1No ano em que passam 50 anos sobre o 25 de Abril, João Céu e Silva, historiador e jornalista, oferece-nos um ensaio que se destina tanto a especialistas de várias área das ciências sociais e humanas – estudos políticos, ciências militares, história contemporânea e das ideias, jornalismo, etc. –, como ao público em geral. Um dos méritos deste livro está nesta flexibilidade, na clareza da escrita, na explicação breve de datas e episódios, na diversidade da bibliografia que o autor consultou e nas entrevistas a individualidades que fizeram a Revolução Portuguesa de 1974-75 ou que sobre ela têm pensado.

2João Céu e Silva investigou, interpretou, recorreu a fontes escritas mas também orais, a depoimentos de, entre outros, António Ramalho Eanes, José Manuel Barroso, Jaime Nogueira Pinto e Fernando Rosas, cada um com a sua própria visão dos sucessos e insucessos de Spínola e da própria Revolução dos Cravos. A problematização de tudo é, aliás, uma marca dos livros de Céu e Silva, o que muito os enriquece e lhes dá atualidade e perenidade. O General Que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães não destoa em qualidade de outros livros do autor, como 1961 – O Ano Que Mudou Portugal e 1975 – O ano do Furacão Revolucionário. Com 30 capítulos, que valem em si mesmos mas também enquanto conjunto, é uma obra que resgata do esquecimento a obra de António de Spínola Portugal e o Futuro e vem enriquecer a caudalosa bibliografia sobre o 25 de Abril.

3A originalidade deste ensaio começa no título, que, invulgarmente longo mas apelativo, é um resumo da tese que João Céu e Silva sustenta: a de que o livro Portugal e o Futuro, publicado no dia 22 de fevereiro de 1974, constituiu um golpe de Estado que se antecipou ao golpe de Estado propriamente dito do dia 25 de abril de 1974. Um golpe de Estado que não determinou o fim imediato do regime de Marcelo Caetano, mas nem por isso foi um golpe falhado. A publicação, o impressionante sucesso de vendas (primeira tiragem de 50 mil exemplares e, estima-se, 230 mil no total) e o impacto da leitura de Portugal e o Futuro culminam no golpe de Estado que se haveria de concretizar dois meses depois.

4O General Que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães é a «biografia de um livro» (p. 307), a narrativa das origens e das consequências de Portugal e o Futuro, não a biografia do homem que o escreveu. Ainda assim, ao longo das 310 páginas do volume, João Céu e Silva vai delineando o perfil de António de Spínola, apoiado quer em muito do que se escreveu sobre o general do monóculo quer em depoimentos recentes de quem conheceu Spínola e o estudou. A síntese que nos é apresentada no antepenúltimo parágrafo condensa, com grande expressividade e exaustividade, a imagem a que Spínola não conseguiu escapar no seu próprio tempo:

O general, ao contrário do seu livro, é um perfeito retrato das figuras trágicas que só a ficção é capaz de inventar e que, como um ator, compõe o seu autor com um falso monóculo, botas altas de Cavalaria em pleno mato, as luvas brancas e um pingalim. Não é por isso estranho que esta figura inspirasse os portugueses e os militares após lerem o manifesto sedutor para os tempos de apatia nacional. A representação do general não se ficaria por esse aplauso generalizado, teria direito a outros atos: queda em desgraça, fuga, exílio, prisão e, num volte-face final, a graduação em marechal. (p. 307)

5Esta é a imagem que hoje continua a prevalecer e que, aliás, rapidamente se instalou na sociedade portuguesa em relação a António de Spínola, relegado, em larga medida por culpa própria, para «o lixo da da História» (p. 305), como sempre ou quase acontece aos vencidos. Sem pôr em causa os erros de Spínola, este livro de João Céu e Silva quer posicionar a obra Portugal e o Futuro no lugar que é seu por direito: o de um dos mais relevantes fatores que desencadearam o golpe militar do dia 25 de abril de 1974. José Manuel Barroso, em resposta à pergunta de João Céu e Silva sobre se «Portugal e o Futuro é um primeiro 25 de Abril», responde com um apontamento importantíssimo, pouco devidamente notado. Refiro-me ao contributo do livro para a superação do motivo que primeiro deu origem ao descontentamento dos militares e ao seu desejo de derrube do Governo: a diferença, em termos de progressão na carreira, entre os capitães da Academia Militar e os milicianos, que os primeiros consideravam extremamente injusta. Portugal e o Futuro permitiu que a dinâmica dos militares transcendesse o conflito corporativo e atingisse o nível ideológico, diz João Céu e Silva. Muitos dos indecisos ou indiferentes acabaram por aderir ao movimento, que, na verdade, ultrapassou em muito o que Spínola pretendia. O objetivo do general era levar o poder político instalado a aceitar que a solução para os conflitos nas colónias teria de ser política, não militar. Mas veio a suceder o que Spínola temia. O movimento resvalou para uma revolução de esquerda, que rapidamente se radicalizou, muito contrária aos objetivos do general: retardamento da descolonização e opção pela via federalista, e limitação de liberdades e direitos dos cidadãos.

6António de Spínola é uma figura complexa. Herói do Ultramar (para uns, merecidamente; segundo outros, com muito de mistificação), viria a envolver-se num encadeamento de episódios complexos e de difícil avaliação. Certo é que Spínola tinha vontade de poder e queria desempenhar uma função para a qual acreditava estar destinado. A seu favor podemos salientar, como faz João Céu e Silva, a determinação em não deixar cair Portugal numa ditadura comunista, portanto de sinal contrário à do regime anterior. António de Spínola queria uma transição progressiva e ordenada, realizada num ambiente de disciplina e ordem social, sem os excessos que rapidamente se anunciaram e vieram a ser a regra. Contra ele, por mais ilegíveis que sejam certos momentos, não há como não ver a sua pertinácia em bloquear a total democratização do país e, quando derrotado, em recusar remeter-se ao silêncio ou, pelo menos, à moderação (no exílio, tudo fez para criar um exército capaz de tomar Portugal de assalto, promoveu e dirigiu organizações de extrema-direita que praticaram diversos atentados).

7Na entrevista que António Ramalho Eanes concedeu a João Céu e Silva, destaca-se esta afirmação significativa: «não somos um país que reflete» (p. 296). Não há como negar a validade destas palavras, mas também é inegável que livros como O General Que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães procuram contrariar esta tendência. Dito de outro modo: este livro é um contributo valioso para que Portugal reflita sobre si próprio e não esqueça que os itinerários da História são imprevisíveis e exigem muita cautela e ponderação, sob pena de se abrir caminho a novos autoritarismos (esquerdistas ou de direita). Por isso mesmo, também os vencedores merecem ser trazidos para a luz da História, para aí serem avaliados com a máxima objetividade possível. João Céu e Silva resgata um vencido (um homem e um livro), alguém que perdeu o rumo e arrastou consigo Portugal, e, sem escrever contra o homem nem contra o militar e o político, convida-nos a repensá-lo e a repensar os acontecimentos de um dos períodos mais intensos da História de Portugal. Induz-nos também a pensar sobre o ser humano e os caminhos do poder, que não se fazem sem muitos dos defeitos em que Spínola foi pródigo, pelo seu próprio caráter e pela força das circunstâncias políticas e sociais: a falsa coragem (ou, pelo menos, não tão mítica), a vaidade, a arrogância, a soberba, a mesquinhez, a cobardia, a crueldade, a ilusão, a ingenuidade.

8Não podemos incorrer no erro de acreditar que tudo está dito sobre a Revolução Portuguesa de 1974-75 e sobre uma persona non grata como Spínola, que é um dos intervenientes de todo esse processo. António de Spínola teve poder militar e político, soube o que é beneficiar de carisma, mas também sentiu o que significa cair em desgraça e tudo perder. Recebeu o poder dos oficiais intermédios que fizeram o 25 de Abril, mas não conseguiu impor o seu projeto político (um regime presidencialista forte ou mesmo autoritário). Para tal, estava no seu programa a neutralização do Movimento das Forças Armadas e as fações revolucionárias de esquerda (mais e menos moderadas) das Forças Armadas. Não só não foi capaz de concretizar esse objetivo como acabou por ser derrotado, após o 28 de Setembro (manifestação da «maioria silenciosa») e o golpe militar falhado de 11 de Março, que foram tentativas de usurpação do poder que conduziram a outras usurpações de poder e às derivas revolucionárias que se sucederam (nacionalizações apressadas e sem critério, ocupações de terras e casas, greves, reivindicações de todo o tipo, destruição da economia, etc.). De resto, como, ao longo do livro, com diversos argumentos, nos mostra João Céu e Silva, perante o protagonismo assumido por Spínola (presidente da Junta de Salvação Nacional e presidente da República), que se preparava para anular o programa do MFA, este movimento desistiu de se afastar da vida política.

9Não sabemos qual seria o Portugal de António de Spínola, que fez a sua história e fez História, em parte sozinho e em parte, sobretudo, acompanhado, por quem o seguia convictamente ou o quis instrumentalizar; resta-nos pensar como poderia ter sido o Portugal de Spínola e como é o país que temos. Um livro que foi «enclausurado» (p. 296), como afirmou Ramalho Eanes a João Céu e Silva, está agora de novo aberto, para que, se quisermos, possamos continuar a abri-lo e a avançar para a interpretação dos erros e das virtudes que nele se encerram (que são os enganos e os sucessos do homem que o escreveu).