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In Memoriam

Christophe Picard e a História do Islão Medieval do Ocidente
In Memoriam: Christophe Picard and History of Western Medieval Islam
Isabel Cristina Ferreira Fernandes e Fernando Branco Correia

Notas da redacção

Data recepção do artigo / Received for publication: 20 de Novembro de 2024

Texto integral

Christophe Picard nas escavações arqueológicas de Juromenha, 1988. Foto F. B. C.

1Christophe Picard (1954-2024) é um nome incontornável na história do período islâmico medieval em território português. Partiu a 1 de junho de 2024 e deixou em Portugal amigos e admiradores, nomeadamente entre os investigadores de história e de arqueologia.

2Este eminente historiador francês, nascido em Cartago - nas margens de um mar que o marcará para sempre - e casado com uma portuguesa (Manuela Picard), descendia de uma família de reputados editores e especialistas sobre Antiguidade do Mediterrâneo (entre os quais o famoso helenista Charles Picard).

3Um dos seus primeiros trabalhos académicos versou sobre “Portugal Muçulmano” (tese de 3.º ciclo, orientada por Dominique Sourdel1), o que desde logo abriu novos horizontes a quem por cá dava os primeiros passos na investigação histórica e arqueológica desse período, mal conhecido e secundarizado durante o Estado Novo.

4A carreira de Picard, enquanto professor de História Medieval, desenvolveu-se primeiro no ensino secundário, depois na Universidade de Saint-Étienne (1989), seguindo-se a Universidade de Toulouse – Le Mirail (1998) e por fim a Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne (2004). Foi-se afirmando nestas instituições como grande autoridade no estudo do processo de islamização do Ocidente, com destaque para a vertente da actividade marítima no Atlântico e no Mediterrâneo, levada a cabo por poderes islâmicos, um mundo quase inexplorado, o que lhe granjeou justos méritos científicos.

5Participou em múltiplos encontros, colóquios, simpósios e congressos. É o caso dos congressos da SHMESP (Brest 1992, Orléans 1994, La Rochelle 2004 e Cairo 2007) e dos simpósios internacionais sobre castelos realizados em Palmela, 2000 e Óbidos, 2010. Em Portugal publicou vários artigos na revista Arqueologia Medieval, do Campo Arqueológico de Mértola, entre outros.

6Na origem da sua decisão de trabalhar o período islâmico no território português terá estado, inequivocamente, a proximidade ao país por via da sua companheira de vida, Manuela. Sabemos que um dos primeiros contactos do mundo científico terá sido com Adel Sidarus – que o apresentou a vários investigadores que trabalhavam em Portugal sobre o al-Andalus, nas perspectivas histórica e arqueológica – e depois com um de nós (F. B. Correia), com quem visitou sítios importantes para os temas que estava a investigar.

7Era extremamente enriquecedor visitar locais do ocidente peninsular na sua companhia. Podia não conhecer ainda o território, nem alguns vestígios aí existentes, mas sabia aplicar e partilhar os conhecimentos que tinha de outras geografias e das fontes – em árabe, mas também em latim – o que sempre permitia lançar novas hipóteses sobre determinados locais ou a importância de certas rotas ou cidades em distintos períodos históricos.

8No seio da família, no Norte de África, a actividade arqueológica marcou constantemente a sua infância, o que o terá contribuído para a decisão de participar num projecto no ocidente ibérico. Era esse o foco dos seus estudos na década de oitenta do século XX, o que o motivou a envolver-se na escavação do castelo de Juromenha, partilhando a direcção com F. B. Correia. Desses trabalhos conjuntos, por vários anos, com financiamento luso-francês, viriam a publicar um artigo e a recolher informação para futuras reflexões.

9A costa da serra da Arrábida e o estuário do Sado, na península de Setúbal, foi outra região que seduziu Picard, apostado em desvendar os segredos destas terras de ribat. Tínhamos (I. C. Fernandes) então em curso escavações arqueológicas no castelo de Palmela, que visitou e pelas quais se interessou, o que viria a gerar uma publicação conjunta, em 1999, na revista Archéologie Islamique, com enfoque em Palmela, Sesimbra e Alcácer do Sal. Lembramo-nos bem do significado que tiveram esse interesse e esse envolvimento de Picard, impulsionando-nos a ir mais longe nas pesquisas arqueológicas e abrindo-nos novos horizontes no cruzamento entre a história e a arqueologia, que em Portugal dava apenas os primeiros e titubeantes passos.

10A publicação, em 2000, do Le Portugal Musulman (VIIIe-XIIIe siècle)..., é um importante marco nos rumos da historiografia medieval portuguesa, que só nos finais de oitenta e anos noventa começara a despertar para o verdadeiro conhecimento das cinco décadas de presença muçulmana no território. Em boa verdade, esta obra continua a ser incontornável para o estudo da história do Garb al-Andalus. Embora no seu título refira “Portugal”, Christophe Picard não comete o anacronismo de impor uma fronteira onde ela não existia; é uma obra inovadora, não só por cruzar informação das fontes escritas – muitas delas difíceis de então encontrar no ocidente peninsular – com o conhecimento do território, das construções que começavam a ser estudadas e das escavações sistemáticas que se iam levando a cabo, tanto no território português como na vizinha Extremadura espanhola e na Andaluzia mais ocidental.

11Dois anos antes, já tinha sido publicada uma outra obra que teve menos destaque, mas com não menor relevância científica: L’océan Atlantique musulman de la conquête arabe à l’époque almohade.... É, talvez, a primeira grande obra que tem a ousadia de abordar, com suporte documental e estudo do terreno, a navegação feita por agentes de Estados de matriz arabo-islâmica em águas do Atlântico. Bem sistematizado, com uma cronologia alargada, com um índice rico e sempre útil para novas hipóteses de investigação, este estudo antecipa uma das suas últimas obras, também ela sobre navegação e que mereceu mais atenção a nível internacional.

12Na segunda década de XXI, dirigiu, com Laurent Feller e Michel Kaplan, um programa sobre as elites rurais mediterrânicas na Idade Média (dossier das Mélanges de l’École Française de Rome. Moyen Âge, 124/2, 2013). Com Dominique Valérian, Damien Coulon et Annliese Nef dinamizou um seminário mensal sobre o Mediterrâneo medieval, promovendo o diálogo entre investigadores de distintas regiões.

13Acompanhava com atenção o que se investigava no ocidente ibérico, e estava em contacto com várias equipas, aconselhando, por vezes, novas abordagens, colaborando também em iniciativas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Estimulou um de nós a aventurar-se na realização de uma dissertação em regime de co-tutela com Paris 1 – Sorbonne (FBC); não era raro enviar – por correio, como então se fazia – separatas ou fotocópias de textos difíceis de encontrar e, em épocas de menos pressão, toda a família Picard abria as portas de sua casa, em Toulouse, sem limites de tempo, para que se pudesse conversar e reflectir. E não faltava a necessária dose de humor que sabia utilizar com classe e com um sorriso muito seu.

14Conservando sempre o interesse pelo território do Gharb al-Andalus, nunca deixou de trabalhar sobre temas marítimos e portuários. O seu último grande trabalho de fôlego La mer des Caliphes, (Paris, 2015), resultado de dezenas de anos de investigação e, sobretudo, de discussão e reflexão sobre os estudos que foi publicando, é um marco imprescindível para quem queira estudar de forma fundamentada o Mediterrâneo “medieval”. Era um tema que, salvo raras excepções, fugia aos interesses de grande parte dos historiadores europeus. A relevância do seu trabalho é tal que, não muitos anos passados, recebeu traduções em italiano (2017), árabe (2017) e inglês (Harvard University Press, 2018). David Abulafia considerou ser esta a obra mais relevante sobre navegação no Mediterrâneo para o período em causa. De facto, nela estão presentes reflexões importantes sobre as relações das costas e algumas cidades portuárias do sudoeste peninsular com o grande mar Mediterrâneo.

15É importante sublinhar o contributo de Picard na formação de muitos jovens, através dos seus ensinamentos e inspirados no seu entusiasmo, na sua capacidade de mobilizar a documentação escrita e a arqueológica, na forma afável de se relacionar com os outros.

16Nesta evocação, cumpre-nos ainda uma palavra sobre essa afabilidade de Christophe Picard, sem que o façamos por gentileza póstuma. As suas qualidades de carácter são reconhecidas por todos os que com ele trabalharam e privaram – a humanidade, a generosidade, a incessante curiosidade, o sentido do dever, a dedicação à ciência histórica, sem nunca esquecer o outro.

17A extensa bibliografia que se segue (aceder pelo link), mostra bem a expressão internacional dos seus trabalhos, a intensidade da sua actividade intelectual, a originalidade e o arrojo de muitos dos temas que tratou, o Mar assumido como mote preferencial.

18Aceda aqui à bibliografia completa de Christophe Picard

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Notas

1 Com uma edição de escassa difusão: PICARD, Christophe – Histoire du Portugal et de l'Espagne occidentale à l'époque musulmane (début VIIIème -milieu XIIIème siècle), Paris : Paul Geuthner, 1995.

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Índice das ilustrações

Legenda Christophe Picard nas escavações arqueológicas de Juromenha, 1988. Foto F. B. C.
URL http://journals.openedition.org/medievalista/docannexe/image/9142/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 226k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Isabel Cristina Ferreira Fernandes e Fernando Branco Correia, «In Memoriam»Medievalista [Online], 37 | 2025, posto online no dia 01 janeiro 2025, consultado o 09 julho 2025. URL: http://journals.openedition.org/medievalista/9142; DOI: https://doi.org/10.4000/134b0

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Autores

Isabel Cristina Ferreira Fernandes

Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago – Município de Palmela, 2954-001 Palmela, Portugal. Instituto de Estudos Medievais – Universidade Nova de Lisboa, 1069-061 Lisboa, Portugal. ifernandes@cm-palmela.pt. https://orcid.org/0000-0003-0725-7768

Fernando Branco Correia

Universidade de Évora, 7004-516 Évora, Portugal. fbc@uevora.pt. https://orcid.org/0000-0003-4083-845X

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