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Dossier
La dimension internationale de la révolution portugaise

Descolonização do Timor-Leste: desdobramentos da Revolução dos Cravos na colônia mais longínqua (1974-1975)

La décolonisation du Timor oriental : prolongements de la révolution des Œillets dans la colonie la plus lointaine (1974-1975)
The Decolonization of Timor-Leste: Developments of the Carnation Revolution in the Most Distant Colony (1974-1975)
Marçal de Menezes Paredes et Bianca Obetine Magnus

Résumés

La révolution des Œillets ne se limite pas au Portugal, c’est toute une histoire globale qui se déroule en amont et en aval du coup d’État du 25 avril 1974. La guerre anticoloniale et les processus d’indépendance et de transfert de pouvoir dans les anciennes colonies d’Afrique et d’Asie n’en sont que quelques facettes. Le travail politique et diplomatique des mouvements de libération dans ce processus est un autre point crucial. Cet article accorde une attention particulière à l’agitation politique née de la révolution des Œillets, qui a trouvé une résonance particulière dans le contexte mondial de la guerre froide. Le cas du Timor oriental, la colonie portugaise la plus lointaine en Asie du Sud-Est, est examiné comme exemple des influences politiques provenant du contexte portugais. Cet article met en perspective les connexions et réseaux mondiaux qui ont existé dans le processus de la révolution des Œillets et de la décolonisation du Timor oriental entre 1974 et 1975.

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Texte intégral

1Se é verdade que a Revolução dos Cravos pode ser entendida como o resultado das guerras anticolonais, não menos correto serão as considerações de que os movimentos políticos destravados, em Lisboa, depois do 25 de Abril de 1974, foram – também eles próprios – fomentadores de processos de independência política, acelerando o cenário do fim do império português. Este é o caso da longínqua colônia asiática lusitana, o Timor-Leste. Diferentemente das pressões militares oriundas das batalhas acontecidas em Angola, desde 1961, e na Guiné-Bissau e em Moçambique, desde de 1963 e 1964, respectivamente, no Timor não se observou a formação nem de milícias nem de movimentos de guerrilha que tenham pegado em armas contra a presença do colono português.

2Em 1975, a primeira independência do Timor-Leste, ainda que de brevíssima vida – durou de 28 de Novembro até o 7 de Dezembro, quando inicia a invasão da Indonésia – é proclamada em decorrência da Revolução dos Cravos. Dir-se-á, inclusive, que a articulação política que ocasiona a formação da Fretilin (Frente Revolucionária do Timor Leste Independente) foi fundada mesmo em derivação da aceleração dos acontecimentos políticos em Lisboa, em 11 de Setembro de 1974, portanto, em plena crise que gerará a renúncia do General António de Spínola. Mesmo o movimento que antecede a criação da Fretilin, a Associação Social Democrata Timorense (ASDT), foi fundada em 20 de Maio de 1974, portanto, depois do 25 de Abril.

3Este artigo objetiva, pois, abordar uma faceta diversa da relação política que articula o anticolonialismo à mudança do regime na metrópole. Longe de retirar o protagonismo da luta de libertação sobretudo em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique, trata-se, nesse texto, de chamar atenção para a complexidade multiescalar do fim do império português, bem como para o fator propulsor anticolonial vindo da metrópole. Afinal, foi depois do golpe dos Capitães de Abril – e particularmente no contexto onde a ruptura do regime em Lisboa manifesta o princípio de sua fase revolucionária – que se destravou as articulações pela emancipação política que culminaram com a, ainda que fugaz, primeira independência do Timor-Leste.

4Atente-se, pois, para o fato de que este texto não tratará nem da Revolução dos Cravos, nem do nacionalismo e do anticolonialismo timorense sob um ponto de vista nacional. Ao contrário, trata-se de exercitar um olhar para as conexões entre essas escalas – que são, ao mesmo tempo, sociais e epistemológicas, frisa-se. Do ponto de vista metodológico, pois, trata-se de exercitar a uma perspectiva de análise que se inspira em pontos comuns às abordagens da História Global, da História Transnacional ou da Histórca Conectada (Rezola & Gonçalves 2022, Weinstein 2013).

5A perspectiva teórico-metodológica da chamada Global History confunde-se com a própria história das independências e das descolonizações. Desde os anos 1960, através de publicações diversas obras sobre o lastro de memória social sobre a escravatura, o comércio e as migrações, para citar apenas alguns tópicos, esta perspectiva articulou-se com o chamado “shock of the global” (Ferguson et al. 2010), ecoando movimentos transnacionais que, durante a Guerra Fria (Dallywater et al. 2019), clamavam por respeito aos Direitos Humanos (Fink 2018). Esta perspectiva busca surpreender outras escalas de análise histórica e dos movimentos sociais. Para além do tradicional enquadramento nas identidades políticas em escala nacional, trata-se de operar um olhar que perceba as imbricações entre o Global e o Local, bem como perceber as conexões transnacionais neste diapasão (Conrad 2016). Conforme afirmam Anna Konieczna e Rob Skinner (2019: 7),

A história global é uma perspectiva ou “abordagem” que procura analisar o processo de globalização, contactos e intercâmbios que transcendem e contornam as fronteiras locais ou nacionais e têm um impacto nas sociedades e nos Estados. […] Considera o emaranhamento e as interações, mas, ao contrário da história transnacional, concentra-se nos canais através dos quais as conexões entre as perspectivas local e global são feitas ou desfeitas. Embora a história global se concentre no processo de integração ou convergência de normas, também pode levar em consideração espaços que resistiram à globalização, adaptaram normas ou discursos ao seu próprio contexto, ou permaneceram não globalizados [tradução dos autores].

6A adequação com os objetivos de pesquisa – e como a própria natureza da proposta – é evidente. Afinal, a luta pela independência nacional acontecida nas ex-colônias portuguesas da África se desenvolveu em diversos âmbitos. Para além da estratégia de guerrilha adotada em Angola em 1961, na Guiné-Bissau em 1963 e em Moçambique em 1964, os movimentos anticoloniais desenvolveram um constante trabalho político em escala global. Essa dimensão de articulação transnacional moveu-se num contexto que manifesta um significativo protagonismo dos países do chamado Terceiro Mundo performando um contexto de Guerra Fria nada estático nem tampouco simplesmente bipolar (Westad 2007). Através dos chamados “hubs de descolonização” localizados em Dar es Salaam (na Tanzânia), Cairo (no Egito), ou Argel (na Argélia), para citar apenas alguns, os movimentos que lutavam pelo fim do colonialismo português em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau ganharam uma rede transnacional de articulação política de grande relevo (Burton 2019). Tendo isto em conta, será forçoso perceber que – dada as peculiares circunstâncias do período entre a Revolução dos Cravos e o Processo Revolucionário em Curso (PREC) – Lisboa também pode ser considerada como um hub de descolonização. A própria natureza do período revolucionário português e sua evidente relação com o fim do Império Português justifica esse instrumental metodológico.

7No que tange às fontes primárias, serão utilizados documentos primários do cenário anticolonial timorense, livros de memórias dos protagonistas deste período, bem como a análise do periódico oficial da ASDT-Fretilin, intitulado Nacroma. O Nacroma foi um periódico de publicação quinzenal produzido pela Fretilin. Apenas sua primeira edição, que corresponde à segunda quinzena de agosto de 1974, é atribuída à ASDT. Ao todo, o Nacroma possuiu nove edições, sendo a última publicação em dezembro de 1975. O periódico, produzido pelas lideranças da Fretilin, apresenta em suas edições ideias e notícias sobre a luta de libertação do território. Em seu conteúdo consta a divulgação de acontecimentos internos e externos ao Timor, as propostas da Fretilin, além de informações sobre atuação da Frente em buscar apoio internacional, inclusive estabelecendo relações com as lutas de libertação na África lusófona (com informações e notícias sobre os movimentos de libertação como o MPLA, o PAIGC e a Frelimo).

8Articula-se, neste texto, a guinada revolucionária em Lisboa e o cenário dos movimentos anticoloniais da África colonial portuguesa, em suas conexões transnacionais existentes no cenário do Sudeste Asiático. Abordar a história deste impacto múltiplo na primeira independência do Timor-Leste pode trazer novas informações sobre os diferentes efeitos produzidos globalmente pela Revolução dos Cravos. A primeira parte deste artigo analisa a relação entre a notícia do Golpe do 25 de Abril e o despoletar nacionalista no Timor. A segunda parte dá atenção ao turbilhão político do chamado Verão Quente de 1975 (Rezola 2017, Gonçalves & Paredes 2017) e sua influência no cenário dos movimentos defensores da Independência timorense, em Díli.

A Revolução dos Cravos e a propulsão nacionalista no Timor

9Entendido de maneira ampla, é correto afirmar a anterioridade do nacionalismo timorense à revolução dos Cravos. Contudo, no geral, trataram-se de experiências estéticas e literárias existentes às voltas da elite cultural assimilada e que giravam mais em torno da demanda por autonomia que pelo clamor da independência (Ramos 2012). O vínculo ativo e a propulsão nacionalista, entretanto, adveio mesmo da experiência através da luta anticolonial a partir dos países africanos contra o colonialismo português. Seja pela conscrição militar no exército português, seja pela experiência do exílio político, foi de fora para dentro do território que se despertou a conscientização política em prol da independência (Silva 2011).

10Ainda que em reflexo, a energia política independentista não surgiu da noite para o dia. Existia desde antes dos Cravos, naturalmente: alguns indivíduos já possuíam ideais anticoloniais e nacionalistas. Estes indivíduos estabeleceram articulações políticas com outros movimentos de libertação no cenário africano, ecoando o sentimento de insatisfação e de revolta próprio das décadas de 1960 e 1970. No entanto, ainda não havia, no contexto timorense, um movimento de libertação com consistência local e amplitude internacional, seja como uma frente política mais ou menos oriunda de outros movimentos, como a Frelimo (Frente de libertação de Moçambique), seja como um movimento com um histórico de ligação com os demais movimentos portugueses antisalazaristas, como o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Menos ainda houve proposições teóricas consolidadas, articulando a retórica anticolonial em perspectiva global, tal como foi o caso de Amílcar Cabral e do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde (PAIGC). A mobilização política timorense, nesse momento, ainda era mais vinculada à articulação global de indivíduos e menos um movimento social.

11Vale chamar atenção para a existência de alguns estudantes timorenses na Casa dos Estudantes do Império, sediada em Lisboa. Contudo, de acordo com Tribess (2022), nos anos 1960 não havia, neste grupo timorense, uma clara demanda pela Independência do Timor-Leste. Como adiante será abordado, nos anos 1970, entretanto, outras gerações de estudantes timorenses em Lisboa irão fomentar a discussão anticolonial chegando mesmo a ter forte presença na Casa do Timor – que é derivada da Casa dos Estudantes do Império.

12Na década de 1960 já se observa a existência de indivíduos que atuavam na clandestinidade do contexto do regime salazarista em Díli. Através do periódico católico timorense Seara, disseminavam sutilmente algumas ideias anticoloniais. Na década de 1970, esses indivíduos faziam parte do Anti-Colonial Discussion Group (AIDG) e inspiravam-se nos movimentos de libertação dos territórios portugueses em África. Entre esses timorenses, estão Nicolau Lobato, José Ramos-Horta, Francisco Xavier do Amaral, Mari Alkatiri, Borja da Costa, Domingos de Oliveira, Manuel Carrascalão, entre outros que, após o 25 de Abril, fundaram associações políticas pró independência (Silva 2011).

13É ainda importante salientar que esses indivíduos tiveram suas trajetórias marcadas por passagens nas colônias portuguesas em África e Ásia. E foi delas que obtiveram contatos com os ideais de libertação do MPLA, da Frelimo e do PAIGC. Foi, portanto, da experiência intercolonial que tiveram conhecimento da importância da luta de libertação nas outras colônias, de suas aspirações nacionalistas e da força que ecoavam da cena de ascensão do Terceiro Mundo. Quando regressados ao, ainda, Timor português, passaram a difundir a demanda pela independência de Timor-Leste e fazer referências às lideranças dos movimentos de libertação, como Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane e Agostinho Neto, figuras de proa na cena anticolonial do Império português e que eram tomados como referência teórica e estratégica pelas elites culturais independentistas lusófonas do Sudeste Asiático (Ramos-Horta 1994).

14Segundo Ramos-Horta (1994: 75), no contexto que antecedeu a Revolução dos Cravos:

Timor Leste não conheceu qualquer Movimento de Libertação e, como em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde, não houve luta armada contra a presença portuguesa. No entanto, em 1973 já existia um núcleo de nacionalistas, cada vez mais impacientes, revoltados e decididos a começar acções de protestos. De facto, o ano de 1973 foi assinalado por alguns conflitos entre jovens timorenses e elementos do exército colonial.

15Não obstante essa movimentação, não parece haver dúvidas do elo desencadeador da Revolução dos Cravos no cenário timorense. Como é de amplo conhecimento, os eventos políticos encenados na metrópole foram muito agitados depois do 25 de Abril de 1974. Englobam as complexidades da formação da Junta de Salvação Nacional à crise do Spinolismo, alcançando o fortalecimento do Movimentos das Forças Armadas e do Processo Revolucionário em Curso à possibilidade de uma guerra civil durante o Verão Quente de 1975. No Timor-Leste, por sua vez, o cenário político não foi menos turbulento. Foi da articulação de três movimentos de libertação, cada um com seu próprio projeto político. A Associação Social Democrata Timorense (ASDT), a União Democrática Timorense (UDT) e a Associação Popular Democrática Timorense (APODETI) articulam-se, cada uma a seu modo, em primeiro lugar como resposta à agitação política no centro do sistema – que ainda era colonial. Dir-se-á, também, que as referidas associações políticas gravitavam em entremeio de um cenário mais amplo, o da Guerra Fria – mas esta, entendida com suas nuances localizadas no Sudeste Asiático e, particularmente alavancadas pelo regime de Suharto na Indonésia, pelo fim da Guerra do Vietnã, pela força emanada pelo maoísmo chinês (também ecoado desde Lisboa, como se verá), assim como pelo diapasão estratégico jogado pelos interesses anglófonos na região, mormente o dos Estados Unidos, mas também os ingleses e os australianos (Oliveira 2007).

  • 1 “Entrevista 25 Abril: Em ‘maus lençois’ com a PIDE, revolução permitiu a Ramos-Horta ficar em Timor (...)

16O acontecimento do Golpe dos Capitães de Abril, na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, gerou efeito quase que imediatamente em Díli – e a rapidez da consequência deve ser salientada, dada a distância e a simplicidade dos meios de comunicação na altura. Logo em 5 de maio de 1974, o então governador de Timor português, Fernando Alves Aldeia, lançou um comunicado informando sobre a ruptura do regime em Lisboa. Mais que isso, proclamava-se em favor da formação de associações políticas no território. Não deixa de ser curioso que, em recente entrevista, José Ramos-Horta relembra ter conversado com Alves Aldeia dias antes do 25 de Abril e que este, recém retornado de viagem a Lisboa (onde ficara de 11 de março a 20 de abril), dissera que as mensagens nacionalistas de Ramos-Horta já eram conhecidas em Lisboa e que ele haveria de sair do Timor. A notícia do Golpe em Lisboa tornava essa opção menos necessária, algo dito pelo próprio governador colonial ao líder anticolonial, não sem um cordial abraço1. De qualquer forma, no decorrer de maio começam a ser organizadas oficialmente as primeiras associações políticas timorenses. Seriam essas agremiações que deveriam debater junto da administração portuguesa o futuro do território.

17Em 11 de maio de 1974, foi criada a UDT (União Democrática Timorense). Seu primeiro líder, Mário Carrascalão, defendia uma ligação forte com Portugal enquanto fosse possível. Carrascalão já possuía alguma experiência política. Participara da Ação Nacional Popular (ANP), rebatizada por Marcello Caetano como tal, mas originada na União Nacional, estreitamente vinculada ao regime salazarista. Filho de português e dirigente da associação portuguesa em Timor, Carrascalão tinha fortes laços com o antigo regime. No contexto de formação da UDT, Carrascalão defendia que “qualquer outra opção que não fosse continuar à sombra da bandeira portuguesa é [seria] traição” (Ramos-Horta 1994: 84).

18Mário Carrascalão ecoava altissonante o brado spinolista que, àquela altura, tentava manietar a conclamada Junta de Salvação Nacional em Lisboa. Sabe-se o quão antitéticas eram as posições de António de Spínola em relação às do Movimento das Forças Armadas que colocavam a descolonização e a independência como ponto inegociável da própria mudança do regime. Por sua vez, Spínola tinha tido um papel importante na crítica interna ao sistema, particularmente aquando da publicação do seu livro Portugal e o Futuro (publicado em fevereiro de 1974, em Portugal). Sua presença na JSN emprestava certa tentativa de estabilidade à lógica de ruptura instaurada a partir do 25 de Abril. Visto de Díli, contudo, o spinolismo talvez tivesse mais significado de imutabilidade de que qualquer outra coisa. A proposta da criação de “uma federação de países lusófonos” contrariava o programa político do MFA de efetivar a descolonização (Maxwell 2006: 116).

19É justamente essa postura de Carrascalão que o tira da presidência da UDT, sendo substituído por Francisco Lopes da Cruz. Embora deva-se levar em conta a existência de correntes políticas internas, a UDT parece transitar de defender a independência para o Timor português e manter a ligação a Portugal. Rui da Graça Feijó (2022: 3) afirma que a UDT se inspirava em “teses spinolistas”, indicando pertencer ao espaço português, mas ainda assim defendendo uma possível independência a longo prazo.

20Em 20 de maio de 1974 foi lançada outra associação, a Associação Social Democrata Timorense (ASDT). Sob liderança de Francisco Xavier do Amaral (como presidente), Nicolau Lobato (como vice-presidente) e José Ramos-Horta (como responsável pelas relações exteriores), a ASDT pode ser definida como um movimento independentista bastante moderado no momento de sua criação. Ainda sobre aspectos políticos ideológicos da ASDT, Ramos-Horta (1994: 92) recorda:

Estávamos igualmente conscientes da complexidade e da incerteza do processo de descolonização. Nenhum de nós tinha qualquer visão ideológica coerente para além do desejo de independência. O marxismo estava longe das nossas mentes. Nenhum de nós, com a possível excepção de Nicolau Lobato e, suponho, Mari Alkatiri, tinha lido sequer uma linha de Marx ou Lenine.

21Vale à pena dar mais atenção para algumas informações passadas pelo secretário das relações exteriores da ASDT. A partir de seu livro de memórias, o bastante conhecido Amanhã em Dili (1994), José Ramos-Horta dá boas pistas sobre o contexto ideológico e conceitual debatido no dealbar da campanha por independência proposta por seu movimento, à época ASDT.

Os únicos escritos revolucionários com os quais eu estava familiarizado eram os de Amílcar Cabral, grande pensador africano e líder da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Quanto a mim, os únicos escritos ditos subversivos que havia lido foram livros de Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane, cortesia da Betsy Traube, antropóloga americana que fazia pesquisa para o seu doutoramento sobre o povo mambai, e de Mário Soares, para além de todas as obras de Soeiro Pereira Gomes. Esteiros foi a obra que mais me arrebatou nos anos sessenta, seguido de Engrenagem, do mesmo escritor, que faziam parte da biblioteca subversiva do meu pai (Ramos-Horta 1994: 92).

22O depoimento de Ramos-Horta oferece pistas sobre o cenário de construção ideológica dos movimentos anticoloniais no Timor-Leste, despoletados depois da notícia sobre a mudança do regime em Lisboa. Tendo em conta, ao menos, o cenário inicial da ASDT, percebe-se o rol de referências aberto, nada ortodoxo, e sobretudo indica que o ímpeto anticolonial advinha da tomada de consciência sobre a pobreza popular e derivada crítica ao salazarismo colonialista. A menção a Soeiro Pereira, escritor da escola neo-realista portuguesa vinculado ao Partido Comunista Português, mas sobretudo conhecido pela denúncia de seus retratos sociais da pobreza de crianças e trabalhadores – este é o mote de Esteiros, a obra mencionada – pode apontar para um azo mais intrinsecamente de crítica local e menos atrelado ao debate mais amplo das ideologias políticas que dominavam o debate de estudantes durante a Guerra Fria. Além de Soeiro Pereira, a menção de ter tido acesso aos escritos de Cabral e Mondlane a partir de uma antropóloga norte-americana também sugere o relativo isolamento da cena ideológica dos jovens independentistas de Díli. A menção a Mário Soares, advogado exilado, fundador do partido socialista em 1973 e que seria uma das figuras-chave da transição portuguesa posterior ao 25 de Abril é, também, relevante. Tomados no conjunto, essas referências sugerem tudo menos ortodoxia ideológica. Sobre isso, convém atentar para o seguinte:

O Marxismo nunca me interessou. Das poucas vezes que começava as primeiras linhas desistia por achar demasiado complicado. Social-Democracia era para mim e para a maioria dos meus colegas o modelo de sistema político e de desenvolvimento que mais nos impressionava. Representava justiça social, distribuição equitativa das riquezas do país, uma economia mista e um sistema parlamentar com amplas liberdades democráticas (Ramos-Horta 1994: 92).

23Ramos-Horta indica claramente sua preferência pela social-democracia. E este ponto será alvo de muitas críticas originadas do chamado “grupo de Lisboa”, como logo se verá (no cenário da Fretilin). Retenhas, nesse momento, este postulado-base da ASDT. Em outros trechos do seu livro são claras as indicações sobre a influência Partido Social-Democrata Sueco (PSD) de Olof Palme, bem como do Partido Social Democrata alemão de Willy Brandt, além de Mário Soares, claro. Ora, esses pontos merecem uma reflexão. No seu bojo, as referências ideológicas apontam para um posicionamento alheio ao suposto sistema bipolar da Guerra Fria. Nem Estados Unidos, nem União Soviética. Tampouco há referência da China maoísta nesse momento. Como membros de uma elite cultural lusitanizada, o ponto de fuga indica a presença da esquerda democrática europeia, mistura à força anticolonial dos textos de Cabral e Mondlane, mas sem, entretanto, ecoar o apelo mais forte à guerrilha – lembre-se, a este respeito, o simbolismo e a força persuasiva emanada pela Independência da Argélia e de como isso incentivou a radicalização dos movimentos anticoloniais (Byrne 2016).

24Outra associação formada, em 27 de maio, é Associação Popular Democrática Timorense (APODETI). Este era movimento que defendia a integração de Timor português à Indonésia. O cônsul indonésio E. M. Tomodok seria uma figura de grande influência para o grupo. Em geral, a APODETI não conquistou muitos adeptos, mas tornou-se o maior rival da opção pela independência de Timor. Foi principalmente através desse grupo que a Indonésia atuava dentro do próprio Timor português em prol da anexação.

25É importante ressaltar que o contexto de instabilidade na região que engloba a Indonésia e a Austrália se somava às óbvias instabilidades políticas no cenário do fim do colonialismo português e que foram operadas no sistema a partir da Revolução dos Cravos. Lima (2002: 177) chama atenção para a “cumplicidade regional” existente entre os regimes liderados por Jacarta e por Camberra. Ambos possuíam concordâncias e interesses na integração de Timor português à Indonésia. Seja pela inviabilidade econômica ou pela possibilidade de instabilidade política na região – lembre-se do final da Guerra do Vietnã –, seja mesmo pela ausência de uma elite capaz de dirigir um governo autônomo, a anexação parecia inevitável em algum momento. Ou seja, do ponto de vista estratégico da geopolítica, isso resulta em uma pressão regional desfavorável a independência do Timor-Leste.

Da radicalização da transição à aceleração da independência

26Posto esse panomara inicial, passamos a dar ênfase às conexões existentes dentro da ASDT-Fretilin no decorrer de 1974 e 1975. A análise das notícias divulgadas pelo períodico Nacroma demonstram como a efervecência política portuguesa, no contexto da Revolução dos Cravos, influênciou a políticia timorense. A ASDT é um objeto de grande valor para observar o que se propõe, por ser o partido de maior expressões e adesão popular no território timorense. Mais do que isso, sua própria transformação em Frente política ampla composta por diversas correntes de esquerda com foco na luta pela independência, em setembro de 1974, é, por si só, uma evidência cabal do que se defende neste texto.

27No dia 11 de setembro de 1974, é anunciada a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (Fretilin), surgida a partir de uma discussão dentro da ASDT para transformar a plataforma da associação em algo mais amplo. Segundo Ramos-Horta (1994: 97), “decidiu-se assim avançar com a criação de uma frente ampla, politicamente mais agressiva e bem definida”. Concomitante às discussões sobre a formação de uma frente ampla, um grupo de estudantes timorenses que faziam parte da Casa dos Timores de Lisboa desembarcaram em Díli em setembro de 1974. Eles logo aderiram à Fretilin. Sua participação promoveu uma radicalização do discurso, tensionando ainda mais as articulações para a transição do regime no Timor. As chamas do Verão Quente de Lisboa, em 1975, irão incendiar a cena política em Díli.

28Logo após a fundação da ASDT, iniciou-se a produção do periódico Nacroma (1974a). Embora politicamente mais moderado, o tom de suas primeiras edições também reverberava referências dos movimentos de libertação da África lusófona, como PAIGC, MPLA e Frelimo. Note-se que seu discurso não possuía um caráter fortemente anti-português, nem muito menos anticolonial ou anti-imperialista. Contudo, com a chegada do grupo de timorenses que vinham de Lisboa, esse quadro político irá sofrer importantes alterações. A partir da segunda edição, o Nacroma se torna uma publicação da Fretilin (e não apenas da ASDT). Ou seja, para um adequado entendimento do surgimento da Fretilin deve-se perceber o lastro da plataforma política da ASDT e sua transformação a partir do influxo de radicalização política trazido pelos estudantes timorense recém-chegados a Díli, vindos de Lisboa.

29A partir da segunda edição, observa-se o uso cada vez mais frequente do termo revolução como parte importante do processo para a independência. Na edição de número 4, por exemplo, lê-se: “Nada evolui sem transformação e transformação quer dizer ou implica ‘revolução’” (Nacroma 1974d: 1). Aumenta também a referência aos movimentos de libertação da África lusófona. Na quinta edição, homenageia-se Josina Machel intitulado “As vidas e as causas justas” (Nacroma 1974e: 4), apresentando sua trajetória de luta e o uso como inspiração para a luta timorense. A busca por uma situação análoga entre Fretilin e Frelimo é evidente, apesar da óbvia diferença de trajetória histórico-política – afinal, a frente política moçambicana data de 1962. Tratava-se também, de uma inserção no cenário de apoio internacional, algo consistente por parte dos movimentos africanos aderiram à estratégia da guerra de guerrilha contra o colonialismo português, mas um posicionamento factualmente inexistente naquela colônia longínqua do sudeste asiático. No mesmo sentido, são visíveis as críticas aos perigos do neocolonialismo, o que naquele contexto significava um entendimento de que a independência só seria alcançava quando houvesse uma revolução socialista – em postulado-chave da alternativa revolucionária que associava colonialismo e capitalismo. Veja-se, neste ponto, um considerável distanciamento das primeiras linhas escritas pela ASDT (de cariz social-democrata, como exposto anteriormente). Essa diferença semântico-política denota claramente a pressão à montante do “grupo de Lisboa” dentro da Fretilin. Eis o cenário de aceleração política onde, em Díli, paulatinamente se irá ecoar a radicalização política característica do Verão Quente português.

30É a partir deste momento que a influência dos novos integrantes, oriundos da Casa dos Timores se observa – e que se compagina ao lançamento da Fretilin: uma maior inclinação revolucionária, com ataques mais agressivos ao colonialismo e ao “imperialismo” português. Aos olhos de Ramos-Horta (1994: 97), o grupo de timorenses chegado de Portugal trazia uma “febre do esquerdismo estudantil que reinava na Casa dos Timores” em Lisboa. Esse grupo, formado por estudantes universitários, trazia o ativismo voluntarista que deu o tom da crise do spinolismo e da radicalização do PREC. Entre eles, havia Abílio Araújo e sua esposa, Guilhermina, estudantes de economia, Antônio Duarte Carvalho, estudante de direito, Vicente Reis, de agronomia, entre outros. Os estudantes pretendiam formar outro partido. No entanto, decidiram juntar-se à Fretilin após verem o novo projeto sendo construído (Ramos-Horta 1994).

31A presença do grupo de estudantes gerou um embate quanto à escolha entre manter a social-democracia como modelo para a Fretilin ou alinhar o discurso às vertentes mais radicais do marxismo. Com a chegada dos estudantes, formaram-se facções e rixas dentro da Frente recém-criada. Os estudantes vindos de Lisboa tinham significativa afinidade com o marxismo, possuíam estudos sobre obras de Marx, Lenine e Mao – livros e referências que ainda não haviam chegado ao “Timor português”.

32A Casa dos Timores originou-se da iniciativa do governo português de criar a “Casa dos Estudantes do Império”, em 1948. Primeiramente, era voltada a estudantes africanos das colônias que foram estudar em Portugal, mas ainda não havia menção a estudantes timorenses. Passaram por essa Casa lideranças importantes dos movimentos de libertação nas colônias portuguesas, como Agostinho Neto, do MPLA, e Amílcar Cabral, do PAIGC, os quais influenciaram a Fretilin (Silva 2011). A Casa dos Estudantes do Império passou a contar com um maior número de timorenses no decorrer da década de 1960 até 1970. Lá, eles tiveram contato com os movimentos anticoloniais. A Casa de Timor só passou a existir em janeiro de 1974, devido à maior demanda de estudante timorenses em Lisboa, sendo um centro cultural timorense que mobilizava servidores públicos, estudantes e interessados em geral (Silva 2011). Após a Revolução dos Cravos, um grupo de timorenses da Casa de Timor assumiu a administração da mesma, que passou a se chamar Casa dos Timores. Esse grupo estava mais alinhado aos movimentos de libertação das outras colônias portuguesas em África.

33Importa salientar que a troca do nome para Casa dos Timores já reflete o cenário de mudança política posterior à Revolução dos Cravos. Levando em conta as informações contidas em Tribess (2022), ressalta-se que a fundação da Casa do Timor – derivada da Casa dos Estudantes do Império – se deu em 26 de janeiro de 1974, portanto ainda nos estertores do antigo regime. Em 27 de maio de 1974 ocorre o “rebatismo” da casa enquanto Casa dos Timores – e isso depois do o MFA ter dado o devido aval revolucionário e legalizador.

34Entre os membros da Casa dos Timores estava Abílio Araújo, que fazia parte do Movimento de Reorganização do Partido do Proletariado (MRPP), de viés maoísta e à esquerda ao próprio Partido Comunista Português (PCP), alinhado ao “comunismo soviético”. Segundo Silva (2011), os membros da Casa dos Timores tinham relações com o Movimento Popular Anti-Colonial (MPAC) que existia dentro do MRPP com o intuito de construir uma rede de relações com os movimentos anticoloniais em África, bem como em defender a independência para as colônias. Através do MRPP, os indivíduos da Casa dos Timores tiveram contato com o PAIGC e com Amílcar Cabral, e aprenderam sobre os métodos de alfabetização do pedagogo brasileiro Paulo Freire.

35Parte dos membros da Casa dos Timores foram para Timor português e juntaram-se à Fretilin, levando a bagagem vivida em Lisboa. No entanto, antes da ida do grupo a Díli, a Casa ainda se dividia entre apoiadores e não-apoiadores da Fretilin. Inicialmente, ao longo de 1974 e até a transformação da ASDT em Fretilin, a Casa dos Timores se configurava como uma força pela independência fora do Timor português, ainda não vinculada à Fretilin. Mais radical que a ASDT, alinhada ao comunismo maoísta e ligada mais diretamente aos movimentos de libertação em África, a Casa dos Timores chegou a produzir um programa próprio, que posteriormente foi usado como o programa político da Fretilin (Silva 2011).

36Com a transformação da ASDT em Fretilin, os membros da Casa dos Timores decidiram juntar-se à Frente em vez de fundar outro movimento no ainda Timor português. Parte do grupo que ficou em Lisboa fundou o Comitê de Ação da Fretilin, que seria um braço da Frente em Lisboa, e teria um papel importante em dialogar com os movimentos de libertação em África, principalmente em 1975. Foram os estudantes que levaram para as terras timorenses obras como as de Mao e outros autores marxistas que não circulavam anteriormente no território (Silva 2011). Vale dizer que foi este grupo que construiu os primeiros programas de educação popular da Fretilin, inspirados no pedagogo brasileiro, Paulo Freire, e seu trabalho junto ao PAIGC na Guiné-Bissau.

37A Casa dos Timores de Lisboa possuiu significativa importância para a organização política de timorenses e para sua participação na rede transnacional anticolonial. Merece atenção, portanto, a existência de projetos de independência dissonantes dentro da própria Fretilin, particularmente no grupo oriundo de dentro do Timor (as elites social-democratas) e de fora do Timor (os jovens estudantes de Lisboa) que ecoavam a retórica maoísta, particularmente presente no MRPP (Cardina 2011).

38Tribess (2022: 4) ressalta a importância da Casa dos Timores para a formação política e intelectual dos que iriam integrar a Fretilin, a partir do “impacto da vida em Lisboa na formação de uma mentalidade anticolonial e que levou ao engajamento político de tantos jovens”. A mesma autora ressalta que:

além de vivenciarem a violência colonial na metrópole, estes jovens também percebem como aquele imaginário que tinham sobre os portugueses quando ainda estavam em Timor não coincide necessariamente com a realidade em Portugal. Esse choque entre o imaginário colonial construído em Díli e a experiência na metrópole é fundamental para que haja uma ruptura no pensamento romantizado sobre a vida na Europa e sobre o poder colonial e, dessa forma, fomenta a articulação política desses jovens.

39Mais do que isso, a Casa dos Timores foi fundamental para criar uma solidariedade internacional, principalmente com os movimentos de libertação em Moçambique, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Com representantes da Fretilin em Lisboa, oriundos da Casa dos Timores, no decorrer de 1974, mas principalmente em 1975, foi possível estabelecer o contato com integrantes do PAICG, do MPLA e da Frelimo. Segundo Tribess (2022), “foi através dos e das jovens que voltavam para Timor com diversos livros e ideias, que os ideais marxistas passam a fazer sentido também para o contexto real de Timor-Leste”. Dessa forma, chegam a Timor novos textos e autores – como Franz Fanon e Aimé Césaire – que levaram às transformações dentro da ASDT-Fretilin.

40Em 1975, concomitante aos eventos do Verão Quente e ao aumento das tensões políticas entre esquerda e direita em Portugal, o contexto de Timor português acompanha o acirramento de conflitos. Ao longo deste ano, as intenções de anexação por parte da Indónesia se tornam cada vez mais evidentes, assim como a “cumplicidade regional” entre Camberra e Jacarta também se escancara. Isso ocorreu tanto pelo amadurecimento e crescimento da Fretilin, que representava uma ameaça à estabilidade política da região (por ser considerada “comunista”), quanto pelo próprio cenário instável em Portugal, que revelava uma ascenção da extrema-esquerda portuguesa, algo que desagradava o regime anticomunista de Suharto na Indonésia.

41Ora, é exatamente neste mesmo contexto que a Fretilin e a UDT decidem por afirmar uma coligação – 20 de Janeiro de 1975 – com o objetivo de unir forças pela independência (Amaral & Cruz 1975). O passo dado rumo a coligação teria, inclusive, agradado o ministro Almeida Santos, na altura diretamente ligado aos processos de transição política nas colônias. Uma versão em inglês foi produzida e lançada no dia seguinte pelo então Secretário-geral da Frente, José Ramos-Horta, para ampliar a circulação do comunicado, especialmente na Austrália, onde organizações não-governamentais mobilizavam-se em apoio a independência do Timor-Leste.

42Essa coligação se mostrou fugaz, entretanto. Lembre-se que nesse mesmo mês de Janeiro de 1975 ocorria, no Algarve, o Acordo de Alvor que tentou gerir o processo de Independência de Angola (e que também se mostrará um falhanço). Ao mesmo tempo, o governo português preparava-se para realizar uma cimeira em Macau – em 26 e 27 de Junho do mesmo ano –, com o objetivo de formar um plano de descolonização para o caso timorense (Feijó & Pereira 2022).

43Uma série de eventos invibializaria a efetivação da coligação entre Fretilin e a UDT. Do ponto de vista da Fretilin, há menção da “corrupção” da UDT pelo trabalho de bastidor feito pela Indonèsia através da APODETI. Do ponto de vista da UDT, é mencionado a retórica de radicalização “comunista” dos pronunciamentos da Fretilin. As tensões entre as forças políticas timorenses se intensificam, e geram resistência da Fretilin em participar da cimeira de Macau. Somam-se a isso as tensões do Verão Quente em Portugal, que resultam em uma menor atenção para o caso timorense e a efetivação do plano de descolonização.

44Nesse interim, o vice-presidente da Fretilin viaja a Lisboa na busca de apoio para a independência. Lobato afirma que, estando em Lisboa, buscou exigir a dissolução da APODETI, vista como uma ameaça à independência, visando conquistar algum apoio em Portugal. No dia 20 de maio, Nicolau Lobato afirma ter conquistado apoio do PCP para a Fretilin: “O PCP vai pressionar o Governo Português a nosso favor, a nível de Partido e a nível de Governo como membro da coligação” (Lobato 1975). No mesmo documento, Lobato afirma ter se reunido com membros do MPLA, pedindo apoio junto do governo português para a dissolução da APODETI e pela independência do Timor-Leste. A mesma movimentação pode ser observada por parte do timorense em relação ao PAIGC e a Frelimo – com intenção de contatar Cuba, Argélia e a Tanzânia. Salienta-se também que, em 25 de junho, integrantes da Fretilin foram a Lourenço Marques, a convite da Frelimo, para participarem da cerimônia de independência de Moçambique.

45Lembre-se que, neste momento, em Lisboa, os ventos da revolução estavam agitados. É exatamente entre Janeiro e Junho que ocorre o pacto entre o Movimento das Forças Armadas e os partidos políticos. É também nesse ínterim que ocorre a eleição para a Assembleia Constituinte em 25 de abril de 1975, com a vitória eleitoral do Partido Socialista de Mário Soares e do Partido Popular Democrático de Sá Carneiro, deixando o Partido Comunista Português de Álvaro Cunhal em uma posição de menor relevo. É neste momento em que se agravam as tensões entre a legitimidade revolucionária e a legalidade eleitoral no processo de transição em Portugal (Rezola 2017).

46Contudo, e tal como acontecido em Angola – onde a eleição em Lisboa indiretamente condiciona a não-realização do plebiscito agendado desde Alvor (Paredes 2022) –, em Timor o resultado será a derrocada da almejada coligação entre UDT e Fretilin. Explica-se. A própria precariedade institucional das associações nacionalistas timorenses acabaram por ser muito abaladas pela radicalização do Verão Quente de 1975 – o que, para muitos, significou a “traição” dos auspícios revolucionários em Lisboa – sendo o próprio Mário Soares apelidado de o “Kerenski” português, em franca alusão aos mencheviques russos. Importa reter, a este respeito, que as propaladas críticas à suposta acomodação dos mais engajados anseios revolucionários na social-democracia portuguesa – ou no “socialismo de gaveta” de Soares – terão efetio rebote nas escalas das ex-colônias portuguesas – e isso amarra a história da breve primeira independência do Timor-Leste à turbulência política posterior às independências, por exemplo, de Moçambique e Angola. O que se defende, neste ponto, é a articulação destas diferentes transições políticas em curso, seja em Lisboa (para o regime constitucional), seja em Maputo e Luanda (com as guerras civis) – e também em Díli (com a malograda invasão Indonésia). A dispersão das gramáticas políticas no cenário da Guerra Fria Global foi mobilizada intensamente na dinâmica do fim do império português. As turbulências da transição política portuguesa depois do Cravos trarão efeitos particulares do contexto regional do sudeste asiático.

47Para além deste ponto, a aceleração da retórica terceiro-mundista propalada pelo grupo da Casa dos Timores dentro da Fretilin, em alguma medida, abre os espectro da neurose anticomunista no cenário da “batalha por corações e mentes” típica da Guerra Fria. Em Lisboa, neste momento, sobreleva-se o chamado Grupo dos Nove e apoiado por Almeida Santos e Mários Soares caucionando a via eleitoral. Observe-se que não há grupo análago em Díli – particularmente no sentido de conter a retórica mais revolucionária. Não surprende, assim, que a turbulência política do cenário timorense acabará mesmo por ser levado à guerra civil e o suposto “golpe da UDT” proclamado em Agosto de 1975. Conforme explicam Feijó e Pereira (2022), pode-se dizer que ao cenário de instabilidade institucional na transição timorense se adicionam o calor retórico revolucionário e a neurose anticomunista própria da Guerra Fria (à qual foi usada também nos bastidores pela Indonésia).

48Portanto, deve-se apontar a direta concomitância e a correlação entre a turbulência do Verão Quente português e as tensões entre as forças de esquerda da Fretilin e as forças anticomunistas compostas pela UDT e APODETI. Agregue-se a este combo os interesses estratégicos do governo de Suharto e às estratégias anticomunistas manietadas através dele em articulação a Camberra, Londres e Washington. Tudo somado, fica clara a percepção da escalada das tensões, resultando na guerra civil timorense, acontecida entre agosto e setembro de 1975. Atortoada nas suas próprias questões, o governo português se mostrou incapaz de controlar o conflito, retirando-se do território antes da invasão da Indonésia. A Fretilin, sendo a força vencedora da guerra civil, passa a administrar o território quase integralmente, e proclama a independência de Timor-Leste em 28 de novembro de 1975. No dia 7 de dezembro, as forças armadas indonésias avançam pelo território, dando início à anexão, que contou com apoio britânico e estadunidense (Oliveira 2007).

Considerações finais

49É certo afirmar que a Revolução dos Cravos não é um objeto exclusivo de mudança política para Portugal. O efeito global do 25 de Abril foi perceptível na colônia portuguesa mais longínqua. A partir deste evento, maior liberdade foi dada aos timorenses para discutirem sua independência, e com isso, formar associações políticas, também com forte vínculo a influências políticas portuguesas. Seja conexões com o spinolismo pela UDT, seja pela social democracia de Mário Soares e o PS ou pela influência da Casa dos Estudante do Império (e posteriormente a Casa dos Timores com ligações ao maoísmo pelo MRPP), os acontecimentos que levam e sucessem a Revolução dos Cravos geraram forte impacto no processo de independencia de Timor-Leste.

50As redes formadas pela Fretilin, a partir de Portugal e da existência de diferentes correntes políticas, não evitaram a invasão indonésia do Timor. A compreensão da complexidade deste cenário político do final do Império Português no Sudeste Asiático demanda que se veicule o 25 de Abril de 1974 e de 1975 de Lisboa ao 28 de novembro de 1975 em Díli. A almejada independência do Timor-Leste – de brevíssimos dez dias de duração –, demorará ainda 24 anos para se realizar na sua plenitude.

51Como hub de descolonização, a Lisboa do Verão Quente de 1975 difundia suas dinâmicas revolucionárias para as periferias do regime colonial. A colônia mais longínqua do Sudeste Asiático ecoará as alternativas política da metrópole, inclusive no sentido da descolonização. Contudo, menos consistentes, suas instituições e seus protagonistas não terão a mesma resolução democrática, como acontecido em Portugal. No Timor-Leste, o fim do colonialismo português produz a ocupação estrangeira – ou dever-se-á dizer outra ocupação estrangeira, ou ainda, outra colonização? Certo é que o movimento do general Suharto e ocupação do “Timor-Português” na Indonésia – sobretudo pela violência que lhe foi intrínseca – irá mobilizar a atenção não apenas da ONU, mas também de diversas organizações não-governamentais pelo mundo afora. Isto, porém, consubstanciará outra fase da longa trajetória da Independência do Timor-Leste, só depois alcançada em 2002, o que, por ventura, possa ter surpreendido muitos dos líderes da Revolução dos Cravos. Este ponto, contudo, merece maior desenvolvimento, estrapolando o escopo deste trabalho.

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Bibliographie

Fontes

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Notes

1 “Entrevista 25 Abril: Em ‘maus lençois’ com a PIDE, revolução permitiu a Ramos-Horta ficar em Timor”, Luso.eu – Jornal das comunidades, https://www.luso.eu/geral-sociedade/entrevista-25-abril-em-“maus-lençóis”-com-a-pide,-revolução-permitiu-a-ramos-horta-ficar-em-timor.html, consultado em 11 de julho de 2024.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Marçal de Menezes Paredes et Bianca Obetine Magnus, « Descolonização do Timor-Leste: desdobramentos da Revolução dos Cravos na colônia mais longínqua (1974-1975) »Lusotopie [En ligne], XXIII(1-2) | 2024, mis en ligne le 01 décembre 2024, consulté le 18 mai 2025. URL : http://journals.openedition.org/lusotopie/8537 ; DOI : https://doi.org/10.4000/13e4x

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Auteurs

Marçal de Menezes Paredes

Dr., Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
marcal.paredes[at]pucrs.br

Bianca Obetine Magnus

Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
bianca.magnus[at]edu.pucrs.br

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