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1O novo livro publicado por Ricardo Campos, pesquisador do Instituto de História do CSIC e importante referência no campo da história da psiquiatria na Espanha, traz reflexões valiosíssimas acerca do processo de conformação da noção de periculosidade no âmbito dos saberes psiquiátricos e criminológicos, produzidos no contexto espanhol dos séculos XIX e XX. Em linhas gerais, Campos busca investigar por que a psiquiatria, que tinha como objetivo ser filantrópica e terapêutica, passou a “patologizar” o crime e associá-lo à loucura, além de ter relacionado a doença mental com a concepção de “perigo social”. La sombra de la sospecha, portanto, analisa a evolução da ideia de periculosidade, levando em conta o contexto histórico e fatores sociais, políticos e culturais do circuito espanhol, no período em questão. O autor também examina como a medicina mental estabeleceu estreitas ligações com o direito penal, e que, apesar das divergências, este vínculo influenciou na elaboração de leis criminais, tendo como foco não a prática criminosa, mas a personalidade do criminoso.

2O Capítulo 1 – “Proteger a sociedade dos ataques dos loucos” – discute a relação entre loucura e crime na Espanha do final do século XIX. De acordo com Campos, a tarefa dos psiquiatras, como José María Escuder, era conceder à loucura um status médico e apresentar classificações complexas e descrições detalhadas de sintomas, exigindo julgamento clínico especializado. Para tanto, dois paradigmas importantes teriam sido responsáveis por alimentar a suspeita sobre os pacientes com problemas mentais: a monomania e o degeneracionismo. Além disso, o autor analisa as inserções, a partir da década de 1880, das teorias promovidas pela antropologia criminal no debate médico e jurídico espanhol, sobretudo no que tange ao tema da responsabilidade criminal dos “delinquentes loucos”. Após intensas disputas entre psiquiatras e juristas, a criminologia italiana encontrou uma solução intermediária através do degeneracionismo. Ao invés da total inimputabilidade penal dos loucos, fora defendido que eles tinham responsabilidade parcial ou total. Com isso, a teoria do “delinquente nato”, desenvolvida por Cesare Lombroso, foi questionada e o direito liberal clássico, baseado na ideia de “livre arbítrio”, perdeu força nessas discussões. A partir daí, o papel dos psiquiatras passou a ser o de diagnosticar a periculosidade do acusado, em vez de determinar a sua responsabilidade.

3O capítulo 2, intitulado “Vagabundos e Trabalhadores”, apresenta uma mudança de enfoque na discussão. No lugar de examinar a relação entre loucura e criminalidade, o texto analisa os diagnósticos médicos e sociais sobre a conexão entre pobreza e criminalidade. Desde a década de 1840, reflexões sobre o pauperismo vinham sendo realizadas por intelectuais diversos. Com o crescimento da industrialização, a formação de um contingente populacional de pobres e trabalhadores em condições precárias foi percebido como causa da desmoralização social e da crescente taxa de suicídios, prostituição e criminalidade. O socialismo e as revoluções também foram vistos como consequências desse processo. Isso levou à associação entre o vagabundo, o trabalhador rebelde e o crime. A higiene pública, a medicina social e a psiquiatria passaram a definir essa realidade como patologia social, transformando o discurso organicista do degeneracionismo em um verdadeiro programa de ação política.

4O capítulo 3 – “A Horda” – amplia a investigação da projeção social e política das práticas e disciplinas científicas. A análise centra-se agora no submundo da cidade grande, examinando as reflexões sobre a mala vida. Neste sentido, Ricardo Campos oferece uma síntese abrangente usando estudos criminológicos, médico-sociais, literatura, reportagens jornalísticas e policiais. A abordagem tem uma visão transnacional, comparando as investigações espanholas sobre a mala vida com suas contrapartes na América Latina e Europa. A imprensa dedicada ao “mundo crime” também é um tema importante na análise, contribuindo para a popularização das representações degeneracionistas e lombrosianas do crime. Esta época, marcada pelo regeneracionismo e pela preocupação com a decadência da Espanha, as descrições teóricas em torno da noção de mala vida ajudaram a delimitar a figura do maleante, que representaria um indivíduo situado nas fronteiras do crime e da loucura, e identificado com a população nos subúrbios de grandes cidades como Madrid e Barcelona. Esse tipo discurso funcionava como um mecanismo que permitia distinguir o trabalhador honesto e daquele considerado preguiçoso. Este mecanismo também foi relacionado ao operário rebelde, atingindo seu pico no final do século XIX com a patologização dos camponeses revoltados e do militante anarquista.

5No capítulo 4, “A era da higiene mental”, o autor analisa as alterações do conceito de periculosidade no momento de maior influência da higiene mental na psiquiatria espanhola, entre 1915 e o início da Guerra Civil. Esse período foi marcado por reformas e por modernização do campo psiquiátrico, cuja objetivo principal era superar o confinamento dos pacientes e transformar a medicina mental em um empreendimento de ação social. No entanto, o plano de reforma desejados por muitos psiquiatras fora interrompido, não obstante o apoio que obteve nos anos iniciais da ditadura de Primo de Rivera (1923-1930). A noção de “periculosidade” foi mantida e expandida para incluir novas formas de indesejáveis sociais. Neste sentido, o movimento de higiene mental, que, por um lado, tinha um impulso humanitário e promovia a cidadania, por outro, acabou mobilizando nova teorias e práticas para definir e combater a periculosidade por meio, por exemplo, da eugenia.

6O capítulo 5, “As reformas republicanas”, analisa os avanços modernizadores da psiquiatria durante a Segunda República (1931-1939), sendo um regime que contou com o apoio de muitos profissionais do campo médico. A nova administração se empenhou em transformar a psiquiatria espanhola, aprovando em 1931 um decreto que atendia às suas demandas, abrindo o primeiro dispensário em Madrid, criando novas cátedras e priorizando os critérios médicos para tratar os pacientes mentais. No entanto, a República manteve na legislação a categoria de periculosidade e a ligação entre psiquiatria e defesa social, e na Lei dos Vagabundos e Bandidos de 1933, deu a essa abordagem um viés de “defesa política”. Esta abordagem, apoiada por Jiménez de Asúa e pelos psiquiatria progressistas da época, consolidou o “direito penal do autor”, enfraquecendo garantias individuais e permitindo a proliferação de abusos durante o período franquista.

7O capítulo 6 – “A Longa Noite do Franquismo” – discute a utilização política da periculosidade e a mudança repressiva da psiquiatria durante o regime franquista (1939-1975), tanto no início quanto no auge. Esta seção descreve o desmonte do movimento de saúde mental dos psiquiatras republicanos. Explora-se também as semelhanças com o período republicano tanto nos aspectos teóricos quanto na legislação. A estratégia de patologização do inimigo político é ilustrada com um estudo da obra de Vallejo Nágera, cujo biodeterminismo é seguido por alguns de seus amigos e discípulos íntimos. O papel limitante da Igreja Católica nas tendências racistas e propostas eugênicas também é lembrado. O capítulo investiga, no contexto da década de 1950, no momento em que a ênfase na defesa social esteve centrada na figura do sujeito considerado vagabundo, a expansão da “Lei dos Vagabundos e Bandidos”, a fim incluir nesse espectro homossexuais, hooligans e outros indivíduos classificados como perigosos. O capítulo termina com um estudo da aplicação da referida lei, usando uma amostra de arquivos do Arquivo Multijurisdicional de Barcelona.

8O livro finaliza com o capítulo 7: “Perigo no Franquismo Tardio e na Transição Democrática”. A seção conclui com uma análise dos vínculos entre a psiquiatria e o direito penal durante a era do desenvolvimentismo e durante os primeiros anos do governo socialista, culminando na Transição. Destaca-se as tendências de internacionalização e restabelecimento da saúde mental, bem como a reabilitação da psicanálise. O ponto central do capítulo é a análise da Lei de Periculosidade e Reinserção Social (LPRS), aprovada em 1970. O livro examina a formação, aprovação e implementação da LPRS, bem como a consideração da doença mental na lei. A análise dos autos judiciais revela a distância entre as intenções reabilitadoras da lei e a realidade punitiva e classista de sua aplicação. Na última parte, Campos elabora uma síntese das críticas à LPRS durante o final do regime franquista e na Transição, destacando o surgimento do movimento denominado como psiquiatria crítica. Tal movimento foi formado por pacientes e profissionais envolvidos na transformação do cuidado ao doente mental e teve uma influência decisiva na visibilidade dos aspectos mais prejudiciais da LPRS. A lei foi mantida até 1995 e, mesmo durante o governo socialista, houve tentativas de reutilizar o discurso da periculosidade.

9A obra La sombra de la sospecha foi escrita considerando o cenário médico-jurídico espanhol do século XIX e XX, mas suas reflexões sobre a constituição da ideia de periculosidade são inspiradoras para pesquisadores em outros contextos nacionais. Elas permitem compreender a complexidade histórica do conceito e ajudam identificar as apropriações locais; como por exemplo, aquelas desenvolvidas nos debates médicos e jurídico de países latino-americanos, como o Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, entre outros, nos quais o tema da periculosidade também obteve ampla circulação.