelo Chega como vítimas do próprio regime democrático, Rui Pena Pires, Morgane Delaunay, João Peixoto – cujas contribuições merecem ser consultadas para distinguir esta memória política do rigor histórico presente no seu texto coletivo sobre o acolhimento dos retornados – esclarecem que “uma narrativa coletiva não emergiu a partir da experiência traumática da repatriação que fosse partilhada pelos retornados e pela população portuguesa em geral” (Pires et al. 2020: 170). Apesar de ter existido sucesso na sua integração na sociedade portuguesa com um número elevado de pessoas relativamente a casos como o francês, surgiram rememorações através das quais “consideraram a esquerda – e, em geral, todas as forças democráticas – responsáveis pela descolonização e pelas suas consequências” (Pires et al. 2020: 186). Reproduzindo precisamente este tema, o Chega readapta estas memórias aos seus objetivos políticos no âmbito de um novo radicalismo de direita. Trata-se, assim, de uma memória política – que não corresponde nem a uma memória nacional nem à verdade histórica – herdeira do nacionalismo e readaptada agora a este espaço político que assume como ponto relevante a reivindicação do Império. Em interação com o que foi exposto, este é um ponto importante no imaginário nacional – apesar da rutura revolucionária – em articulação com o combate político onde se enquadra este uso político da memória já verificado no pós-25 de Abril e que agora surge associada uma nova extrema-direita capaz de se afirmar como opção política na Europa.
26Neste âmbito, a memória dos retornados não deixou de marcar a memória coletiva portuguesa, apesar de revelar contradições com a linguagem democrática expressa na Constituição que resultou da rutura revolucionária portuguesa tal como assinalado, existindo uma interação entre essa contradição e a reutilização de temas dessa memória política adaptados aos objetivos políticos do atual radicalismo de direita, nomeadamente, a deslegitimação da Revolução Portuguesa e da democracia que dela resultou. É através deste enquadramento que se procurou assinalar que estamos perante memórias em conflito e que são hoje readaptadas ao conflito político da atualidade pelo que devem ser encaradas no domínio da memória política exteriores ao rigor histórico no âmbito de uma apropriação ou readaptação de temas deslegitimadores da Revolução Portuguesa inclusive através da invocação do Império. Em interação com essas invocações no Portugal pós-25 de Abril, um dos pensadores da identidade portuguesa, José Gil, conclui precisamente que “em Portugal, o debate sobre o passado colonial reanima velhos ressentimentos, com o fantasma de Salazar a legitimar forças nacionalistas de extrema-direita, nostálgicas do antigo Império” (Gil 2024). Ora, esta nostalgia está mais presente na nova extrema-direita do que as invocações de tal fantasma, o que se articula com a distinta reorganização de narrativas aqui retratadas decorrente da rutura ocorrida em 1974.
27Perante o caráter de memórias em conflito associado a esse passado do Império, Fernando Perlatto e Maria Inácia Rezola assinalam que o passado continua “a influenciar as disputas políticas após a redemocratização”, sendo que as memórias “construídas pelas gerações posteriores sobre esses períodos históricos nunca são consensuais” (Perlatto & Rezola 2023). Essa ausência de consenso deteta-se particularmente na descolonização, também pela sua relação com a identidade nacional como referido e suscita memórias em conflito organizadas de forma distinta da memória antiautoritária e que as torna suscetíveis à ativação política do passado tal como se verifica na nova extrema-direita. Essa suscetibilidade relaciona-se com a já referida perceção negativa da descolonização, ainda que “essa perceção nunca tenha chegado a pôr em xeque a legitimidade do 25 de Abril e do regime estabelecido em 1976” (Rosas et al. 2017: 7). Esse facto revela-se particularmente relevante perante rememorações representativas de um crescimento da nova extrema-direita, já que agora se conclui que estamos perante uma reconfiguração das dinâmicas das políticas do passado sobre o 25 de Abril, uma vez que o Chega coloca precisamente em causa a legitimidade do regime democrático a partir da transmissão de narrativas acerca da descolonização.
28No processo de rememoração referido, deteta-se então uma reconfiguração das políticas do passado, sendo importante notar a articulação de objetivos políticos com memórias que incluem o tema da perda, já assinalado, e em torno do qual se afirma que
em nome das vítimas cuja dignidade foi abandonada […] André Ventura e o CHEGA possuem toda a legitimidade para exigirem a refundação de um regime moral, cívica e, por isso mesmo, economicamente falido através da instituição pacífica e democrática da IV República Portuguesa (Ribeiro 2020e).
29Ao assinalar a deslegitimação do regime democrático através de memórias respeitantes à descolonização a partir das quais afirmam um objetivo político, o Chega procurará readaptar também os temas nacionalistas do Império. Assim, na sequência da argumentação referida, propõe-se “no futuro, homenagearmos a dignidade das vítimas desses momentos traumáticos através do Dia do Colono Português ou mesmo Dia do Martírio do Colono Português em África” (Ribeiro 2020e), realçando assim no processo de rememoração a importância de “perpetuar na memória coletiva o valor inestimável do legado civilizacional português que esses mesmos colonos deixaram no continente africano ou no Brasil que, para todo o sempre, projetará a dignidade de Portugal e dos Portugueses no mundo” (Ribeiro 2020e).
30Ao destacar os temas do orgulho e da valorização do passado colonial ao rememorar a descolonização, é revelada expressamente a herança nacionalista nessas memórias, sendo útil reconhecer a permanência de temas nacionalistas adaptados à atualidade sobre a qual procurarão projetar uma continuidade histórica nacional numa narrativa que concebe o 25 de Abril como uma rutura nefasta na situação política sobre a qual procuram atuar politicamente. O tema do passado colonial é então também evocado em articulação com o tema da rutura no âmbito do qual Gabriel Mithá Ribeiro procura afirmar um entendimento da “sociedade” como “uma associação entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer”, destacando como consequência que “os portugueses têm legitimidade para rejeitar a III República porque nasceu, em 1974, matando os mortos, ao humilhar a história secular de Portugal” (Ribeiro 2020f). Por conseguinte, a descolonização surge também como fonte de deslegitimação ao associar-se ao caráter de rutura que define a transição democrática portuguesa, o qual é destacado negativamente pelo Chega nas suas narrativas do passado. Gabriel Mithá Ribeiro destaca a própria “tradição revolucionária da III República Portuguesa” argumentando que “esta viveu e vive do incentivo aos nacionais e às suas instituições, assim como a terceiros, para destratarem o passado histórico de Portugal, do recente ao remoto” (Ribeiro 2020a).
31Assim, ao evidenciar o poder disruptivo inscrito na democratização portuguesa que “destruiu o valor do passado histórico” (Ribeiro 2020a), a eficácia do enquadramento nacionalista do atual radicalismo de direita – mobilizando a identidade nacional articulada com o passado imperial como identidade política – assentará também em visões do passado sob a forma de narrativas contrapostas à rutura e orientadas em torno da nação, sendo que o significado particular atribuído à descolonização é adquirido também através do realce à continuidade histórica nacional numa perspetiva nacionalista. Essa crítica da rutura histórica tem hoje importância nas atuais narrativas configuradas pelo radicalismo de direita sob a forma de um nacionalismo que realça justamente o passado colonial e a contestação em torno da descolonização. Ao reconhecer justamente que “controvérsias acerca do passado continuam a ser parte integral do antagonismo político” (Radcliff et al. 2023), procurou-se realçar esta dimensão do antagonismo político ao considerar a reorganização de narrativas em torno do 25 de Abril. Neste âmbito, destaca-se o objetivo político de instituir o que denominam IV República, o qual introduz uma reconfiguração nas políticas do passado ao inscrever-se nas narrativas segundo as quais “nas fundações dos pilares morais, cívicos e políticos da III República Portuguesa ficaram soterrados sem dignidade, até hoje, cadáveres, sangue, sofrimento, miséria, abandono e expropriações violentas de meio milhão de compatriotas portugueses, incluindo os nascidos em África” (Ribeiro 2020e). Destacando, assim, o tema da deslegitimação, surge a argumentação de que “se o regresso inevitável dessa verdade à consciência coletiva portuguesa não deslegitimar para todo o sempre o atual regime, mesmo o mais sanguinário regime da história passará a ser legítimo” (Ribeiro 2020e).
32Deste modo, a descolonização enquanto fonte de deslegitimação da Revolução Portuguesa é detetada agora num enquadramento de reconfiguração das políticas do passado que acompanha a introdução da nova extrema-direita no sistema político-partidário. Culpabilizando o próprio regime democrático nas narrativas que realçam o tema da perda nas memórias da descolonização, o coordenador do gabinete de estudos do Chega caracteriza o “legado à história universal do atual regime português” como “simplesmente desastroso, irresponsável, vergonhoso” (Ribeiro 2020d). Reafirmando a perda, tanto para os portugueses como para os africanos, realça o legado negativo da construção da democracia portuguesa e do nosso regime democrático ao destacar as “guerras civis geradas pela desordem politicamente induzida, nesses anos de 1974-1975, em Moçambique, Angola ou Guiné-Bissau” (Ribeiro 2020e). Assim, conclui que “foram tais os estragos legados pela III República Portuguesa […] que essa herança não pode simplesmente ser apagada da história” (Ribeiro 2020d), sendo necessária, para a própria nação portuguesa, a substituição desta democracia pelo que o partido Chega apelida de IV República, que resultaria numa nova Constituição livre da influência da Revolução Portuguesa e da sua reivindicação aberta de valores socialistas. Através do destaque a memórias críticas da descolonização, argumenta precisamente que “a defesa da IV República tem toda a legitimidade” (Ribeiro 2020d), revelando a importância de assinalar um enquadramento de reconfiguração das políticas do passado no qual os processos de rememoração, em articulação com os antagonismos políticos, se desenvolvem assentes numa reorganização de narrativas próprias de uma rutura e que se configuram de forma distintas no respeitante ao passado autoritário e colonial. Esta distinção manifesta-se na ativação política de temas do passado cujo estudo nos permite aprender não só sobre a reconfiguração dessa política, como também sobre a rutura que o 25 de Abril simboliza e a reorganização de narrativas correspondente.
33Nesta contribuição foi realçado o caráter de rutura da democratização portuguesa, considerando que a alteração da identidade nacional se fez com a democracia prescindindo de um antigo nacionalismo português, o qual, no entanto, se readapta no presente em articulação com memórias em conflito sobre estas alterações que caracterizam a Revolução Portuguesa que inclui como elemento fundamental a descolonização. Tendo em atenção o processo de rememoração, o objetivo deste artigo suscitou igualmente o reconhecimento de um contraste relativo ao passado ao realçar a reorganização de narrativas que acompanhou a rutura revolucionária. Assim, o caráter de rutura histórica que o 25 de Abril representa também ao nível de uma reorganização das narrativas sobre o passado histórico nacional - ou seja, da visão sobre ele – revelará um contraste na forma de olhar para o passado autoritário e o colonial. Neste âmbito, este artigo procura realçar não só essa reorganização como também a presença deste contraste nas mobilizações políticas em articulação com o nacionalismo português. Apesar do consenso democrático na crítica à natureza autoritária da ditadura, não é clara a existência de tal consenso na rejeição do passado colonial – concretamente, da forma como se procurou confundir tal dominação com a própria identidade nacional – quer pela reorganização de narrativas verificada no pós-25 de Abril, quer pela associação desse passado à identidade nacional portuguesa. Assim, existe interesse em realizar mais estudos de opinião sobre essa rejeição – inclusive entre os que não se identificam com o autoritarismo típico da ditadura – para conhecer o potencial das mobilizações deste passado aqui verificadas 50 anos depois da Revolução, inquirindo também sobre a legitimidade da guerra colonial. Tais conhecimentos sobre o 25 de Abril e a sua memória no seu 50º aniversário adquirem ainda mais relevância com a conclusão aqui exposta de que as disputas em torno desse passado se reconfiguram agora com o Chega através de uma crítica à Revolução e à própria democracia que dela resultou.
34Tendo reconhecido uma ligação entre o enquadramento político e os processos de rememoração, revelar-se-á que a descolonização é um tema que o radicalismo de direita corporizado agora pelo partido Chega procura polarizar com eficácia. Neste destacado reaparecimento do passado colonial sob forma mobilizadora no âmbito do uso político da memória, o contraste assinalado demonstra também a sua relevância perante a recente mobilização desse passado. Assim, o contraste entre a rememoração dos passados autoritário e colonial referido é revelado também na repetida presença de temas que sugerem a eficácia de um discurso sobre o passado que incide nas narrativas acerca do império colonial presentes no discurso do Chega quando se trata de rememorar o 25 de Abril. Através destes discursos, conclui-se que um tema importante de ativação política no respeitante ao passado é o do orgulho imperial e o da descolonização enquanto fonte de deslegitimação da Revolução Portuguesa, observando-se nesse sentido a reconfiguração das políticas do passado em conjugação com a modificação do sistema político-partidário no 50º aniversário da democratização portuguesa. No espaço político assinalado, surge então um uso político da memória em torno não só da deslegitimação da revolução, como do próprio regime democrático nascido do 25 de Abril através da transmissão de narrativas sobre o passado democratizador onde se destaca também a descolonização.
35O tema da descolonização revela-se fundamental para criticar o que o Chega apelida de III República, referindo-se à democracia portuguesa nascida do 25 de Abril, ainda que no pós-25 de Abril a integração desse passado colonial no discurso do radicalismo de direita não tenha revelado sucesso na rearticulação de um nacionalismo conservador. No 50º aniversário da democracia, o Chega é agora capaz de readaptar temas do passado no âmbito dos seus objetivos políticos no domínio do uso político da memória, cujo sucesso deverá ser questionado em futuros trabalhos que lidem também com sondagens e opinião pública acerca da memória da descolonização e do passado colonial. Reconhecendo a presença atual das lutas políticas contemporâneas em torno desse passado, onde os processos de rememoração são também representativos de um momento de afirmação de uma nova extrema-direita, revela-se pertinente realçar a ativação destes temas aos quais é atribuída uma importância que ultrapassa as descrições de défices de rememoração acerca da questão colonial, ao mesmo tempo que se associa a tais descrições, na medida em que é útil também realçar a distinta reorganização de narrativas sobre o passado autoritário e o passado colonial. Ainda que a rejeição desses passados esteja inscrita na linguagem democrática presente na Constituição da República Portuguesa, o pós-25 de Abril revelará a herança das narrativas nacionalistas em contradição com a linguagem democrática afirmada na Constituição, verificando-se a mobilização política dessas contradições contra a própria democracia.
36Por sua vez, não se pode esquecer a inscrição do Império na cultura nacional reconfigurada em articulação com uma adesão à Europa como ponto complementar da própria identidade nacional, sendo que, ao contrário da extrema-direita que precede o partido Chega em Portugal – concretamente o caso do partido Ergue-te sempre crítico com a UE apesar de não defender uma saída imediata neste momento –, este novo partido nunca se apresentou como contrário à adesão europeia, ainda que se assuma agora como crítico da atual configuração da União Europeia numa linha semelhante aos partidos da nova extrema-direita europeia, reivindicando igualmente uma Europa de nações soberanas nas quais se incluiria a nação Portuguesa. Nesse âmbito político, a revalorização memorialística assinalada insere-se também numa das importantes vertentes da nova extrema-direita – a da batalha cultural, onde o passado de rutura assume importância.
37Reconhecendo que o contraste memorialístico que caracteriza a configuração democrática portuguesa pós-25 de Abril se reflete nas próprias mobilizações nacionalistas atuais, os temas identificados revelam, não uma cópia, mas sim uma revalorização de memórias e uma readaptação política no presente. Particularmente, num momento em que os debates sobre o passado têm adquirido importância também pelo aparecimento de um radicalismo de direita que reconhece a eficácia de narrativas nacionalistas e leva a cabo uma mobilização do passado colonial. Este é um passado suscetível ao uso político da memória e estas mobilizações nacionalistas não só refletem este processo como também influem sobre ele, suscitando interesse em futuros estudos sobre o impacto da nova extrema-direita nesta rememoração. Ao realçar a existência de rememorações representativas de um momento de afirmação de uma nova extrema-direita, deve esclarecer-se que é precipitado considerar que existe um esquecimento do 25 de Abril ou afirmar que a memória do 25 de Abril tenha perdido força, devendo-se sim reconhecer que o passado nunca está determinado e que a sua interpretação continua em disputa, nomeadamente na atribuição de significado à Revolução Portuguesa. Não deve, no entanto, esquecer-se que o seu poder disruptivo – que o radicalismo de direita pretende diluir – modificou de facto a nação portuguesa e que o 25 de Abril se inscreve doravante na nossa cultura nacional.