2Este casamento perfeito não aconteceu por “milagre”, do dia para a noite. Ele está ancorado na admiração do curador pela obra de Byars e na relação de proximidade que com ele estabeleceu na década de 1990. É, portanto, uma história que vem de longe, quando Vicente Todolí, enquanto director do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves (Porto), desafiou o artista para uma exposição na Casa de Serralves. A exposição James Lee Byars – The Palace of Perfect (1997) foi uma mostra memorável que aconteceu em circunstâncias especiais. A Casa de Serralves tinha sofrido uma obra de reabilitação com o objectivo de lhe devolver a sua configuração original, restabelecendo nomeadamente a sua relação com o jardim. James Lee Byars foi o convidado para fazer a exposição inaugural, num espaço para o qual se concebia uma nova linha de programação. Embora o artista já se encontrasse doente e muito fragilizado, houve uma colaboração directa com Todolí, estando inicialmente prevista a criação de novas obras propositadamente para a Casa – o que não veio a acontecer. A exposição decorreu entre 9 de Outubro e 7 de Dezembro de 1997, mas sem a presença do artista que falecera em Maio – facto que acabou por dar à exposição um cunho de homenagem, transformando-se na primeira exposição póstuma do artista.

3Vicente Todolí voltou recentemente à obra de Byars – enquanto director artístico do Pirelli HangarBicocca, em Milão, fazendo a curadoria de uma retrospectiva que aconteceu entre 12 de Outubro de 2023 e 18 de Fevereiro de 2024. A organização foi realizada em parceria com o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madrid – para onde, depois, a exposição itinerou com muitos ajustes e algumas novidades. É sobre essa itinerância que registo algumas notas, depois de duas visitas: a primeira, a 8 de Junho; a segunda, passados três dias.

4A exposição consegue conectar o visitante com aspectos centrais da obra de James Lee Byars, concretamente com a sua forte componente simbólica e espiritual. São 17 obras, de grandes dimensões, que o visitante pode circundar e sentir na sua plenitude; e são quatro os factores que para isso contribuem.

5Em primeiro lugar, o próprio local escolhido para a exposição – o Palácio Velásquez – e a sua localização: no coração do Parque do Retiro, no centro de Madrid. Para ver a exposição, o visitante precisa de entrar no parque e fazer uma caminhada até ao palácio. O contacto com a natureza e o silêncio – ou melhor, a ausência de ruído urbano – são um preâmbulo que prepara o corpo e a mente para o encontro com a obra de Byars. Um encontro contemplativo e reflexivo. Após a conclusão da visita, percebe-se como a caminhada, apesar de ser uma componente extrínseca à exposição, faz parte dela criando condições para uma experiência mais intensa e profunda.

© Rita Maia Gomes

6Em segundo lugar, e agora já focando o projecto expositivo, o isolamento espacial de cada peça, mas não um fechamento. Ou seja, o circuito expositivo está desenhado para que o visitante se sinta a trilhar um percurso ritualizado e tenha um confronto individual com cada obra de arte, podendo estabelecer, contudo, conexão visual com a peça que viu anteriormente e com a próxima pela qual irá passar (veja-se fig. 1). Esta possibilidade confere ao trajecto do visitante uma espécie de experiência “iniciática” pela obra de Byars – que acentua o processo de descoberta e alimenta a curiosidade pelo momento seguinte.

7Em terceiro lugar, as características do espaço expositivo: a opção pelo ambiente imaculadamente branco e a iluminação de muitas das peças através de luz zenital que potenciam uma leitura ascética das obras de Byars, sublinhando o seu misticismo.

8Por último, a inexistência de barreiras impeditivas de aproximação às peças. É certo que qualquer tipo de sinalização, mesmo a menos intrusiva, constituir-se-ia como ruído à contemplação e usufruto das obras; mas também é verdade que prescindir das barreiras é uma decisão de risco, sobretudo porque levanta questões quanto à integridade e à preservação das peças e mesmo à “milimétrica” implantação espacial das mesmas. A opção tomada privilegiou a comunhão do visitante com a obra; e o visitante sente essa grande vantagem, respeitando-a.

© Rita Maia Gomes

9A comunhão total entre o visitante e a obra de Byars – e, nesse sentido, o clímax da exposição – acontece no encontro com a obra The Rose Table of Perfect (1989): uma esfera com um metro de diâmetro coberta com 3333 rosas vermelhas (veja-se fig. 2). É uma das suas obras mais marcantes, pelo seu significado relacionado com a numerologia cabalística, e por toda a carga metafórica da rosa vermelha. Porém, o grande poder da peça reside na sua capacidade de apelar a todos os sentidos, nomeadamente ao olfacto. À entrada da exposição sente-se um aroma subtil que se vai intensificando à medida que fazemos o percurso até à obra – momento em que se desvenda a proveniência do cheiro “misterioso”.

10A componente orgânica da obra – as 3333 rosas naturais – dita a sua metamorfose durante a permanência da exposição. A transfiguração da peça é material e olfactiva. No decurso dos dias as rosas vão secando e murchando. E nesse processo de apodrecimento, ou de morte, mudam as cores – o vermelho vivo vai-se convertendo em várias tonalidades de castanho; e o aroma vai-se modificando, com nuances não passíveis de catalogação. Esta transfiguração é um convite para regressar à exposição “vezes sem conta” para poder voltar a experienciar a magia da obra. E a visita “vezes sem conta” é uma possibilidade concreta visto que a exposição é de acesso gratuito.

11Complementando o percurso do visitante por obras emblemáticas do artista, há uma sala de pendor mais informativo que procura contextualizar a obra de James Lee Byars. A sala possibilita, efectivamente, uma imersão documental no universo do artista com vista a uma compreensão mais aprofundada da sua obra, dando uma grande ênfase às suas performances e instalações mais icónicas, com filmagens de entrevistas, happenings, fotografias, correspondência e adereços do artista. Uma das novidades da itinerância em Madrid encontra-se nesta sala: um conjunto de cartas da autoria de James Lee Byars para a sua amiga e galerista em Paris, Christiane Germain, pertencentes à colecção particular de António Gomes de Pinho (veja-se fig. 3).

© Rita Maia Gomes

12Entre 1974 e 1997, o artista trocou correspondência com Christiane Germain. As cartas são, pela sua natureza, uma importante fonte para estudar e conhecer o artista e a sua obra, contêm o seu pensamento e as suas preocupações, e permitem fazer um itinerário das suas viagens e das suas geografias. Mas as cartas de Byars excedem em muito a sua componente documental, constituindo-se como objectos artísticos – e é isso que faz delas peças extraordinárias.

13As cartas estabelecem uma relação directa com a sua obra plástica – em termos cromáticos (com a predominância do branco, do preto, do dourado e do vermelho), mas também em termos formais (com recurso a algumas das formas geométricas predilectas do artista: o círculo, o quadrado e o rectângulo). E tal como as obras, as cartas de Byars convocam imediatamente o tacto, através de uma multiplicidade de materiais e texturas: do mais fino e requintado papel de seda ao grosso papel lustroso e brilhante; do papel propositadamente amarfanhado e enrugado à lisura de uma placa de vidro.

14A correspondência na vida de Byars assume uma vertente performativa, e as cartas para Germain são disso um magnífico exemplo. Várias características acentuam essa vertente: as texturas e as cores dos materiais que servem de suporte às mensagens; a caligrafia e a forma como o artista estrutura a componente textual no papel – ambas enigmáticas, levantando dificuldades à decifração. Decifração essa que exige tempo e paciência, bem como um leitor activo com resistência à frustração. Não menos importante é o próprio acto de abertura das cartas. Cada carta traz um novo desafio de manuseamento; a título de exemplo, refiro-me a uma carta que, desenrolada, atinge 13 metros de comprimento! Sendo apenas para um único destinatário, as cartas mimetizam, de certa forma, a interacção que Byars enquanto artista queria estabelecer com o público, envolvendo-o, fazendo dele um participante mais do que um espectador.

15A vitrine onde são apresentadas 28 dessas cartas, posicionada ao centro da sala, “condena-as” ao estatuto de documento e retira-lhes a excepcionalidade. Precisamente pela sua dupla condição de documento/obra plástica, expor estes objectos constituía um grande desafio museográfico – que não foi atingido. A pertinência de o fazer era imensa, sobretudo por se tratar de um conjunto que nunca havia sido mostrado ao público. O seu carácter inédito, a sua qualidade plástica e a sua vertente performativa justificavam uma atenção cuidada e individualizada – aproveitando o cunho retrospectivo que a exposição assumiu. Fica aqui a nota e a esperança de que esta colecção possa ser estudada e exposta adequadamente, revelando simultaneamente o seu lado documental, cénico e performativo, fascinando o público e fazendo jus à espectacularidade estética da acção de Byars. Eis um desafio que poderá constituir matéria para uma próxima exposição!