- 1 Arquivo RTP, Encontro de Vasco Gonçalves e Alicia Alonso, consultado em 25 de março de 2024, https: (...)
1Quando os corpos aglutinados no palco fluíram contra a rigidez da dança clássica, sustentados por sonoridades pouco convencionais e uma cenografia moderna, mostraram-se rebeldes na sua maestria. Os bailarinos cubanos demarcavam-se do ballet tradicional para uma plateia que, naquela noite de 14 de maio de 1975, vivia uma experiência distinta: o BNC (Ballet Nacional de Cuba) fazia a sua primeira apresentação num palco do Portugal revolucionário. O simbolismo da chegada do grupo foi capturado pelas lentes da RTP (Rádio e Televisão de Portugal) no cumprimento entre a diretora Alicia Alonso, prima ballerina assoluta e ícone incontestável da cultura cubana, e o primeiro-ministro Vasco Gonçalves1. O momento não celebrava apenas a queda do regime ditatorial português em 25 de abril de 1974, mas a ebulição social que se havia revelado desde então.
- 2 Com uma trajetória profissional anterior à revolução cubana, Alonso abraçou-a completamente e torno (...)
- 3 Arquivo RTP, Memórias da Revolução: Ballet Nacional de Cuba em Portugal, consultado em 26 de abril (...)
2Consciente dos significados que carregava2, Alonso afirmou que a reação favorável dos portugueses à sua chegada “respondeu ao fato de que, durante muitos anos, me convidaram para dançar em Portugal e nunca fui. Então essa admiração… respondeu à minha posição revolucionária contra o fascismo que anteriormente oprimia o país” (Schwall 2021: 173). De norte a sul, os 84 membros da companhia cumpriram uma intensa agenda até o dia 31 de maio: realizaram apresentações, participaram de conversas com trabalhadores em fábricas, e Alonso, recebida pelo Presidente da República, o Primeiro-Ministro e membros do CR (Conselho da Revolução), foi condecorada pela Câmara Municipal de Lisboa e pela Universidade do Porto (Cuba en el Ballet, s.a. 1975)3.
- 4 De acordo com um folder do BNC consultado por Schwall (2021: 173), o ballet teria se apresentado pa (...)
3O BNC despediu-se com uma apresentação para 8 000 pessoas na zona industrial do Barreiro, no estádio da CUF (Companhia União Fabril)4. Em 1976, a revista Cuba en el Ballet (Cuba no Ballet) destacou as fotos desta despedida numa compilação de críticas internacionais sobre o ano anterior: com o punho no ar, Alicia Alonso fala para um microfone enquanto militares hasteiam a bandeira dos dois países perante uma plateia expressiva (Cuba en el Ballet, s.a. 1976). Neste mesmo ano, porém, os acontecimentos políticos no país europeu já não pareciam refletir a euforia daquelas imagens. Com o ocaso do fervor revolucionário, o contato entre portugueses e cubanos seria profundamente reconsiderado. O entusiasmo sem precedentes no PREC (Processo Revolucionário em Curso), entre 1974 e 1975, não teria repetição.
4Este artigo explora o encontro entre Portugal e Cuba durante estes dois anos. Com o suporte de fontes diplomáticas, militares, audiovisuais e da imprensa dos dois países, reconstitui os antecedentes de tais relações e identifica agentes que, dentro e fora do Estado, renovaram um interesse mútuo após o 25 de Abril, traduzido nas relações bilaterais e na circulação de informação, ideias e pessoas. Analisa, ainda, como o Verão Quente catalisou a aproximação entre o governo cubano e setores à esquerda do poder político-militar português, sugerindo que as crescentes tensões da política interna portuguesa e a independência angolana condicionaram os rumos deste encontro. Entendendo os processos revolucionários em Cuba e Portugal como dois paradigmas na história do século XX, este trabalho espera ampliar a discussão sobre os seus sentidos de revolução, democracia e grandes processos de transformação social.
5Quando, em 25 de abril de 1974, o golpe coordenado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) derrubou o Estado Novo português, a rápida e massiva reação popular deu o aval decisivo para a abertura de um processo revolucionário que envolveria distintas forças, atores e interesses (Rosas 2022). O árduo e central debate sobre o modelo político da democratização mobilizou os distintos atores do novo poder político-militar, mas também os movimentos sociais. Esta questão permeou a dimensão internacional do processo revolucionário, influenciando a construção de relações a nível estatal e não-estatal (Castaño 2015, Rezola 2012, Szobi 2017, Wagner 2006). Alguns setores à esquerda apostaram nos processos revolucionários do Terceiro Mundo como fontes de inspiração para uma condução criativa de grandes transformações sociais, balançando a discussão sobre o país que se queria construir (Narra 2023: 62, Oliveira 2022: 344-345). Foi nesta conjuntura que Cuba surgiu no horizonte político do PREC.
- 5 Arquivo RTP, Chegada ao Funchal de Fulgencio Batista Zaldívar, consultado em 19 de abril de 2024, h (...)
6O Estado Novo português havia buscado construir alguma presença diplomática na América Latina e, neste marco, foram formalizadas as relações diplomáticas com Cuba, existentes desde o final do século XIX (Gomes & Leite 2017: 33). Na altura do 25 de Abril, porém, os vínculos estavam estremecidos. Em 1959, o governo português concedeu asilo ao ditador cubano Fulgencio Batista no Funchal após o triunfo da revolução na ilha caribenha5, articulada pela guerrilha liderada por Fidel Castro com apoio de uma ampla frente política. Em 1969, durante a guerra de libertação na Guiné, o oficial cubano Pedro Peralta foi capturado pelas forças portuguesas enquanto prestava apoio ao PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
- 6 Nesta altura, já eram conhecidos alguns vínculos políticos e militares dos cubanos na África. O gov (...)
- 7 Arquivo Histórico Diplomático (AHD), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e A (...)
7Em 1972, com a condenação de Peralta a dez anos e um mês de prisão, além do pagamento de uma multa, cresceu a tensão entre os dois governos. Em setembro de 1973, Cuba reconheceu o PAIGC como representante legítimo do Estado independente da Guiné-Bissau (Laranjeiro 2019: 12-15)6. Neste mesmo mês, o primeiro-ministro cubano, Fidel Castro, não poupou o colonialismo português em um discurso crítico na IV Conferência dos Países Não-Alinhados, em Argel (Castro 1973). Em janeiro do decisivo ano de 1974, Portugal tentou negociar a aquisição de açúcar com os mercados de Cuba e do Brasil para colmatar o déficit de produção devido à Guerra Colonial, mas as entidades cubanas negaram a venda do produto “por motivos de ordem política”7.
- 8 Nota do Secretariado do Comité Central do PCP - Sobre o falecimento de Urbano Tavares Rodrigues, mi (...)
8As esquerdas portuguesas tampouco estavam alheias a Cuba: no início da década de 1960, o imaginário político de distintos setores foi permeado pela reafirmação da guerrilha como meio para alcançar a revolução (Cardina 2010: 225-226). Tal interesse levaria à realização de viagens, como a do oficial Fernando Queiroga em abril de 1959, em busca de apoio contra o regime salazarista, ou as de Urbano Tavares Rodrigues e José Manuel Tengarrinha (Farinha 1995: 94-95, Ribeiro 2013)8. Entre 1965 e 1966, o PCP (Partido Comunista Português) enviou seis militantes à ilha para treinamento militar, e parte deste grupo acabaria por romper com o partido para optar pela luta armada (Ferreira 2015: 58-59).
- 9 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Relações bilaterais de P (...)
9Pouco antes do 25 de Abril, entre 12 e 19 de março de 1974, o PCC (Partido Comunista de Cuba) recebeu uma delegação do PCP composta pelo secretário-geral, Álvaro Cunhal, o secretário do CC (Comitê Central), Joaquim Pires Jorge, e Ângelo Peres. Recebidos por membros relevantes do CC cubano – Carlos Rafael Rodríguez e Isidoro Malmierca, do secretariado, Rafael Polanco, segundo chefe do Departamento de Relações Exteriores, e Eloy Valdés, funcionário deste departamento –, também tiveram conversas oficiais com o primeiro-secretário do PCC, Fidel Castro, Blas Roca e Guillermo García. Deram entrevistas nas sedes da UJC (União de Jovens Comunistas) e FMC (Federação de Mulheres Cubanas), visitaram a CTC (Central de Trabalhadores de Cuba), a redação do jornal Granma, centros educacionais e de produção agropecuária, conheceram o plano de construção das moradias em Alamar e locais históricos9.
- 10 Castanheira (2016) menciona que Soares e Fafe encontraram Tengarrinha nesta viagem. De acordo com o (...)
10Contudo, a faísca cubana não provocava só entusiasmo: Mário Soares, acompanhado por José Fernandes Fafe, visitou o país clandestinamente – em 1963 de acordo com Fafe, 1964 para Soares10 – e, décadas depois, declarou que não ficou “particularmente impressionado”. Com auxílio de Luis Amado-Blanco, que havia desempenhado funções na embaixada cubana em Lisboa e no momento encontrava-se em Roma, entraram no país com passaportes falsos – Soares seria um jornalista esportivo brasileiro, de sobrenome Díaz – e, após alguma confusão com as identificações, foram acolhidos, mas sem muito entusiasmo. Chegaram a ouvir um discurso de Fidel, mas não tiveram contato com o líder. Esta viagem teria sido um elemento importante na pronunciada rejeição da revolução cubana pelo futuro líder do PS (Partido Socialista) (Castanheira 2016).
11No final desta década, emergiu uma linha crítica à revolução cubana dentro da esquerda portuguesa favorável à luta armada, por considerá-la alinhada ao revisionismo soviético (Ferreira 2015: 127). Embora sem apreender em profundidade o que estava em jogo nos processos internos da ilha, esta postura visualizava a superfície de uma questão fulcral: na passagem para a década de 1970, a mitologia inicial da revolução cubana, com armas empunhadas por jovens escondidos em serras num Caribe idílico, dividia lugar com o árduo desafio da construção de um Estado revolucionário (Hernández 2009: 51).
12Assim, quando os cravos vermelhos foram distribuídos entre uma multidão que legitimava o golpe militar contra a ditadura em Portugal e abria um processo revolucionário de futuro imprevisível, a revolução cubana já não era uma incógnita. Tendo afirmado o seu caminho à esquerda, porém, deparava-se com a complexa tarefa de afirmar a sua unidade política em uma conjuntura global adversa, sem comprometer a inventividade que lhe havia outorgado um enorme apelo no imaginário global sobre as revoluções.
- 11 Fundado em 1925 e com uma longa história entre a classe trabalhadora cubana, o PSP correspondia ao (...)
13Alguns marcos desta etapa foram a criação do PCC em 1965 e, pouco depois, a divulgação das divergências internas no partido com a “microfracción” de Aníbal Escalante, do extinto PSP (Partido Socialista Popular)11; a chamada Ofensiva Revolucionária em 1968, com a nacionalização de pequenas empresas e a centralização da economia; o exaustivo – e frustrado – investimento na produção açucareira, com a meta de dez milhões de toneladas para a safra de 1970; a aproximação à URSS e ao campo socialista com o ingresso no COMECON (Conselho para a Assistência Econômica Mútua) em 1972, que vincularia estruturalmente a economia cubana ao bloco (González 2018: 186-188).
- 12 Fornet observa que o termo nunca foi oficialmente adotado pelo governo como opção estética, mas alg (...)
- 13 Sobre o período, veja-se Fornet (2007) e Kapcia (2018). Hernández (2009) analisa antecedentes polít (...)
14Também ganhou forma uma tensão entre intelectuais e parte do oficialismo que, apostando num realismo socialista12, mobilizou “uma política cultural impondo-se por decreto”, segundo Ambrosio Fornet (2007: 15-16). A imagem de que a burocratização da revolução estava em curso foi reforçada com o mandato de Luis Pavón Tamayo no CNC (Conselho Nacional de Cultura) entre 1971 e 1976, período que ficaria conhecido como o quinquenio gris (quinquênio cinzento)13. Embora boa parte destes episódios respondessem a dilemas anteriores ao estreitamento formal de relações com a URSS e o campo socialista (González 2018, Kapcia 2018: 10-13), o acúmulo destes processos revirou as percepções externas sobre Cuba. Entre as esquerdas ocidentais houve uma cisão, em andamento desde o posicionamento do governo sobre a Primavera de Praga em 1968 e culminando no Caso Padilla, com a prisão do escritor em 1971 e a reação de intelectuais europeus e latino-americanos, até então simpáticos à revolução, que publicaram uma carta aberta a Fidel no jornal Le Monde (Fornet 2007: 13).
15Na segunda metade da década de 1970, a institucionalização da revolução procurou estabilizar o país. Se, em 1974, a visita de Brezhnev e o décimo quinto aniversário da queda de Batista marcaram um novo período na revolução, nas palavras de Raúl Castro (Yordanov 2024: 138), a realização do I Congresso do PCC em 1975 cimentou as bases desta etapa, com uma notável transformação nas condições materiais e nas estruturas organizacionais. Neste sentido, destacam-se a arquitetura constitucional do poder popular e a renovação do sistema das FAR (Forças Armadas Revolucionárias). A cultura política cubana conjugou-se entre uma articulação mais estreita com o campo socialista e a continuidade da retórica guerrilheirista da década anterior, que remontava à originalidade do projeto lançado em 1959 (Clayfield 2018, Kapcia 2018: 12-15).
- 14 Fenômenos como as ditaduras das Forças Armadas na América Latina, a queda do projeto de Salvador Al (...)
16Ao mesmo tempo, num momento em que era sensível o translado da Guerra Fria ao Terceiro Mundo, Cuba desempenhou um papel fundamental na articulação de uma virada tricontinental com espaços políticos alternativos. Tendo acompanhado a consolidação do Movimento Não-Alinhado desde 1961 (Vitalis 2013: 273), o país dedicou-se a conquistar um lugar proeminente nesta arena. Após articular instâncias como a Conferência Tricontinental e a OSPAAAL (Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina) na década de 1960, além de estreitar laços com os movimentos de libertação africanos, Cuba fortaleceu a sua imagem como uma revolução autêntica perante o Terceiro Mundo, dando um tom latino-americanista ao terceiro-mundismo, até então marcado pela articulação anticolonial asiática e árabe (Harmer & Álvarez 2021: 1-16, Parker 2018: 314-321)14.
- 15 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Portugal, El Nuevo Gobierno y sus (...)
17Foi neste cenário que os cubanos manifestaram interesse pelo processo português, que reacendeu a possibilidade revolucionária no continente europeu, uma inequívoca novidade disruptiva na geopolítica global. As primeiras impressões da diplomacia, em 29 de abril de 1974, viam com desconfiança a figura de Spínola na Junta de Salvação Nacional, entendendo que o general havia sido convocado pelo MFA por não haver outra figura de renome, e que entre estes militares coexistiam posições diversas que se desenvolveriam no futuro imediato. No entanto, as primeiras medidas tomadas pelo movimento foram celebradas15.
- 16 Ibid.
- 17 Sobre as três etapas do PREC, ver Rezola (2022: 50-51).
18Consideraram, porém, que havia uma intenção “claramente neocolonial” em relação às descolonizações africanas, seguindo a linha de Spínola. No âmbito das relações bilaterais, levantaram a hipótese de que um estreitamento poderia ocorrer através da mediação cubana com os movimentos de libertação africanos, cujas relações o governo português já conhecia “perfeitamente”16. A política colonial deveria ser especialmente acompanhada para que, a partir daí, houvesse uma maior aproximação. Efetivamente, esta questão ocupou boa parte da agenda política no início do PREC17, e requeria uma resposta urgente. Tendo sido um dos lemas centrais para a mobilização do MFA, a descolonização fortaleceria a legitimidade deste processo internamente – combatendo a grande resistência dos setores conservadores encabeçados por Spínola – e externamente, perante a pressão dos movimentos de libertação e da comunidade internacional.
- 18 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Actualidad Portuguesa, 2 de maio d (...)
- 19 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Resolução do Comité Central sobre (...)
- 20 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Portugal, El Nuevo Gobierno y sus (...)
19Os partidos e as suas lideranças também mereceram a atenção de Cuba. Mário Soares foi compreendido como uma figura-chave, podendo ocupar algum cargo relevante no futuro governo civil para recuperar o prestígio da social-democracia europeia, que estava “jogando também as suas cartas na situação portuguesa”18. Por sua vez, havia um canal de comunicação com o PCP: a título de exemplo, o MINREX (Ministério de Relações Exteriores) recebeu em maio um pedido de Álvaro Cunhal para que uma resolução do CC sobre a situação política fosse publicada na ilha19. No momento do 25 de Abril, porém, o partido comunista não era considerado forte, “produto das perseguições, delações, divisões e da propaganda anticomunista”20.
- 21 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Conversación sostenida por el comp (...)
20Neste momento inicial, figuras relevantes do MFA buscaram estreitar a comunicação com o governo cubano. Em encontro com Ángel Guerra no Palácio da Presidência, em 5 de maio, Melo Antunes teria conversado sobre as intenções políticas do movimento, a complexidade da questão colonial e as atividades de outros países contra o novo governo. Manifestando que o movimento – cujo programa redigiu – procurava estabelecer uma revolução democrática, considerava que Cuba poderia ajudar em questões relativas às relações internacionais, economia e polícia (que os cubanos compreenderam como contrainteligência)21.
- 22 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Relações bilaterais de P (...)
- 23 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Política interna e exter (...)
- 24 Arquivo RTP, Libertação do Capitão Pedro Peralta, consultado em 30 de abril de 2024, https://arquiv (...)
21Progressivamente, as aproximações oficiais ganharam lugar: a título de cortesia, o MNE (Ministério dos Negócios Estrangeiros) português começou a receber exemplares da Verde Olivo, revista oficial das FAR, e uma delegação presidida por Raúl Roa García, Ministro de Relações Exteriores cubano, passou por Lisboa em setembro. Estando num itinerário pela Europa a convite de distintos países, reuniu-se com o presidente Spínola – que lhe deixou uma impressão “algo exótica”22 – e outras autoridades23. No mesmo mês, em meio a manifestações de setores da esquerda radical nas ruas, o governo português libertou Pedro Peralta depois de um acordo com o PAIGC para trocar prisioneiros (Diário de Lisboa, s.a. 1974). Após uma passagem por Madrid, o oficial regressou ao seu país24.
22O programa inicial do MFA previa a gestão temporária do poder entre militares e civis, e a realização de eleições livres para constituição de um governo civil. Com a pressão de Spínola para reforçar os seus poderes presidenciais e adiar as eleições, o movimento ampliou a representação militar no II Governo Provisório (GP) para garantir o cumprimento do seu projeto, com Vasco Gonçalves como primeiro-ministro a partir de julho (Rezola 2022: 57-62). Em 28 de setembro de 1974, após a tentativa frustrada de Spínola e setores da direita para derrubar o governo convocando uma manifestação, abriu-se um segundo momento no PREC. Costa Gomes substituiu as funções de Spínola, que se demitiu, e Vasco Gonçalves continuou como primeiro-ministro no III GP.
- 25 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Portugal – Fracaso golpista de la (...)
23Na perspectiva cubana, o GP tinha a oportunidade de aproveitar o momento para impulsionar reformas essenciais e obter apoio popular, sem o qual poderia comprometer a sua existência no curto prazo. Havia condições para ocupar posições estratégicas nas esferas militar e civil, e para articular essas reformas num governo de posições ideológicas heterogêneas. No entanto, a equação cubana também considerava que a reação da direita e, principalmente, do imperialismo poderiam radicalizar o processo25. Efetivamente, a discussão sobre uma agenda socialista para a revolução cresceu neste cenário. Setores no poder político-militar e no plano civil defenderam a interpretação de que Portugal possuía mais semelhanças do que diferenças com o Terceiro Mundo (Narra 2023: 46-53). A construção de uma via socialista original faria, então, uma passagem mais intensa por Cuba.
24Em 1975, cresceram as expectativas sobre o futuro do país. O MFA assumiu a politização das Forças Armadas, institucionalizando-se no aparelho estatal com ampla aprovação pública das forças partidárias que compunham os governos provisórios. Enquanto isso, tais partidos procuraram superar as suas debilidades internas para potencializar a sua força. Com as eleições no horizonte próximo, as divergências cresciam, com ênfase na discrepância entre o PS e o PCP (Loff 2022: 76, Rezola 2022: 71-72 e 2017: 30-34). Fora da esfera estatal, os movimentos sociais intensificaram-se de maneira inédita, marcando presença na crescente convulsão política (Pinto 2013, Bermeo 1986).
- 26 ADN, SIPFA, Cuba, PT/ADN/SIPFA/049/0208/005; Arquivo RTP, Associação de Amizade Portugal-Cuba, cons (...)
- 27 A entrevista foi concedida quando Campino acompanhou a primeira delegação militar portuguesa em Cub (...)
- 28 A AAPC continua ativa atualmente e possui núcleos em Lisboa, Centro, Alentejo e Algarve. Durante o (...)
- 29 Alexandre Cabral publicou o livro Um Português em Cuba (1969), enquanto Rogério Paulo lançou Introd (...)
25Neste âmbito, a AAPC (Associação de Amizade Portugal-Cuba) destacou-se na difusão da imagem revolucionária cubana em Portugal e na aproximação entre os povos. Foi simbolicamente constituída em 26 de julho de 1974, por um grupo que mantinha relações com a embaixada cubana ainda no Estado Novo26. Em entrevista à revista Bohemia, o membro Joaquim Campino declarou que obtinham documentos sobre a ilha desde o começo dos anos 1960 através da embaixada, que também patrocinou viagens – ao regressar, escritores e jornalistas davam conferências clandestinas sobre as suas experiências, enquanto outros publicavam livros com as suas impressões (Sanchez 1975)27. De acordo com Campino, a AAPC contava com mais de 2 000 membros28. Estavam ativos nomes que já tinham alguma trajetória política, como o escritor Alexandre Cabral, o ator Rogério Paulo, o médico Ludgero Pinto Basto e o advogado Manuel João da Palma Carlos29.
- 30 Ibid. O grupo contava com 14 jovens coordenados pelo jornalista Manuel Alpedrinha, fundador da AAPC (...)
- 31 Arquivo RTP, Associação de Amizade Portugal-Cuba, consultado em 26 de abril de 2024, https://arquiv (...)
- 32 Adelante Portugal (CD, Cooperativa Toma Lá Disco, 1976). De acordo com a página da AAPC, Puebla ter (...)
- 33 Arquivo RTP, Homenagem a Nicolás Guillén, consultado em 26 de abril de 2024, https://arquivos.rtp.p (...)
- 34 Quem Somos – História da AAPC, consultado em 26 de abril de 2024, https://associacaoamizadeportugal (...)
26Ainda em 1974, a AAPC passou a promover viagens de grupos a Cuba, coordenando a participação de 15 pessoas na brigada internacional José Martí entre setembro e outubro30. Em 1975, foram organizadas iniciativas de dimensões notáveis: além da já citada visita do BNC, em janeiro inauguraram uma exposição de filmes e fotografias no Palácio Foz, com colaboração da FNAT e do Ministério da Comunicação Social, em comemoração ao XVI aniversário da revolução cubana (Narra 2023: 56); e realizaram a 1ª Semana de Cinema Cubano no Teatro da Trindade entre os dias 12 e 19, com as presenças do realizador Manuel Pérez e da atriz Eslinda Nuñez, rosto dos clássicos Lucía e Memorias del Subdesarrollo (Memórias do Subdesenvolvimento)31. A associação ainda recebeu visitas de outros ícones cubanos importantes, como o cantor Carlos Puebla, para a gravação do disco Adelante Portugal32; Nicolás Guillén, que recebeu uma homenagem organizada pela AAPC e o MFA no Teatro São Luís33; e Ana Maria Guevara, que visitou o espaço em outubro deste mesmo ano e trouxe memórias do seu irmão, o Che34.
27Neste ano, acentuou-se a demarcação entre a via revolucionária e a via eleitoral. A radicalização foi acelerada após uma tentativa de golpe mais voraz em 11 de março, novamente conduzida por Spínola e setores da direita que acabariam por fugir para a Espanha. O MFA criou o Conselho da Revolução (CR) como órgão central para a transição democrática, com amplos poderes. Legitimado pelos partidos políticos em pacto selado em abril, o CR impulsionou abertamente uma via socialista para a revolução, mobilizada por setores à esquerda ligados ao primeiro-ministro Vasco Gonçalves (Loff 2022: 77-85, Rezola 2022: 71-73). Foram decretadas as medidas mais profundas do PREC, como a nacionalização da banca e das companhias de seguros (Noronha 2018). Ao mesmo tempo, porém, os resultados das eleições legislativas complicaram a correlação de forças, com a vitória do PS em detrimento de outras alternativas mais à esquerda (Rezola 2017: 30-34, Rosas 2014: 177). No Verão Quente de 1975, as posições acirraram-se.
28Foi também neste momento que as relações com Cuba se intensificaram a nível estatal, desenvolvendo-se no quadro das “diplomacias paralelas” que caracterizaram o PREC (Rezola 2016: 30), como consequência da fragmentação do poder em distintas instâncias e agentes. Se ao MNE correspondia oficialmente a formulação e execução da política externa portuguesa – e o ministério até certo ponto procurou desenvolver uma agenda, com as figuras cruciais de Mário Soares e Melo Antunes encabeçando-o nos distintos GP –, fora do seu domínio outras figuras e organismos também avançaram nos contatos com o governo cubano, e essas instâncias se entrecruzaram em alguns momentos.
- 35 Centro de Gestión Documental del MINREX (CGD-MINREX), Expediente del Cro. Francisco Astray, Embajad (...)
- 36 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Evaluación de la política i (...)
29Os dois países designaram embaixadores para estreitar relações. O cubano Francisco Astray, encarregado de negócios em Lisboa desde 1972, foi promovido a embaixador em outubro de 1974. Considerado pelo MINREX como a figura mais preparada para o cargo, com boas relações com Cunhal, Soares, Melo Antunes, Vasco Gonçalves e outros ministros e militares, recebeu o beneplácito do governo português em dezembro35. Apesar da fragmentação do poder no PREC, o MNE não parece ter sido um entrave para a diplomacia cubana: em relatório interno, Astray avaliou que a nomeação de Melo Antunes reforçava a inclinação terceiro-mundista, assim como a política de descolonização iniciada por Soares36.
- 37 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Relações bilaterais de P (...)
- 38 A Revolução do 25 de Abril e a Diplomacia, Visto de Fora – Cuba, Beneplácito para Embajador de Port (...)
- 39 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Relações bilaterais de P (...)
30Por sua vez, a nomeação de José Fernandes Fafe como embaixador em Havana ilustra a coexistência de tendências no poder político-militar português. Nomeado por Mário Soares, seu amigo pessoal e companhia na sua única viagem a Cuba, assumiu o posto mantido pelo funcionário cubano Ramón Franqui Puig desde 1972, após a retirada do encarregado de negócios durante o caso Peralta (Castanheira 2016)37. Uma das “nomeações políticas” no MNE durante o PREC (Oliveira 2022: 341), era licenciado em Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e havia publicado, sob o pseudônimo de David Allport, a possível primeira biografia do Che Guevara (Soares 2017). Também mantinha boas relações com lideranças do PCC, como o vice-primeiro-ministro Carlos Rafael Rodríguez, e cultivava interesse pela história política cubana, como depreende-se dos seus relatórios políticos. Fafe recebeu o beneplácito do governo cubano em novembro de 197438, assumindo o cargo em 19 de fevereiro de 197539.
31Em 19 de março, Fafe observou as demonstrações favoráveis dos cubanos, que pagaram o espaço para a festa de despedida do secretário da Saúde português, o aluguel do carro que utilizou nos primeiros dias, e o convidaram para entrevistas na televisão sobre a institucionalização do MFA, o Programa de Política Econômica e Social e o frustrado golpe no 11 de março – antes dele, só o embaixador soviético e búlgaro teriam ido à televisão. Fafe teve encontros com os escritores Nicolás Guillén e Roberto Fernández Retamar, que ventilou a possibilidade de contar com portugueses no júri do renomado prêmio Casa de las Américas. O embaixador organizou, ainda, um jantar com Pedro Peralta, outros representantes de Cuba e um da Guiné-Bissau, procurando simbolizar “um corte com o passado”40.
- 41 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Relações bilaterais de P (...)
32Outro recurso fundamental para o estreitamento oficial entre os dois países foram as visitas de delegações. Em 7 de janeiro, a convite do Ministério da Saúde cubano, uma delegação encabeçada pelo Secretário de Saúde português, Carlos Cruz de Oliveira, viajou à ilha para conhecer a sede do ministério, hospitais, institutos e projetos de construção em Alamar. Para o Granma, Oliveira mencionou o objetivo de criar um serviço nacional de saúde e declarou que “o que mais me encanta desta viagem a Cuba – digo mais, mas tudo me encantou até agora e penso que será assim até a partida – é uma identidade de ideais e de realizações. Vocês têm dezasseis anos de trabalho e nós só nove meses. Mas na imagem de Cuba encontramos todos os nossos projetos”41.
- 42 Arquivo RTP, Missão comercial cubana desloca-se a Portugal, consultado em 26 de abril de 2024. http (...)
- 43 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Informe de la Misión a Port (...)
- 44 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Evaluación de la política i (...)
33No início de março, uma missão comercial com dezessete representantes da economia cubana esteve em Portugal para estudar possibilidades de intercâmbio comercial com o empresariado português42. Em Cuba, o MINCEX (Ministério do Comércio Exterior) elaborou um relatório pormenorizado sobre os contatos desenvolvidos43. A perspectiva geral era otimista, principalmente para a indústria naval, a pesca e o açúcar. De acordo com relatório do embaixador Astray, neste semestre a embaixada portuguesa teria recebido um conselheiro para a área comercial, e a embaixada cubana aumentou a equipe. Os países começaram a avançar na aprovação de um convênio cultural e um convênio de vistos44.
34Uma delegação portuguesa também viajou à ilha para estudar a questão dos esportes. Ao regressar, o crítico esportivo Arnaldo Pereira declarou à RTP que “Cuba, neste momento, sob o ponto de vista político, está numa fase muito adiantada do socialismo” e que “as coisas não se podem copiar mecanicamente, mas pode-se encarar a problemática, a filosofia, a política do esporte cubano como guia para ação aqui em Portugal também”. Para Pereira, a principal lição que a delegação tirou em Cuba – incluindo os seus participantes “menos politizados” – foi a necessidade urgente de avançar com o processo revolucionário também para resolver o problema dos esportes em Portugal45.
- 46 Manuscrito concedido por Eduardo Yasells em Havana, Cuba, com base em informações do seu diário de (...)
- 47 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Política interna portugu (...)
35Esta renovação de relações teve reflexo na imprensa de ambos países. Em maio de 1975, uma delegação de jornalistas cubanos percorreu Portugal, visitando distintas unidades militares e participando de conferências. Eduardo Yasells, diretor da revista das FAR, Verde Olivo, liderou o grupo formado por Juan Marrero (representando o Granma), Luis Báez (pela Bohemia), e Ricardo Sáenz (pelo Juventud Rebelde). Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho (Báez & Sáenz 1975), Costa Martins, Álvaro Cunhal e Dias Lourenço, diretor do jornal Avante!, foram entrevistados, visibilizando alinhamentos políticos que eram de interesse para Cuba46. Também se destaca a coluna sobre Portugal escrita por Lillian Lechuga na Bohemia, cobrindo as dinâmicas partidárias, as progressivas divisões no MFA, a fratura entre o Norte e o Sul, e manifestando uma crescente visão crítica sobre o PS47.
- 48 Arquivo RTP, Especial Eleições: Assembleia Constituinte – Parte III, consultado em 26 de abril de 2 (...)
36A edição especial da RTP sobre as aguardadas eleições constituintes de 1975, por sua vez, contou com uma entrevista a Enrique Colina, do ICAIC (Instituto Cubano da Arte e Indústria Cinematográficas). Em sua segunda visita ao país, o realizador e crítico denunciou que a imprensa internacional reforçava um temor equivocado sobre o PREC e que pretendia contrapor essa visão com um documentário sobre Portugal. Comentou que visitou a prisão em Peniche e entrevistou agentes da PIDE, comparando-os aos capangas do regime de Batista. Por fim, parabenizou a contundência do MFA e do povo ao reagir aos ataques contrarrevolucionários, ao que o jornalista Luís Filipe Costa respondeu “e nós sabemos que efetivamente Cuba está com Portugal, oxalá Portugal possa realmente triunfar como triunfou Cuba, estamos crentes que sim”48.
- 49 ADN, EMGFA. 5ª Divisão, Relações Internacionais, PT/ADN/EMGFA/5DIV/008/0023/008.
37Foi na esfera político-militar que estas relações atingiram a maior relevância. Em 27 de janeiro de 1975, o Chefe da 5ª Divisão do EMGFA (Estado-Maior-General das Forças Armadas), Robin de Andrade, solicitou à embaixada portuguesa em Havana informação sobre a institucionalização das FAR, com questões sobre a sua legislação regulamentar, a relação com a organização partidária e sindical, e o impacto da preparação ideológica dos seus elementos na disciplina e operacionalidade das Forças Armadas49. Criada em junho de 1974 para desenvolver as relações públicas no contexto de reorganização das Forças Armadas portuguesas, a 5ª Divisão ganhou relevância ao longo do PREC como uma estrutura voltada à comunicação política do MFA, ficando conotada com o gonçalvismo (Ribeiro 2014).
- 50 Com longa trajetória na luta antifascista, Varela Gomes esteve envolvido na criação da 5ª Divisão e (...)
- 51 ADN, EMGFA. 5ª Divisão, Aliança Povo-MFA: estrutura aprovada na generalidade na Assembleia do MFA d (...)
- 52 Tendo participado no assalto ao quartel Moncada, Montané foi um quadro relevante no PCC.
38Esta estrutura foi responsável por liderar a primeira delegação oficial do MFA a visitar Cuba, através do coronel Varela Gomes50. O convite teria partido do ICAP (Instituto Cubano de Amizade com os Povos), mas a viagem passou a ser planejada de perto por dirigentes do PCC com a inclusão dos membros do MFA, que pretendiam aproveitar a ocasião para explorar a metodologia e prática da formação ideológica nas FAR, além da organização da população nas tarefas de defesa da revolução. Composto ainda pelo major Fernando Seabra, os capitães Pessoa Guerreiro, Feio Cerveira e Jorge Golias, o marinheiro José Bruno e Joaquim Campino, da AAPC, o grupo celebrou o primeiro aniversário do 25 de Abril durante as comemorações do 1º de maio51. Na ocasião, a embaixada em Havana organizou uma recepção que contou com a presença de Fidel Castro e Jesús Montané52.
- 53 Regueiro foi uma figura relevante nas interações militares com países do campo socialista na década (...)
- 54 Arquivo RTP, Chegada da delegação do MFA de Cuba, consultado em 26 de abril de 2024, https://arquiv (...)
- 55 Arquivo RTP, Delegação do MFA regressa de Cuba, consultado em 26 de abril de 2024, https://arquivos (...)
39Os oficiais conheceram unidades militares, escolas, sistemas para o desenvolvimento rural e discursaram na Universidade de Havana. Em entrevista, Varela Gomes declarou que foram “submergidos em amabilidades e gentilezas” e recebidos “com extraordinária simpatia” pelas FAR e pela direção do PCC, além de terem contato com Raúl Castro, Fidel Castro e Senén Casas Regueiro, vice-primeiro-ministro e comandante de brigada das FAR53. Sob o ponto de vista das relações bilaterais, a visita “criava uma base qualitativamente diferente”54. Em Lisboa, a delegação fez um balanço da viagem num evento no Centro de Sociologia Militar, reportado no Noticiário Nacional. Diante de uma plateia cheia, discutiram as particularidades do processo cubano, a necessidade de planificação econômica e a relação entre a politização das FAR e a salvaguarda da situação revolucionária55.
- 56 ADN, EMGFA. 5ª Divisão, Aliança Povo-MFA: estrutura aprovada na generalidade na Assembleia do MFA d (...)
40Também foi elaborado um relatório interno sobre a missão, que deveria ser distribuído nas distintas unidades e estabelecimentos militares para suscitar estudos e debates. Verificando em Havana que os aspectos militares tinham recebido atenção especial, consideraram os resultados da viagem como “francamente positivos”, abrindo caminho para o estabelecimento de relações entre as FAR e o MFA “na base do respeito e admiração mútuas [sic], leal companheirismo, e identidade de pensamento quanto à existência de FA’s de alta capacidade combativa e preparação ideológica como condição prioritária para o triunfo da revolução”. Também avaliaram que, com Cuba como interlocutor para as camadas progressistas latino-americanas, o 25 de Abril e o “modelo português” poderiam consagrar-se na opinião pública militar e civil desta região56.
- 57 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Evaluación de la política i (...)
41No relatório, sugere-se que o CR (Conselho da Revolução) convide uma delegação do MINFAR (Ministério das Forças Armadas Revolucionárias) para receber uma homenagem em Portugal no dia 26 de julho, e que seja designado um adido militar para a embaixada em Havana após manifestação de interesse dos cubanos, que teriam apresentado Enrique Carreras Rolás – oficial que havia acompanhado a delegação durante a visita – como “futuro adido em Portugal… caso fosse julgado de interesse mútuo”. Não foi possível confirmar se o MFA enviou um adido militar a Havana, mas Rolás chegou a exercer funções em Lisboa. Esta nomeação antecipadamente planejada é um indicativo do interesse geoestratégico sobre Portugal. Rolás havia sido adido no Peru e tinha grande destaque na Força Aérea (Granma, s.a. 2014)57.
- 58 Arquivo RTP, Carlos Rafael Rodriguez no aeroporto de Lisboa, consultado em 26 de abril 2024, https: (...)
42Também em maio, o vice-primeiro-ministro Carlos Rafael Rodríguez fez uma passagem em Lisboa, tendo encontros com Vasco Gonçalves, Melo Antunes e Álvaro Cunhal. Em entrevista à RTP, mostrou-se satisfeito com a postura de Gonçalves perante a difícil conjuntura de distensão internacional. Após destacar o desafio da coexistência de regimes com distintos sistemas sociais num momento marcado por uma crise global e por vitórias como a que acabava de acontecer no Vietnam, manifestou que estas condições obrigavam “todos os protagonistas deste momento histórico do mundo a trabalhar com um grande sentido da realidade histórica [...]. Este sentido da necessidade de balancear os interesses nacionais com as responsabilidades internacionais está muito evidente em grandes figuras como o primeiro-ministro Vasco Gonçalves”58.
- 59 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Política interna e exter (...)
- 60 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Questões portuguesas – I (...)
43Em Portugal, mais organismos da estrutura estatal procuraram estudar as formas de organização cubanas em distintas esferas: além da circulação da revista Verde Olivo, em junho de 1975 o Gabinete de Planejamento do Ministério da Indústria e da Tecnologia sinalizou ao MNE que gostaria de receber a Revista Tecnológica, editada pelo Ministério da Indústria Básica de Cuba59. No mesmo mês, o tenente-coronel Manuel João Fajardo, chefe da 2ª divisão (1ª repartição) do EMGFA, solicitou com urgência informações sobre a legislação ou publicações acerca do serviço militar voluntário feminino em Cuba e Israel, com o objetivo de realizar estudos sobre o tema. Em setembro, o embaixador Fafe enviou exemplares da Gaceta Oficial de Cuba, enviando no mês seguinte o livro La Mujer Cubana Ahora (A Mulher Cubana Agora), de Margaret Randall, após constatar que o conteúdo anterior “esteve longe de satisfazer as necessidades de informação do EMGFA”60.
- 61 Esta questão foi mencionada brevemente em Castanheira & Cruz (2022: 201), mas ainda não havia sido (...)
44Entre as experiências cubanas, o interesse do MFA sobre os CDR (Comitês de Defesa da Revolução) é fundamental para a compreensão de uma das propostas políticas mais marcantes do Verão Quente: o Documento-Guia “Aliança Povo-MFA”, aprovado pela Assembleia do MFA e lançado em 8 de julho de 1975.61 Fundados em 1960, os CDR são uma estrutura característica do início da revolução cubana, e permaneceram no coração da institucionalização do poder popular na década seguinte (Kapcia 2018: 12-13). No início de 1970, uma Frente CDR-FAR foi criada para estreitar a relação entre estas duas estruturas. Organizando eventos culturais, esportivos e sessões plenárias ideológicas, a frente buscava reforçar a formação patriótico-militar e elevar a imagem das FAR perante o povo (Lopez 1974, Kindelan 1975). Num momento em que o aparato defensivo cubano era renovado e as Forças Armadas ganhavam maior projeção na vida política (Clayfield 2018: 73), esta campanha também pode ser vista sob uma ótica de reforço da segurança nacional.
45Este arranjo foi relevante nas expectativas do setor do MFA que esteve em intercâmbio com os cubanos, e que conheceu a experiência dos CDR e outras organizações de massas em suas visitas, por vezes sob a companhia de membros destacados das FAR. Embora as discussões sobre o estreitamento das relações com o povo já tivessem lugar desde o início do PREC, a Aliança Povo-MFA tentou impulsionar um projeto político para a radicalização rumo ao socialismo (Bebiano 2016), diante da fragmentação interna que ganhava forma no Verão Quente. Evidentemente, os CDR cubanos não explicam a totalidade do Documento-Guia, marcado primordialmente pelas discussões travadas no MFA em torno das necessidades nacionais a curto e longo prazo. No entanto, a ênfase no vínculo entre organizações de massas e Forças Armadas para garantir um projeto de poder popular é um ponto comum.
- 62 Possivelmente referindo-se às comissões de moradores.
- 63 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Evaluación de la política i (...)
46Em relatório, o embaixador Astray assinalou que os ensaios para avançar com os CDR em Portugal ocorreram paralelamente ao início das atividades da Assembleia Constituinte, através da criação do “Conselho de Vizinhos”62 e de trabalhadores fabris63. O trabalho de Pinto (2013: 166) reforça esta leitura, ao demonstrar que a Aliança Povo-MFA visou estreitar relações com os movimentos sociais urbanos para desenvolver “uma rede de assembleias populares locais como uma forma paralela de Estado”. O autor sinaliza que o debate sobre o poder popular em Portugal bebeu de referências diversas da nova esquerda europeia, da experiência chilena, do maoísmo e trotskismo, além dos movimentos de libertação africanos e do governo militar no Peru, que forneciam um “modelo que se adaptava bem às ambições e ao ethos nacionalista dos militares” (ibid.: 167). No entanto, esta ligação essencial – e pouco conhecida – com os CDR cubanos é um elemento essencial na ideia de poder popular que passa a ser arduamente debatida (e rebatida) no Verão Quente.
47No regresso da primeira delegação do MFA em Cuba, o capitão Jorge Golias apontou que os CDRs e as microbrigadas mereciam atenção como “ideia ou um conceito de atuação, e não uma forma acabada de execução” (Santos 1975). Os CDR portugueses não chegariam a se consolidar, mas a ideia ganharia alguma força em meio a um ambiente político mais tenso (Diário de Lisboa, s.a. 1975a). Em 28 de julho, no III Congresso dos Sindicatos, Vasco Gonçalves destacou a urgência de forjar uma consciência revolucionária capaz de acompanhar as transformações estruturais em curso, uma vez que que os trabalhadores precisavam ser integrados ao processo rumo ao socialismo. A Aliança Povo-MFA operaria, então, como uma “vanguarda constituída pelas classes trabalhadoras e pelo MFA”, incorporando ainda o apoio de pequenos industriais, comerciantes e agricultores (Diário de Lisboa, s.a. 1975c).
48O primeiro-ministro recordou uma fala de Senén Casas Regueiro sobre as sublevações reacionárias em Cuba seis anos após a revolução, e observou que “não deixaram de me lembrar os problemas que hoje temos entre nós, em certas regiões do país” (ibid.). Efetivamente, entre julho e agosto de 1975, o desafio de travar a reação anticomunista se impôs com maior contundência. Poucos dias após a saída do PS do governo, um primeiro episódio violento em Rio Maior desatou uma onda de atos populares de violência reacionária, sobretudo no Centro e Norte do País. Enquanto distintos atores buscaram consolidar uma oposição à via socialista revolucionária, sedes do PCP, MDP, sindicatos e outras organizações de esquerda foram alvo de assaltos, cercos, ataques bombistas e incêndios, numa série de mobilizações que procuraram criar “zonas de poder reacionário”. Manifestações anticomunistas já ganhavam lugar desde junho nos Açores e na Madeira, com reivindicações separatistas (Cerezales 2003: 1127-1130).
- 64 Filha do último diretor-geral da PIDE, Pais mudou-se para Cuba em 1962 acompanhando o marido, funci (...)
49Também em julho ocorre o que, ainda hoje, é o evento mais lembrado com relação a Cuba no PREC – se não o único em que Cuba continua a integrar a sua memória histórica hegemônica: a visita da delegação liderada por Otelo Saraiva de Carvalho, membro do CR e comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente), no 22º aniversário do assalto ao quartel Moncada. Se, em 2002, Otelo alegou que o convite foi feito pelo ministro das Relações Exteriores de Cuba, Raúl Roa García, e que conversou com Annie Silva Pais64 durante a preparação da viagem em Lisboa (Castanheira & Cruz 2022: 201-202), em 2016 relatou que o convite teria vindo diretamente de Fidel Castro, e que Annie teria feito uma primeira sondagem (Carvalho 2016).
- 65 O texto de Rafael (2005) segue a interpretação do historiador Josep Sánchez Cervelló, com base em d (...)
- 66 ADN, EMGFA. 5ª Divisão, Aliança Povo-MFA: estrutura aprovada na generalidade na Assembleia do MFA d (...)
50Outra versão defende, ainda, que a visita teria sido articulada entre Cuba e o PCP para aproximar o COPCON do partido (Rafael 2005)65 – em 2009, Otelo afirmou que a visita teria sido organizada pelas duas partes após a consulta de Pais porque “sabendo que eu admirava o Fidel e Cuba, o PCP pensava que essa viagem era uma maneira de vir de lá doutrinado” (Barroso & Simas 2009). Num relatório interno do MFA sobre a visita da primeira delegação militar à ilha, elaborado em maio de 1975, apresentou-se ao CR a proposta de “organizar a visita já decidida do Comandante-Adjunto do COPCON” e seus acompanhantes, que “devem estar presentes em Cuba por ocasião do “26 Julio”66. Ao público cubano, Otelo anunciou a sua visita em 20 de junho, em uma longa entrevista à Bohemia nas instalações do COPCON (Báez & Sáenz 1975).
- 67 Embora o caso “República” seja conhecido como o estopim para o rompimento do PS, a aproximação com (...)
51Além de Otelo, a sua esposa, Dina Afonso, e os filhos, também participaram na delegação o tenente Marques Júnior, membro do CR, a sua esposa, Luísa Marques, o jornalista João Paulo Diniz e representantes dos três ramos das Forças Armadas. Acompanhados pelo embaixador Astray, chegaram a Cuba em 21 de julho de 1975, após incertezas sobre a visita, devido às tensões desencadeadas pela saída do PS do IV GP poucos dias antes67. O grupo foi acompanhado principalmente pelo comandante Raúl Castro, ministro das FAR. O itinerário contou com visitas a monumentos, museus, unidades militares, espaços importantes na luta contra Batista e a praia de Varadero, além da participação em atos simbólicos em Havana – sob a companhia de Senén Casas Regueiro – e na província do Oriente, com a presença de Raúl, Juan Almeida Bosque, Vilma Espín, Jesús Montané e Raúl Menéndez Tomassevich, todos membros destacados do PCC (Castanheira 2016, Lechuga 1975).
- 68 O espaço recém-inaugurado abrigava as atividades dos pioneiros, semelhantes aos escoteiros, mas de (...)
52O grupo também conheceu experiências envolvendo a juventude cubana, como o acampamento de pioneiros José Martí68, e participou do ato de graduação de jovens das escolas militares das FAR no dia 24, com Otelo sentado na tribuna entre Fidel e Raúl. Levado num jipe por Fidel, o comandante do COPCON visitou a zona de Alamar para conhecer habitações construídas por voluntários em microbrigadas. Finalmente, em 26 de julho, participaram do ato central comemorativo na cidade de Santa Clara, Las Villas, com mais de meio milhão de pessoas nas ruas. Na ocasião, Otelo foi convidado a discursar antes de Fidel, com um acesso incomum a uma plataforma pública importante para os cubanos.
53Com um texto que teria sido elaborado por Loureiro dos Santos, então secretário do CR, e traduzido por Annie Silva Pais (Carvalho 2016), Otelo trouxe a efeméride no Moncada como “exemplo para os povos oprimidos de todo o mundo”, ao iniciar “um movimento irresistível de libertação que conduziria à total independência e descolonização do povo cubano”. Entre aplausos, comparou: “o Movimento 26 de Julho foi um movimento de libertação para Cuba, como é o Movimento das Forças Armadas para Portugal”. Assim como aquela data era a “aurora de uma pátria livre e próspera” para os cubanos, o 25 de abril era para Portugal “o início de uma Revolução que conduzirá o nosso país à verdadeira independência” (Carvalho 1975). O discurso mostrava conhecimento sobre a história cubana para, logo, relacioná-la ao tempo presente português e sustentar uma perspectiva sobre uma questão interna fundamental naquele momento: o desígnio do MFA como força essencial para aprofundar uma revolução socialista em Portugal.
54A seguir, Fidel Castro iniciou a sua intervenção destacando a presença de um “herói da revolução de Abril”, “um dos dirigentes mais destacados” do MFA, cuja presença naquela data tinha “grande significado histórico”. Também lançou comparações: ao contrário de Portugal, no momento da sua revolução os cubanos não tinham “militares no verdadeiro sentido da palavra; tínhamos capangas e opressores, e foi necessário que o povo desarmasse o exército e tomasse as armas. Em Portugal, os militares empreenderam o caminho da Revolução, derrubaram o fascismo e se uniram ao povo” (Castro 1975c). Na sua leitura subjaz, portanto, uma avaliação positiva sobre a politização das Forças Armadas empreendida pelo setor do MFA mais à esquerda.
55O líder apontou que o “pequeno país subdesenvolvido da Europa industrializada” possuía grandes dificuldades a enfrentar, mas “quando os homens falam assim e agem assim, sem medo, sem hesitações, sem medo diante dos grandes obstáculos, pode-se dizer que o movimento revolucionário está assegurado”. A revolução também estava segura quando se torna “carne do povo”, “carne da “classe operária”, pelo que sabia que “o povo português fará os sacrifícios que sejam necessários na Revolução, junto ao Movimento das Forças Armadas”. Reforçou que poderiam contar com “o apoio mais firme e decidido do nosso povo em qualquer circunstância”. O público entoava “Cuba, Portugal, unidos vencerão” (ibid.).
- 69 ADN, CEMGFA, Visitas de entidades estrangeiras a Portugal, PT/ADN/CEMGFA/GAB/039/0088/006; ADN, Fot (...)
56Ao mesmo tempo, uma delegação do MINFAR liderada por Senén Casas Regueiro visitava Portugal para as planejadas homenagens no 26 de Julho. Acompanhados pelo embaixador Astray, o itinerário incluiu visitas a unidades militares, a Sintra, à Lisnave e à Siderurgia Nacional. Tiveram um encontro com Costa Gomes e uma reunião de trabalho no Centro de Sociologia Militar com Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho, Carlos Fabião e Varela Gomes, além de momentos de convívio com outros oficiais. Astray, Regueiro e Fernando Alegret, chefe da Direção Política das FAR, também foram recebidos no Centro de Trabalho do PCP por uma delegação do CC composta por Álvaro Cunhal, Sérgio Vilarigues, Fernando Blanqui Teixeira, José Vitoriano e Aurélio Santos (Diário de Lisboa, s.a. 1975b)69.
- 70 Arquivo RTP, Chegada de Otelo Saraiva de Carvalho a Lisboa, consultado em 20 de maio de 2024, https (...)
57A delegação do MINFAR regressou a Cuba no dia 28, a tempo de participar da despedida do grupo português no dia seguinte (ibid.). Além dos comandantes de brigada Casas Regueiro, Vecino Alegret, Francisco Cabrera, Abelardo Colomé Ibarra e o capitão de corveta Aldo Santamaría, também estiveram presentes no aeroporto Jesús Montané, Vilma Espín, Osmany Cienfuegos e o primeiro-comandante Calixto García, todos membros do CC do PCC. O embaixador Fafe também compareceu com funcionários da embaixada, que havia oferecido uma cerimônia de despedida com a presença de Fidel e Raúl na noite anterior. Finalmente, os irmãos Castro acompanharam a delegação a pé até o avião que regressaria a Lisboa, e que seria recebido por uma multidão e pelo almirante Rosa Coutinho, o general Carlos Fabião, o capitão Vasco Lourenço, o ministro da Comunicação Social, o comandante Correia Jesuíno e Álvaro Cunhal (Dávalos 1975, Rodríguez 1975)70.
58Anos depois, em 1977, seria publicado o relato do jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez sobre a Operação Carlota, que constrói uma narrativa sobre a presença militar e civil cubana na independência em Angola, estabelecida para o dia 11 de novembro de 1975. De acordo com o texto, Fidel teria consultado com Otelo durante a visita se os portugueses autorizariam o envio de recursos em apoio ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), pedindo ajuda na gestão desta autorização ao regressar a Lisboa. O escritor sugere que Carvalho prometeu consegui-la, mas os cubanos nunca receberam uma resposta, decidindo enviar o primeiro contingente em 4 de outubro “sem permissão de ninguém, mas sem oposição de ninguém” (Márquez 1977).
59Carvalho também recordou o episódio em depoimentos posteriores, mas com diferenças substantivas. Dizia ter sido consultado por Fidel e Raúl durante um almoço em que, após a partilha de informações dadas por Agostinho Neto sobre as dificuldades do MPLA perante a UNITA e o FNLA (os outros dois movimentos de libertação que disputavam o poder em Angola), Fidel teria perguntado se os portugueses enviariam tropas em apoio ao MPLA para a independência. Respondendo que o governo português não tomaria posição, Otelo teria recomendado enviar imediatamente tropas, preferencialmente negras. Em suas declarações reforçava, ainda, que tinha transmitido a consulta a Costa Gomes (Silva 2016).
- 71 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Relações bilaterais de P (...)
60Em 26 de agosto de 1975, cerca de um mês após a visita de Otelo, Fafe comunicou ao então Ministro dos Negócios Estrangeiros do V GP, Mário Ruivo, que o comandante Demetrio Montseny, responsável pelas Relações Exteriores do MINFAR, havia informado que o governo cubano pediria vistos para cem técnicos que pretendiam dirigir-se a Angola, atendendo a um pedido de auxílio do MPLA. Segundo Fafe, Villa afirmou que “o governo português tinha, sim, conhecimento do auxílio e do que ele me pedia”. O embaixador português perguntava como proceder nos trâmites burocráticos para a concessão, aparentemente pouco a par da situação. As notas escritas na lateral do documento, porém, vão em outra direção: com uma seta a apontar para a data no cabeçalho do memorando, um primeiro comentário diz “Que é isto? Não está resolvido?”, ao que um segundo comentário, datado em 6 de outubro de 1975, responde: “o chefe da PAA [Repartição da África, Ásia e Oceania no MNE] e o Diretor-Geral têm conhecimento deste assunto”71.
- 72 Arquivo RTP, Chegada de Otelo Saraiva de Carvalho a Lisboa, consultado em 20 de maio de 2024, https (...)
61O memorando reforça, portanto, que o governo português estava ciente do envio de cubanos a Angola a pedido do MPLA no âmbito da Operação Carlota, como também sinalizam as fontes cubanas recolhidas por Piero Gleijeses (2002: 260-261). De acordo com o historiador, os primeiros especialistas, mais urgentes, viajaram a Luanda em voos comerciais, sem dificuldades. Com os desdobramentos do Verão Quente, os requerimentos para emissão de vistos mudaram e, em 4 de setembro, um oficial cubano informou às autoridades do seu país que poderia haver atrasos. No entanto, naquele final de julho em 1975, quando Otelo regressava ao aeroporto de Lisboa, os olhares ainda não pareciam atentos a uma possível equação entre Havana, Lisboa e Luanda: o interesse dos jornalistas portugueses e internacionais que o cercavam debruçavam-se sobre a conjuntura política portuguesa, que se acirrava aceleradamente e, previsivelmente, às impressões do comandante sobre Cuba72.
- 73 AHD, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Repartição da Europa e América, Política interna portugu (...)
62No início de agosto, a queda do IV GP refletiu o cenário cada vez mais tenso. Durante o V GP, cujo programa sinalizava a intenção de fortalecer relações com as antigas colônias e países capazes de “compreender e apoiar” o “processo revolucionário rumo ao socialismo” (Oliveira 2022: 324), outra delegação militar viajou a Cuba em 18 de agosto a convite do MINFAR. Liderada pelo almirante Rosa Coutinho, que havia atuado como Alto-Comissário em Angola nos preparativos para a independência do país africano, a delegação foi recebida por Osmany Cienfuegos, membro do CC do PCC e figura ativa na elaboração da política cubana para África e, por parte das FAR, Casas Regueiro, Vecino Alegret e Colomé Ibarra73. Em distintos graus, os três oficiais se envolveriam na missão militar cubana em Angola (Báez s.d., Gleijeses 2002: 248 e 318 e 2013: 56). O chefe da Marinha de Guerra portuguesa também teve uma reunião com Jorge Lezcano, coordenador nacional dos CDR, para conhecer a história e funcionamento da organização de massas (Báez s.d.).
63Gleijeses (2002: 261) sugere que Rosa Coutinho também teria conversado com Fidel, e que pouco depois os vistos para as primeiras viagens dos cubanos a Angola foram liberados. Entre 25 e 30 de agosto, o almirante viajou a Lima, no Peru, atuando como representante português convidado no V Encontro dos Ministros de Negócios Estrangeiros dos Países Não-Alinhados, ocasião em que a diplomacia cubana pôde fortalecer o projeto de sediar a VI Conferência (Oramas 2022: 340). Ao regressar, visivelmente entusiasmado, o almirante destacou a esperança dos “países desprotegidos”, ou seja, os não-alinhados, sobre o processo português, pelo que Portugal deveria despertar o orgulho nacional, “afirmar a sua personalidade, e não deve estar disposto, a troco de uns dólares, de uns francos ou de uns marcos, a continuar a ser lacaio da Europa”74.
64Contudo, nesta altura a fratura interna no MFA havia se aprofundado, e as tensões do Verão Quente de 1975 chegaram a um ponto de ruptura, direcionando os rumos do processo revolucionário português. Enquanto as mobilizações convocadas pelo PS com apoio da Igreja Católica fortaleceram a opção por uma democracia de tipo europeu, respaldada no resultado eleitoral, e a reação anticomunista incentivou a violência política, a publicação do Documento dos Nove em 7 de agosto consolidou a cisão no MFA, com a emergência de um setor moderado na disputa de posições estratégicas no aparelho estatal. Entre agosto e setembro aprofundou-se a mudança na correlação de forças: foram afastados do governo os elementos militares mais à esquerda, próximos de Vasco Gonçalves, e se desmantelaram alguns organismos estratégicos para esse setor, como a 5ª Divisão. O COPCON de Otelo, que lançou em 13 de agosto o documento “Autocrítica Revolucionária”, ainda permaneceu ativo neste momento, mas sob crescente pressão (Rezola 2017: 36, Rosas 2014: 177-178).
- 75 ADN, EMGFA. 5ª Divisão, Aliança Povo-MFA: estrutura aprovada na generalidade na Assembleia do MFA d (...)
- 76 ADN, CEMGFA, Seminários de Medicina Militar, eventos desportivos e manobras militares, PT/ADN/CEMGF (...)
65Com visita prevista desde maio de 1975, após sucessivos adiamentos, outra delegação militar viajou a Cuba entre 28 de novembro e 9 de dezembro para assistir às manobras militares no I Congresso do PCC. No entanto, a crise de 25 de Novembro havia alterado irreversivelmente a correlação de forças no poder político-militar, encerrando o ciclo revolucionário. A princípio, esperava-se uma “larga representação” de cerca de 30 elementos das Forças Operacionais (COPCON, Santa Margarida e Escolas Práticas), com “atenção ao grau de preparação ideológica”, já que deveriam estabelecer contato com outras delegações, como a do Peru sob o governo militar de Velasco Alvarado (que também cairia em agosto daquele ano)75. Porém, em relatório interno de 29 de janeiro de 1976, o brigadeiro Orlando Rodrigues da Costa, chefe da delegação, registrou que até a última hora não se sabia se a viagem iria mesmo ocorrer, que os cubanos perguntaram por que só compareceram 12 oficiais dos 30 convites oferecidos, e que “as nomeações apressadas e os acontecimentos do 25 de Novembro não tinham permitido nem a preparação da visita, nem a preparação de recordações a oferecer em retribuição daquelas que nos vieram a ser oferecidas”76.
- 77 Assim referiu-se Dominique Pouchin, jornalista francês, ao país no PREC (Rezola 2017: 14).
66No rescaldo da revolução, o historiador Kenneth Maxwell (1976: 261) escreveu que a volatilidade do poder popular que emergiu no Verão Quente, tanto à esquerda como à direita, teve um impacto muito mais imediato do que as discussões sobre a redação da nova Constituição ou as vias para o socialismo. No entanto, a análise das relações entre distintos agentes portugueses e cubanos mostra que este debate, de aparente cariz teórico, traduziu-se na construção de novas conexões internacionais com base em afinidades políticas, e isto foi acionado internamente como um indicador do aprofundamento da revolução em Portugal. Causou, portanto, um impacto direto na leitura sobre os rumos da transição democrática, que é a grande questão de fundo em 1975.
67A aposta na aproximação com Cuba buscou legitimar o caráter revolucionário do processo português perante os países do Terceiro Mundo, mas também conhecer e estudar um modelo terceiro-mundista de poder popular para pensar os desafios nacionais. Não se falava em replicar o seu modelo, mas conhecê-lo para ampliar o próprio repertório político. Perante as crescentes dúvidas sobre a continuidade do curso revolucionário socialista – o desafio de garantir que “Portugal não seria o Chile da Europa” (Narra 2023: 45-49) –, a experiência cubana divergia da chilena e da portuguesa na medida em que a promessa de soberania popular não se havia vinculado à via eleitoral, mas ao poder popular em um processo radical. Precisamente no ano de 1975, o I Congresso do PCC institucionalizou tal premissa. Outro aspecto distinto era a aposta no trabalho ideológico nas Forças Armadas e junto às massas. Isto explica, especialmente, o interesse de setores do MFA em conhecer os CDR, bem como aspectos da politização e legislação das FAR.
68Na perspectiva dos agentes que impulsionaram tal aproximação, portanto, o dilema português estava posto em termos de opção pela democracia representativa – consagrada no pluralismo partidário e prevista no projeto inicial para a transição – ou pela radicalização da revolução, através da democracia direta assente no poder popular. No MFA, este dilema fez-se patente em momentos como a substituição da referência à instauração de uma “democracia política”, no seu programa inicial, pelo termo “via socialista” (Rezola 2017: 34), ou na leitura política de uma figura crucial como Melo Antunes, que, apesar de defender uma inclinação terceiro-mundista e não-alinhada na política externa, não abdicava do que considerava ser uma via democrática para o socialismo, em contraposição com o que via como “projetos hegemônicos” do PCP (Oliveira 2022: 345, Rezola 2012).
69Por esta razão, é fundamental conhecer melhor as perspetivas e expectativas sobre Cuba entre os agentes centrais no PREC, não só no MFA, mas também nos partidos e movimentos civis. Enquanto organismos de solidariedade como a AAPC fortaleceram internamente o imaginário sobre a revolução cubana, outras relações parecem ter sido mais heterogêneas. Para além das figuras centrais do MFA, é preciso compreender a capilaridade da cultura política cubana dentro das Forças Armadas. Igualmente crucial é conhecer a oposição a esta aproximação dentro do poder político-militar, como sinalizam as declarações de Mário Soares (Castaño 2015: 16), e nos movimentos civis de direita.
- 78 Aqui, novamente, uma melhor compreensão sobre a capilaridade da revolução cubana na politização dos (...)
70Incontornavelmente, o papel do PCP nestas relações desperta especial atenção. Considerando que estes vínculos já se construíam antes do 25 de Abril e podem ter se aprofundado na viagem da delegação liderada por Cunhal a Cuba em março de 1974, este tópico merece uma exploração mais profunda78. Interessa analisar se o partido terá procurado este apoio como uma alternativa mais disponível do que o campo socialista europeu, e se a inclinação terceiro-mundista cubana poderá ter tido alguma relevância. Estas hipóteses emergem com base em outros estudos sobre o apoio limitado do campo socialista europeu no PREC (Wagner 2006: 83-86, Szobi 2017: 680-681, Drozda & Grudka neste dossiê).
- 79 A comparação da ação destes países em Portugal também pode ser útil para o antigo debate sobre a “s (...)
71De acordo com estes trabalhos, a RDA e a Tchecoslováquia limitaram a sua assistência sob influência da URSS, que hesitou em apoiar a radicalização no PREC através do PCP para não comprometer a estratégia de détente na Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa. Enquanto a RDA retirou o seu apoio à ala mais à esquerda do MFA e ao PCP abruptamente entre junho e julho (Wagner 2006: 86), Cuba reforçou as relações militares nestes meses. Estas movimentações ilustram consonâncias e dissonâncias políticas entre os países do COMECON, desafiando a percepção de que agiam sempre como bloco79, e reforçam a relevância de inserir Cuba na historiografia sobre a democratização portuguesa.
- 80 Alguns aspectos da síntese de Rostica & Sala (2021) sobre os estudos da Guerra Fria na América Lati (...)
72A dimensão internacional é, certamente, uma das vias de atualização dos estudos sobre o 25 de Abril. Neste sentido, os intercâmbios com culturas políticas latino-americanas, como a cubana, a chilena ou a peruana trarão contributos para repensar o debate interno português sobre o socialismo. Não se trata apenas de reconstruir a história dos apoios e das relações bilaterais entre Portugal e a América Latina, mas de desencapsular o processo português e avançar numa interpretação mais transnacional sobre os projetos políticos que se disputaram e impactaram o curso revolucionário. No lugar de pensar estritamente em termos de influências, será útil também considerar possíveis circulações de ideias, dialogando com novas discussões historiográficas e sociológicas80.
- 81 Agradeço ao Michel Cahen por levantar esta questão.
- 82 Ribeiro (2018: 215-216) também identifica a evocação ao Che pelos internacionalistas cubanos que es (...)
- 83 Noticiero ICAIC latinoamericano nº 663, El Milagro de la Tierra Morena (Santiago Álvarez, 27 de jun (...)
- 84 ADN, SIPFA, Cuba, PT/ADN/SIPFA/049/0208/005.
73Neste sentido, cabe ainda problematizar qual revolução os distintos agentes portugueses procuravam em Cuba81. Como lembra Hernández (2009: 46), as visões externas “estavam marcadas pelas trajetórias históricas e as culturas políticas de cada região e país. De certa forma, cada um deles representava suas próprias Cubas”. Um elemento interessante são as várias menções de civis e militares ao Che Guevara82: a sua figura está presente num depoimento sobre o romantismo revolucionário em El Milagro de la Tierra Morena, documentário do ICAIC sobre os primeiros meses após o 25 de Abril83; em relatos sobre o trabalho voluntário em Alamar; ou, ainda, num ato nacional da AAPC por 1 minuto de silêncio em sua homenagem84. Continuava a ser uma forte evocação, mesmo estando morto há mais de seis anos quando o 25 de Abril triunfou e, o que é mais importante, simbolizando outra imagem da experiência cubana, mais próxima do guerrilheirismo (Clayfield 2018).
74No PREC, Cuba emerge como um exemplo maduro de um processo revolucionário socialista. No entanto, para os dirigentes cubanos, este é um momento de reestruturação das suas bases ideológicas e materiais, com outros desafios não menos complexos. Se a empreitada da institucionalização socialista na década de 1970 vem, por um lado, acompanhada de uma coordenação mais estreita com os países do COMECON e, especialmente, a URSS (Yordanov 2024: 97-117), a política externa cubana é um campo fundamental de expressão da sua autonomia e de atualização da sua narrativa revolucionária.
75Desde o final da década de 1960 havia uma perceção de ameaça iminente, com a crescente intimidação dos Estados Unidos, o isolamento regional e, a nível global, algumas derrotas significativas nos movimentos guerrilheiros, estudantis e de direitos civis, contribuindo para a sensação de “fortaleza sitiada” (Hernández 2009: 51). Como contraponto, a ilha reforçou a sua ação no Movimento dos Não-Alinhados e com os movimentos de libertação africanos. A situação revolucionária em Portugal dialogava com estas questões, tanto pela existência de uma linha terceiro-mundista dentro do poder político-militar português, como pelo desafio objetivo da descolonização, sobretudo em Angola.
- 85 Para uma análise sobre o caráter institucional das ditaduras das Forças Armadas na América Latina, (...)
76O processo português foi oficialmente lido numa sequência diversa de eventos históricos do internacionalismo proletário, como o dia da vitória contra os nazis, a defesa de Playa Girón, a queda de Phnom Penh e o fim da Guerra do Vietnam (Castro 1975b). Por sua vez, o MFA despertou especial interesse pelo seu caráter singular na Europa, ao representar a possibilidade de politização à esquerda impulsionada pelas Forças Armadas junto ao povo, um elemento significativo para uma Cuba que acompanhava de perto a América Latina progressivamente submersa em ditaduras institucionais das Forças Armadas85.
77A descontinuidade desta aproximação respondeu à mudança na correlação de forças no final do Verão Quente, quando setores do MFA à esquerda e o PCP perderam capital político, mas também foram relevantes as dissonâncias sobre a independência angolana. A dimensão africana parece ter colocado em causa a confiança para o estreitamento das relações político-militares. Desde cedo, as leituras cubanas sobre o PREC foram feitas à luz dos processos africanos: numa reunião de coordenação dos Não-Alinhados em 19 de março de 1975, Fidel disse que a luta dos povos da Guiné-Bissau, Moçambique e Angola pôs em crise o regime português e “como consequência, a revolução eclodiu na própria metrópole” (Castro 1975a); em El Milagro de la Tierra Morena, a narrativa sobre o 25 de Abril inicia-se em Madina do Boé e termina no rosto de Amílcar Cabral diante das armas do PAIGC, enquanto o cantor português Zeca Afonso entoa “somos nós os teus cantores da matinal canção”.
- 86 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Evaluación de la política i (...)
- 87 Figura relevante nas relações com os países africanos, Oramas conheceu de perto os movimentos de li (...)
78Muitos dos dirigentes cubanos que interagiram com figuras do poder político-militar português ocuparam cargos relevantes na estratégia para Angola. Além de indicar a importância dada ao país europeu, isto também levanta a hipótese de uma leitura conectada sobre os desenvolvimentos políticos. Em relatório, Astray considerou que as tensões em torno da independência angolana – alvo de interesses dos Estados Unidos e China – também eram “parte dos planos destinados a perturbar a situação política interna portuguesa” e que “dos pontos de vista econômico e militar, uma alargada indefinição perturbada pelos acontecimentos desse tipo implicaria contrair compromissos muito sérios para o Governo português”86. Por sua vez, em suas memórias, o embaixador cubano Oscar Oramas (2022: 339)87 menciona que, ao chegar a Lisboa após a festa de independência de Moçambique em junho de 1975, pouco antes da viagem de Otelo, foi a um parque para produzir um relatório ao governo cubano, evitando ser ouvido pela contrainteligência portuguesa.
79As visitas de figuras do alto escalão do MFA e do MINFAR entre julho e agosto de 1975 ocorreram num período crucial para Portugal, mas também para Angola. Se, em Cuba, a Operação Carlota potencializou a capacidade de militarização e a imagem das FAR, abrindo uma epopeia internacionalista que ainda hoje é parte essencial do imaginário nacional cubano (Peters 2012, Ribeiro 2018: 212-213), em Portugal a descolonização angolana reforçou as divergências no MFA (Loff 2022: 96-97), num momento em que a esquerda revolucionária abruptamente perdia a sua vantagem no cenário político. Como hoje conhecemos, estes mesmos dias foram decisivos para o MPLA, que conseguiu garantir o poder graças ao apoio cubano no terreno angolano. Portanto, as possíveis mediações militares entre Cuba e Portugal em torno da independência angolana requerem uma exploração mais profunda.
- 88 Aparecem variações da frase em distintas fontes, que alegam que teria dito “se tivesse cultura livr (...)
80No fim de setembro de 1975, quando Otelo Saraiva de Carvalho lamentou que “seria o Fidel Castro da Europa” se tivesse mais cultura política (Castanheira 2016)88, o anticomunismo já se havia instaurado como peça estratégica de alguns partidos e movimentos, mobilizado tanto para abordar a política interna como externa. Se o primeiro ano da revolução havia aprofundado o seu curso e afastado a possibilidade de uma contrarrevolução, em 1975 os alinhamentos políticos saíram do binômio fascismo/antifascismo e se tornaram mais complexos entre comunismo/anticomunismo, com o acirramento de posições desembocando no 25 de novembro (Cerezales 2003: 1135).
81Finalmente, a democracia portuguesa seria institucionalizada com a promulgação da Constituição em abril de 1976. Este mês foi atravessado por outros dois episódios, hoje menos lembrados em Portugal: o refúgio concedido pelo governo português a dois soldados cubanos desertores saídos de Angola e, três dias antes do segundo aniversário do 25 de Abril, o ataque bombista à embaixada cubana em Lisboa, que matou os funcionários Adriana Corcho e Efrén Monteagudo. Fidel Castro reagiria com dureza ao ataque, declarando que “o governo de Portugal não é totalmente alheio a esses fatos; não no sentido de que participe em tais acontecimentos, mas as suas contradições e suas debilidades têm a ver com acontecimentos desta natureza” (Castro 1976).
- 89 CGD-MINREX, Cajuela 4, 2.2.10.1, Europa-Portugal, 1959-1985, ordinario, Proposición de invitación a (...)
82Cuba acolheu brevemente Varela Gomes, Duran Clemente e Costa Martins, oficiais em clandestinidade após o 25 de novembro (Araújo 2024), mas em 1977 também recebeu visitas de Vítor Alves e Vasco Lourenço, signatários do Documento dos Nove89. As relações oficiais foram mantidas, mas sob outras condições.
83Entre 1974 e 1975, a centelha entre Portugal e Cuba conjugou-se na hipótese da revolução social enquanto ruptura máxima para erguer uma nova ordem, um projeto inacabado no trajeto mais amplo da democratização portuguesa. Nos cinquenta anos do 25 de Abril, o resgate deste encontro é um convite para reaproximar a memória do PREC à discussão historiográfica, política e sociológica em torno das leituras globais sobre revolução, democracia e transformação social que se disputaram no século XX, assumindo as suas complexidades e alternativas para imaginar o futuro.