1Os leitores/as interessados/as em compreender e explicar a sociedade portuguesa e conhecer o legado das lutas populares e, em especial, das classes trabalhadoras, têm motivo para enaltecer e elogiar os esforços de Raquel Varela e Roberto della Santa (2023) ao publicarem a Breve História de Portugal, nomeadamente pela avalanche de nova informação, posicionamento crítico e interpretação sobre a relevância quer das lutas e movimentos de libertação anticolonial, quer dos movimentos sindicais e outros em Portugal. Com efeito, como referem os autores, considerando a crise económica e ambiental no seio do modo de produção capitalista na atual era de globalização neoliberal, de concentração do capital financeiro e de devastação socio-espacial, os efeitos nefastos sobre as classes trabalhadoras traduzem-se no aumento exponencial da pobreza relativa e inclusive absoluta. A fim de alterar esta realidade, impõe-se, para além da necessidade de organização e horizonte de utopia, a capacidade de intervir no presente de forma a transformar a sociedade no futuro, sendo para tal imprescindível ter um ajustado conhecimento e memória do passado. Os autores, bem longe da alegada neutralidade axiológica ou política do positivismo moderno, assumem de modo claro um posicionamento simultaneamente empírico-crítico sem ser empiricista e comprometido, tomando partido pelos ‘de baixo’. Neste quadro são de salientar na sua obra o antinacionalismo metodológico (ou seja, a ligação constante da realidade nacional com a ibérica, a europeia e internacional), a centralidade da praxis (interrelação entre estrutura e ação, entre o macro e o micro), o método dialético na análise das revoluções (o antes, o durante e os impactos subsequentes), embora o conceito de revolução, utilizado de modo indistinto a diversos países e situações díspares, poderia ser densificado. Neste trabalho, os autores, assumindo uma interna divisão de trabalho – ciências sociais/sociologia por parte do Roberto della Santa e história por parte da Raquel Varela –, consideram esta sua obra como um modesto contributo para uma síntese da história contemporânea de Portugal, o que me parece digno de registo como postura em torno de questões bem complexas.

2Depois do período da Restauração entre 1815-1830, a nível internacional, os autores assinalam como, entre 1830 e 1848, a par duma tensão entre a nobreza e a burguesia, emerge uma crescente autonomia das classes trabalhadoras em relação à burguesia, a começar pelas barricadas na Revolução em Paris em 1830; a exigência da extensão do sufrágio universal; a penetração das ideias igualitaristas e socialistas (vg. Auguste Blanqui) e, apesar do abafamento da revolução em Lyon e noutros locais em 1831, a relevância do cartismo na Inglaterra como movimento fundador do sindicalismo operário; a importância da organização e da força dos operários/as pelo facto de «estes serem muitos e os burgueses poucos»; a necessidade não só de organização mas também da ação; a reivindicação da proibição do trabalho infantil e limitação da força de trabalho feminina a 8 horas diárias, entre outras.

3Olhando a organização desta obra, para além da introdução que contextualiza a transição ibérica hipertardia para o capitalismo, os autores desenvolvem logo na primeira parte o estudo sobre a formação da burguesia (glosando E.Thompson com o título Making of the Portuguese Bourgeois Class) a partir da acumulação primitiva com a colonização, o saque colonial (metais preciosos, diamantes), o tráfico de escravos, a dívida pública, a apropriação de dinheiro e terras comunais. Por outro lado, perante a emergência das brutais invasões e ocupações napoleónicas, é assinalada pelos autores a resistência popular e o alinhamento institucional com a aliada Inglaterra, assim como a subsequente dependência política e económica de Portugal em relação àquela, o que suscitaria por sua vez a contestação, a eclosão das guerras e revoluções do Sul da Europa (desde a insurreição de Cádiz e a proclamação da Constituição Liberal em 1812 em Espanha e a do Porto em Portugal em 1820). No caso português os autores apontam para a dita ‘via prussiana’, uma ‘revolução-restauração’, uma ‘revolução passiva’ da ascensão da burguesia liberal com a ruptura institucional a partir de 1820 mas sem participação popular, a extinção das corveias e dos tributos feudais, mas também a posterior desamortização, a transferência e venda bens da nobreza, da Igreja e das ordens religiosas para a burguesia. Porém, sem negar os motins, as movimentações e revoltas assinaladas pelos autores, é referida a expropriação dos camponeses, o que todavia não aconteceu na intensidade e extensão da revolução agrário-industrial inglesa, para além do facto de as forças populares terem sido, no meu entender, instrumentalizadas por diversas manobras e lutas entre o absolutismo e o liberalismo (personificadas entre o D. Pedro e o D. Miguel) e entre as diversas fações liberais.

4Os autores sublinham as repercussões das lutas entre nobreza e burguesia e desta com os trabalhadores nos movimentos no Sul da Europa, nomeadamente em Portugal, o que teve da parte da burguesia, entre 1781 e 1835, a imposição de trabalho compulsório aos mendigos sadios e asilos e prisões aos demais, de modo a evitar a ‘vagabundagem’! Por outro lado, a revolução de Setembro de 1836, segundo os autores, teria representado uma ameaça ao novo poder burguês por parte de camponeses e artesãos expropriados, sendo registada em Lisboa uma insurreição a partir de manifestações, a deserção de soldados, a prisão de oficiais por marinheiros e milícias populares; no Porto a pressão popular para descer em 50% o preço da farinha, assim como a abolição parcial da escravatura por decreto de 10/12/1836; em Santarém, se em 1821 75 proprietários se queixavam da resistência dos trabalhadores ao trabalho, em 1829 mais de 100 trabalhadores do Arsenal suspendem o trabalho e vão ao palácio real de D. Miguel, enquanto o setor mais radical nacional-popular e antibritânico no Norte desembarca em Lisboa em 1836 e impõe a Constituição de 1822. Porém, os autores evidenciam como a Revolução de Setembro de 1836 viria a ser derrotada em 1838 com massacre sangrento de mais de 100 arsenalistas assassinados entre o Rossio e o Terreiro do Paço. No Setembrismo teria havido duas frações: uma mais popular mas sem dirigentes operários; outra mais conservadora sob Sá da Bandeira e Passos Manuel. De resto, contrariamente aos miguelistas, os liberais não mobilizaram o povo; e, mais, os liberais mais conservadores ordenaram a dissolução dos batalhões dos operários arsenalistas que, resistindo, sofreram o referido massacre.

5É sobretudo com base num registo analítico da história a partir ‘dos de baixo’, dos explorados e oprimidos, que os autores, com base em documentação, dão conta das revoltas desde as dos pequenos produtores e taberneiros contra os monopólios da Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Douro ao tempo do Marquês de Pombal em 1757 (com enforcamentos, prisões, degredos), dos pescadores no Algarve, até ao ‘banditismo social’ personificado no Remexido ou no Zé do Telhado ou os mais conhecidos levantamentos camponeses/as como o da Maria da Fonte em 1846/47. Com efeito, para os autores a Revolta da Maria da Fonte (1846) e a subsequente guerra civil da Patuleia (1846-47) – os quais são designados por Carlos da Fonseca (1979) respetivamente como «movimento anticapitalista Maria da Fonte» e «revolução popular da Patuleia» (patas ao léu ou pés descalços) – e sobretudo as primeiras greves dos metalúrgicos e dos tipógrafos em 1849 teriam mudado a face do país de modo indelével. No entanto, os autores reconhecem e bem que a revolta da Maria da Fonte tinha como direção política os miguelistas e a Igreja, por um lado, e a ala radical do setembrismo, por outro, o que obrigou o governo a ceder com a revogação da Lei da Saúde e a revisão da reforma tributária. Sem negar a relevância e o impacto destes acontecimentos, a revolta da Maria da Fonte foi todavia eminentemente anti-estatal por a Lei da Saúde proibir os enterros nas Igrejas e sobretudo contra os impostos que levou as insurgentes a destruir as ‘papeletas da ladroeira’. Apesar de os setembristas formarem a Junta do Porto contra o Governo da Rainha, este será salvo pela intervenção militar estrangeira, espanhola e inglesa (Convenção de Gramido em 1847): em suma, o movimento popular foi derrotado. E a derrota das revoltas e diversos movimentos grevistas conduziu a um golpe de estado a 1/5/1851 presidido pelo Marechal Saldanha, dando lugar à Regeneração, o nome português do capitalismo segundo Oliveira Martins (1982/1883) e o período de «fabricação da burguesia» segundo Fernando Rosas (2023). Seguiu-se assim uma governação estável e hegemónica da burguesia corporizada na figura de Fontes de Melo e no fontismo em torno do rotativismo de dois partidos – o Progressista e o Regenerador –, tendo em vista a implantação de infraestruturas, obras públicas graças a capital estrangeiro, a multiplicação da máquina a vapor, apesar dalguma reticência à fabrica, a expansão do crédito, dos transportes, da eletricidade, do telégrafo e da imprensa. Não obstante esta dita estabilidade, os autores, apoiando-se também em documentação trazida por José Tengarrinha (2021), não deixam de sublinhar as frequentes greves na indústria, entre mineiros e operários agrícolas, considerando as práticas de baixos salários.

6Porém, o que merece ser especialmente relevado é a análise dos autores sobre a fase inicial da emergência das classes trabalhadoras, a revolta dos artesãos contra a proletarização, a organização dos trabalhadores na primeira metade do século xix nas greves, a criação de solidários fundos de greve, a multiplicação de jornais para dar a conhecer e consciencializar os trabalhadores (+300 jornais). É salientado pelos autores as greves nas indústrias conserveiras, entre tipógrafos, caixeiros e sobretudo a primeira greve moderna contra o trabalho noturno em 1849 pelos metalúrgicos, além de outros setores (tabacos, fiação, sabão, óleos, pólvora, fundições, serralharia, gás) em Xabregas, Alcântara e Boavista/Santos em Lisboa. E como é justamente na sequência da criação de O Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas que, apesar da ‘Lei das Rolhas’ com Costa Cabral e do Decreto de proibição de greves em 1852, os autores evidenciam os movimentos a favor do associativismo e do mutualismo, contabilizando 135 associações em 1868 e 628 em 1909, possuindo, em 1931, 570.000 sócios.

7Os autores são claros e têm o mérito de evidenciar a contradição fundamental da burguesia/capital versus proletariado na emergente formação social do século xix e a desmontagem do corporativismo (ou o alegado renascimento das corporações medievais, ainda que sob forma centralizada) sob o Estado Novo, assim como a desmistificação da ideologia de colaboração de classes, presente em certos jornais como o Eco dos Operários e, acrescento eu, sustentada por Émile Durkheim (1977/1893), um dos fundadores da sociologia e reforçada pela doutrina social da Igreja na encíclica Rerum Novarum de Leão XIII em 1891 e, posteriormente, pela Quadragesimo Ano de Pio XI em 1931, cuja influência não deve ser subestimada para o caso português.

8Por outro lado, os autores, glosando sob o título «Portugal, produtor de homens» a expressão de Orlando Ribeiro em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, dedicam um capítulo ao fenómeno emigratório ou exportação de força de trabalho, provocada pelo baixo investimento por parte da burguesia portuguesa, para diversos quadrantes geoeconómicos (Estados Unidos, Brasil, Venezuela, Argentina: mais de 1.300.000 entre 1850-1930). Com efeito, as migrações, quer internas quer externas, eram válvula de escape, de contenção do protesto (‘multidões solitárias’) e fator de descida ou manutenção de salários baixos, fenómeno diagnosticado por Marx (1974/1867) a respeito do exército industrial de reserva, para o que os autores trazem à colação a exemplar personagem de Manuel Bouça do romance Os Emigrantes de Ferreira de Castro.

9Numa segunda parte os autores evidenciam os enfrentamentos entre a burguesia (com guerras entre potências como a guerra franco-prussiana em 1870-71, com cada vez maior centralização do poder em vários Estados) e o operariado entre 1868 e 1926, enquadrando a tríade crise, guerra e revolução na península ibérica (1868-1873) com a Comuna de Paris (1871) – controlo da produção, escola gratuita, eleições democráticas, separação Igreja-Estado, abolição da pena de morte – e a emergência da Associação Internacional dos Trabalhadores e da I Internacional ao tempo de Marx-Engels. Por outro lado, os autores assinalam a fratura entre a burguesia e o movimento operário (contra reivindicações deste desde 1868), assim como a emergência do imperialismo moderno no contexto europeu e as concorrências interimperialistas nas I e II guerras mundiais. É de relevar como os autores sobre o caso português trazem ao conhecimento as revoltas contra os impostos de consumo, o significado dos direitos sociais, da relevância do sindicalismo, das greves, da solidariedade e criação de fundos de greves, das Conferências democráticas do Casino Lisbonense, animadas pela Geração de 70: Antero de Quental, José Fontana, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Manuel de Arriaga, Teófilo Braga. Por outro lado, relevam as lutas pela educação, saúde e habitação (perante os ‘pátios’ em Lisboa e as ‘ilhas’ no Porto). Como pano de fundo subjaz o que os conservadores corporativos e os liberais designavam a ‘questão social’, ou seja, como calar e apaziguar as legítimas lutas das classes trabalhadoras que importava conter; e, por fim, mas não menos importante, é assinalada pelos autores a emergência da esfera pública proletária, a par da esfera pública burguesa, nos cafés e em jornais (593 em 1900): cf. Voz do Operário, Federação e o Trabalho, Pensamento Social, o Protesto Operário do Partido Socialista, A Oficina, O Echo Metalúrgico, O Rail, A Liberdade, A Revolução, O Proletário. Os autores referem como, a par de uma educação elitista de separar o saber e o fazer, surgiram jornais de professores e outros movimentos populares como a cooperativa Voz do Operário em 1899 num país com mais de 70% de analfabetos; o retrato dos modos de vida dos burgueses/as versus os dos proletários, estes com situações de degradação, insalubridade, miséria, mortalidade infantil, nomeadamente nos referidos ‘pátios’ e ‘ilhas’; os salários abaixo do necessário para a reprodução social (cf. diagnóstico de Léon Poinsard em 1909); cuidados de saúde a nível familiar ou por via das Misericórdias mas não públicos (falta de enfermeiros/as e médicos/hospitais). Ainda nesta parte os autores, além de mostrarem o avanço mais reivindicativo e radical perante as conceções paternalistas, filantrópicas ou caritativas e inclusive sobre as conceções moderadas sobre o socialismo no Centro Promotor de Melhoramentos das Classes Trabalhadoras (Fontana, Gneco, Quental, Tedeschi, Lima, Maia), evidenciaram a ligação do movimento sindical, nomeadamente via Fraternidade Operária, com a Associação Internacional dos Trabalhadores. Mais, os autores assinalaram a combatividade de artesãos e operários, as lutas e conquistas (ainda que parciais ou não conseguidas) por melhores salários e condições de trabalho, redução do horário de trabalho, educação básica e justiça, contando no total entre 1870 e 1920 4.636 greves, das quais 2046 entre 1910-1917. Elas representariam um patamar acima das mutualidades e associações, celebrando o 1.o de Maio em 1895, não obstante a tardia implantação de partidos operários (partido como organização e como agregador da consciência de classe). Por outro lado, os autores, para além de constatarem a diminuição de remessas de emigrantes e a bancarrota em 1892, debruçam-se sobre acontecimentos desde finais do século xix, nomeadamente sobre os efeitos do ultimato inglês ou do Mapa Cor de Rosa em 1891, a decadência monárquica e o relativo abrandamento da força do catolicismo; a emergência do Partido Socialista Português em 1875 e do Partido Republicano em 1876, o surgimento com mais força do republicanismo e do sindicalismo de forte inspiração anarquista e depois comunista, ou seja, um sindicalismo revolucionário político com inúmeras greves (operários da indústria conserveira, gráficos, vendedores ambulantes, estivadores e assalariados agrícolas, caixeiros, metalúrgicos, mineiros); as manifestações contra a entrada de Portugal na I guerra mundial e subsequentes simpatias pela revolução soviética; o registo da revolta de 1891 no Porto que suscitou a ‘Lei Celerada’ anti-anarquista com prisão/deportação em 1896 e o assassinato do rei D. Carlos I e herdeiro Luís Filipe em 1908 por dois anarquistas membros da Carbonária. Por fim, os autores, para além de referirem alguns poucos ganhos (igualdade de género no casamento, separação da Igreja e Estado) ou a curta redução do analfabetismo (de 75% para 70%), verificam o não avanço no sufrágio universal e sobretudo constatam uma hostilidade e ‘traição’ dos governos republicanos para as classes trabalhadoras que, com base nos seus sindicatos, reagem com greves frequentes. Os autores chegam mesmo a colocar em perspetiva o período da I República desde 1910 até à Ditadura em 1926 como certamente instável, de aberto conflito entre burguesia e proletariado, tendo como respostas centenas de prisões e deportações, dezenas de mortos no país e até fuzilamentos de operária e operário em Setúbal. Por fim, os autores referem a autonomia organizativa com a criação da União Operária Nacional em 1914 e, depois, da Confederação Geral do Trabalho em 1919 (+100.000 trabalhadores com a edição de 25.000 exemplares diários do jornal Batalha), assim como a posterior fundação do Partido Comunista Português (PCP) em 1921 e sua influência no movimento sindical.

10Se o manancial de informação e enquadramento na luta de classes durante este período é notável, já, porém, me parece questionável a hipótese avançada pelos autores de estarmos perante uma situação pre-revolucionária, em que a ‘solução’ ditatorial e fascista seria a única possível para impedir a tomada do poder pelo operariado. Ora, não tendo havido forte resistência ao golpe militar de 1926, a referida tese dos autores exige mais debate, sobretudo tendo em conta o ‘clima’ fortemente anti-comunista e a presença hegemónica das forças (ultra)conservadoras e eclesiásticas que, para além do controlo político clientelar, conseguem maciças adesões das populações (cf., por exemplo, fabricação consentida do fenómeno da dita ‘aparição de Fátima’ aos pastorinhos, exponenciada nas décadas subsequentes sobretudo sob a Ditadura e o Estado Novo), a que, para além da incapacidade de travar o golpe de 1926, acresce a necessidade de explicar a subsequente longevidade do regime, suas classes dominantes, assim como suas ‘passivas’ classes-apoio.

11Numa terceira parte os autores fazem um breve relance sobre as derrotas dalgumas revoluções (vg. a alemã) e interpretam a ascensão dos diversos fascismos nos anos 1920-30 (Itália, Espanha, Alemanha) como forma de dominação e produto de crise orgânica do capital, sem deixar de dar uma atenção especial, por um lado, à revolução espanhola entre 1933-37 com a insurreição de Casas Viejas por parte dos trabalhadores assalariados na Andaluzia, dos mineiros das Astúrias e dos operários de Barcelona, a que se seguiu o pronunciamento militar de Franco em 1936, apoiado por Salazar, e subsequente guerra civil sangrenta; e, por outro lado, os autores analisam de modo acurado a implantação da ditadura e do fascismo em Portugal através de um golpe militar comandado por Gomes da Costa e Mendes Cabeçadas a partir de ultraconservadora Braga no contexto de um Congresso Mariano, visando, na sua retórica ideológica, enfrentar a ‘partidocracia’, a ‘balbúrdia parlamentar’, a ‘instabilidade governativa’, a ‘agitação operária’. Mais, os autores explicitam o processo da solução ditatorial e da implantação do regime fascista sob o Estado Novo com forte apoio da Igreja, reprimindo liberdades, proibindo greves e prendendo sindicalistas e opositores, expulsando professores universitários, instituindo a censura e a polícia política (PVDE/PIDE), ilegalizando sindicatos e partidos sobretudo o PCP e promulgando um Código de Trabalho Indígena em 1928 (DL16.199, de 6/12/1928). Por sua vez, o Ato Colonial em 1930, assumido como o decreto da ‘integridade territorial’, respondia, segundo os autores, à manutenção das práticas colonialistas designadamente de trabalho forçado para mais de um milhão de trabalhadores-escravos na extração do ouro, da borracha, do algodão, do café, do açúcar e de atividades infraestruturais. Para os autores a Ditadura e o subsequente Estado Novo, além de tentarem atrair classes ditas pequeno-burguesas desesperadas, representam a vitória política da burguesia vencedora, sendo interpretada como uma ‘revolução burguesa’, garantindo por via do condicionamento industrial vantagens e privilégios nomeadamente para alguns grupos monopolistas em certos setores de produção, assim como da importação-exportação. Os autores focalizam ainda como objeto de análise histórica, para além da segunda guerra mundial e o pós-segunda guerra mundial, a eclosão das guerras anticoloniais, sobretudo a partir do início dos anos 1960, como fator estruturante de contradições no seio do regime.

12A quarta parte da obra é dedicada pelos autores aos 19 meses dos gloriosos anos da Revolução de 1974-75, cujo título, de inspiração trotskista, é «quando o impossível se torna inevitável», glosando Trotsky quando sustenta “Todas as revoluções são impossíveis até se tornarem inevitáveis”. O inovador na análise dos autores é relevar todo um processo histórico e não apenas uma data, fazendo recuar o início da queda da ditadura aos movimentos de libertação a partir de 1961. Com efeito, o 25 de Abril de 1974, iniciado com o golpe militar do Movimento das Forças Armadas (MFA), é precedido pelas lutas anticoloniais e prosseguido com um processo revolucionário em curso (PREC), em que a excepcionalidade de certa dualidade de poderes e a extraordinária mobilização popular com a ocupação de fábricas e de terras, na base da democracia direta e participativa, constituem o substrato para a nacionalização de empresas e da banca, o que fez de Portugal não só um caso de estudo e um laboratório de experiências, como uma situação revolucionária num país dito atrasado, a qual viria a ser contida a partir da restauração política com o 25 de Novembro de 1975.

13Por fim, numa quinta parte é analisado o período de 1975-2008 centrado no que os autores designam de contrarrevolução democrática de 1976 a 1986 que teve o desafio e o confronto dos operários em greve e na rua (vg. Lisnave) face à reestruturação produtiva, as posteriores reprivatizações e sobretudo a entrada na Comunidade Económica Europeia-União Europeia, em que a burguesia portuguesa se realinhou, de modo subserviente, com a Europa do capital. É neste quadro que os autores contribuem para a historiografia ibérica mais recente, evidenciando a ligação da restauração política do 25 de Novembro de 1975 em Lisboa com a transição negociada entre o franquismo e as forças democráticas no Pacto de Moncloa em Espanha. Com efeito, os autores questionam com pertinência o slogan “Europa connosco”, quando na prática, acrescento eu, tal implicou subsequentemente, sob o cavaquismo, a desistência dum projeto mais autónomo em produção agrícola e pesca, favorecendo a entrada dos excedentes agro-pecuários europeus e, posteriormente, a claudicação perante o capital financeiro e o consequente regime de austeridade pela via do Partido Socialista e sobretudo do Partido Social-Democrata/Centro Democrático e Social (PSD/CDS).

14A jeito de síntese, sustento estarmos perante uma obra de referência perpassada de certa frescura intelectual em que o diagnóstico dos autores aponta de modo claro o predomínio dos interesses das classes dominantes e a promiscuidade dos poderes políticos com esses interesses, os fenómenos da burocracia e a inoperância dos serviços públicos na educação, na saúde e na habitação, a proletarização das classes intermédias (prefiro este termo ao de classes médias aplicado, por exemplo, a médicos e professores que nem sequer são pequena burguesia nem classe média, mas trabalhadores qualificados), o desemprego e a precariedade cada vez mais inerentes ao sistema, a pobreza relativa e absoluta de amplas camadas populares, as más condições de vida e de saúde da grande parte dos portugueses/as.

15Relativamente à revolução do século xix diria, em certa complementaridade e contraponto, que não se verificou uma expropriação generalizada de camponeses decorrente de uma revolução industrial e muito menos agrária. Convém a este propósito ter presentes a tese de A. Silbert (1977) sobre a ‘revolução agrária falhada’ e a de V. M. Godinho (1980/1971:142) sobre a ‘industrialização impossível’, a que não eram alheios o arrivismo liberal, o ‘devorismo’ e ‘regabofe’ segundo O. Martins (1982II:13ss) e a perspetiva de A. Sérgio em que o «barão sucede ao monje e o conde come o fidalgo» (1972:137). Com efeito, os ‘bens da nobreza e da Igreja calculados em 60.000 contos passam para as mãos dos novos ‘condes’ burgueses por 15.000 contos, para o que a burguesia fundiária e compradore desses bens fizeram ouvidos surdos às petições comunitárias às Cortes Liberais, como aliás os autores também referem. De resto, os autores, constatando a elevada dívida pública de 80% nos finais do século xix e apresentando o predomínio do setor primário até aos anos 1950-60, convocam as teses da «industrialização espasmódica» do semiperiférico capitalismo português segundo Serrão (1978), a tese de uma agricultura com trabalho barato segundo M. H. Pereira(1979) e que os autores enquadram bem na teoria da dependência. Ou seja, houve apenas o início da infraestruturação e esboço de industrialização a partir do fontismo, com uma configuração de classes diferente da resultante da revolução industrial da Inglaterra e, algo mais tardiamente, na Alemanha e na França, permanecendo aliás, como referem os autores, uma continuidade das estruturas anquilosadas no objetivo de subordinação das classes trabalhadoras rurais e urbanas. No meu entender, tratou-se de uma aliança entre parte da velha aristocracia fundiária, o latifundismo rentista e a burguesia compradore centrada no import-export, sendo a moderna burguesia industrial e agrária minoritária e sem força hegemónica quer durante o último quartel do século xix, quer durante a I República e até aos anos 1950 sob o Estado Novo. Portanto, quando os autores atribuem ao bonapartismo do Estado Novo um papel de modernização capitalista, parece-me algo forçado. É importante relembrar que Salazar até à década de 1950 se posicionava contra a industrialização do país, na medida em que o ditador, glosando Henri Poincaré, considerava que a industrialização seria a «antecâmara do socialismo» pelos perigos de concentração de operários, ocasião de greves e eventual revolução, declarando a respeito da industrialização: «já temos indústria, pois até temos os bordados da Madeira!» Tal não significa que a própria burguesia industrial não tenha sido beneficiada, quer durante a I República, quer sobretudo na segunda fase do Estado Novo, no quadro do condicionamento industrial, pelo congelamento de salários baixos e pelo não investimento nas políticas públicas desde a educação, passando pela saúde e segurança social, até à habitação.

16Os autores são claros em evidenciar a contradição fundamental entre capital e trabalho, assim como a polarização entre frações da burguesia e frações das classes trabalhadoras na emergente formação social, não só a partir da segunda metade do século xix e I quartel do século xx, como nos sucessivos períodos sob o Estado Novo, onde até aos anos 1960 coexistiam o modo de produção capitalista com o latifundismo parasitário e rentista – e, como tal, não equiparável à moderna burguesia agrária –, as economias camponesa e artesanal. Com efeito, grande parte dos camponeses do Norte/Centro e do Algarve, além de não serem pequena burguesia, não foram até aos anos 1960-70 maciçamente expropriados e, contrariamente ao modelo de industrialização na Inglaterra, não constituíram residuais classes pre-capitalistas, mas resistiram e foram até, na sua maioria, pela via patrocinal-clientelar nomeadamente a Igreja, uma classe-apoio do salazarismo (Silva 1998). Mais, foram adaptando-se durante décadas e constituíram no pós-25 de Abril, mais uma vez pela via da influente Igreja e seus bispos e padres, a reserva de apoio passivo nas contraofensivas da direita e extrema direita no norte e centro do país no pós-25 de Abril 1974, sendo igualmente classe-apoio nas diversas configurações políticas até à atualidade. Por fim, se o PS tem alguma co-responsabilidade na restauração política do 25 de Novembro de 1975 e de travagem do processo revolucionário, já, porém, me parece enviesada a atribuição ao PCP de co-responsabilidade do fracasso da revolução socialista em Portugal no quadro do PREC. Mais, poder-se-á até questionar se a correlação de forças era favorável à alegada e reivindicada revolução socialista e/ou se estavam preenchidas as condições objetivas e organizativo-políticas para tal objetivo estratégico, o que me parece não ser o caso, tal como o sustentou o PCP e seu secretário geral Álvaro Cunhal após o chamado Verão Quente e nas vésperas do 25 de Novembro de 1975.

17Estas últimas e breves observações e/ou interpelações críticas não obscurecem o mérito desta obra por parte dos autores que não só evidenciam o legado de muitas memórias e lutas dos protagonistas dos movimentos sindicais, associações e partidos políticos de esquerda perante a burguesia, como contribuem para a historiografia portuguesa e, considerando a perspetiva dos autores, inclusive ibérica, de modo a extrair ensinamentos para as presentes e futuras ações coletivas, tendo no horizonte a emancipação das classes trabalhadoras.